terça-feira, 20 de março de 2012

DONA IVONE SAKURAI.


Às vezes, a gente fica pensando na vida, no sentido dela. 
Mas será que é preciso pensar na vida? 
Vida é para se viver. 
Pelo menos até enquanto durar a vida.
Soube recentemente que a dona Ivone está internada no Asilo São Vicente de Paulo, em São Miguel Arcanjo.
Com alguns meses de vida
Deve ter-se aposentado.
Beira já os 75 anos de idade.
Mas quem é ela?
No mês de março de 2.006, estive visitando-a e até publiquei sobre ela alguma coisa no jornal "A Hora".
O nome é Yaeko Sakurai, filha do casal japonês Yoshiyte e Tamoya Hidani. 
Natural de Avencas, no município de Marília, lá nasceu aos 27 de setembro de 1.937.
Os pais casaram-se por ocasião da Primeira Guerra Mundial e, na expectativa de melhoria de vida decidiram vir para o Brasil, onde se tornaram lavradores.
Aos treze anos de idade, Yaeko - em português chamada Ivone - foi mordida por uma jararaca branca duas vezes.
Dois anos de sua vida foram passados entre o Butantã e as Clínicas, numa brava luta para curar-se.
Quiseram até amputar-lhe a perna, mas ela acabou vencendo o veneno da serpente. 
As sequelas ficaram. São perceptíveis a olho nu.
Em Itapecerica da Serra, onde a família se mudou mais tarde, ela frequentou até a quarta série do Grupo Escolar.
A partir daí, foi estudar Corte e Costura em São Paulo, formando-se aos dezenove anos de idade.

Lembrança do tempo de escola, no  Japão.
Um deles´seria seu esposo. 
De São Paulo, foi para Pilar do Sul, sempre trabalhando como costureira. 
Foi nessa cidade que conheceu Kiyshe Sakurai, natural de Nagano-Ken, no Japão, filho de Matao e Yoshiko Sakurai.
Casaram-se já em São Miguel Arcanjo aos 23 de novembro de 1.963, diante do Juiz de Paz Alcindo Nogueira.
Embora trabalhadores, pareciam nômades. 
Plantaram batata em São Paulo, Alfenas, Itapevi, Piracicaba, Itapetininga, Pilar do Sul e Diamantina.
Vida bastante sofrida.
De sol a sol.
Em Diamantina chegaram a ter uma vasta plantação de flores secas em sociedade com um brasileiro que não honrou o compromisso, levando sozinho o lucro do negócio.
O noivo




Na humildade, o casal recomeçou, porque a vida tinha que continuar. 
O casamento
Em parceria agora com os cunhados, ambos voltaram a viver em São Miguel Arcanjo.
Quem não se lembra da feira?
Quem naquela época não comprou verduras e legumes trazidos por eles lá do Bairro de Guararema, onde decidiram morar?
Dona Ivone ficou grávida dez vezes. 
Talvez pela fraqueza orgânica, acabava sempre abortando. 
Alguns filhos até nasceram, mas não conseguiram sobreviver.
Morto o esposo em 1.997 vítima de um derrame cerebral que o colocou na cama durante nove anos, dona Ivone ficou sozinha no mundo.
Sem filhos.
Sem bens.
O de chapéu, de costas, é Sakurai. na feira de domingo
A ferida no pé todo repuxado, finalmente secou; diz ela que graças às orações de um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus que vinha frequentando regularmente há quinze anos. 
Mas andar era muito difícil, assim como a cirurgia para a qual nunca teve condições financeiras para fazer.
Quando a conheci, vivia numa casa onde havia uma estante, um sofá, uma cama, um armário, uma pequena mesa na cozinha, outra onde passava suas roupas, um televisor estragado em consequência das goteiras que haviam pela casa que era emprestada do cunhado.
E gatos.
Muitos gatos.
Empoleirados na cama, na cozinha, na sala.
Ivone, de óculos, com a sogra e cunhadas.
Como se entendessem que aquela mulher não deveria viver sozinha daquele jeito, faziam-lhe companhia, empoleirados na sua cama, na sua cozinha, na sua sala, rosnando por entre as suas pernas, silenciosos, alisando os cobertores com que ela se cobria à noite e a eles também.
Três ou quatro álbuns de fotografias também atestavam a ausência de parentes. 
Como se vê na maioria das famílias, os álbuns são  adulterados cada vez que um parente visita um velho da família; arrancam as fotografias e levam embora.
Os de dona Ivone continuam intactos.
Diabética, já tomava 35 mg de insulina diariamente.
Os óculos já precisavam ser trocados de há muito tempo.
A coluna já apresentava problemas, mas foi desde o dia em que teve que cavar um buraco para enterrar um filhote de cachorro  no quintal.
Os cinco irmãos moravam em São Paulo.
Um dos cunhados é que a ajudava mensalmente com uma quantia suficiente para sobreviver e cuidar dos seus gatos.
No ano de 2.002, entrou com o pedido de aposentadoria.
E quando estivesse tudo certo, dona Ivone me confessou que iria morar no fundo do quintal de um amigo dela, o Jorge, que prometeu ajudá-la a construir o seu cantinho.
Tem gente que acha que nessa altura da vida não adianta mais sonhar. Mas esse sonho a mantinha rija e viva.
Só carrasco mesmo para tentar matar essa capacidade que o brasileiro tem de sonhar, de querer, de alegrar-se com as fumaças dos próprios sonhos.
Dona Ivone não pedia celular, nem Dvd, nem Tv de 29 polegadas, nem carro e nem palácio.
Só queria continuar tendo o direito de viver sem ser maltratada por gente que desconhecia sua longa luta pela vida, que desconhecia o seu suor de cada dia, que desconhecia que a solidariedade é condição suprema para a paz.
E hoje, quem passa diante da casa onde ela morava, bem em frente à Lan House do meu irmão Gilberto, vê os gatos por ali deitados. 
Tem gente que lhes leva comida. Às vezes, eles comem, às vezes não. 
Dá a impressão que eles acham que a dona Ivone vai voltar para cuidar deles.
Só que agora é dona Ivone quem precisa de cuidados.
E quando eles compreenderem isso, deixarão de estar por ali; procurarão outro lugar para morar ou morrer...
Vida longa a dona Ivone Sakurai!

Obs: as fotos me foram doadas por ela em 2.006.

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