Aziza Bittar é professora e advogada nascida há 77 anos em São Miguel Arcanjo.
Um conto seu, intitulado "UMA MENINA" faz parte da I Antologia NAU Literária, publicada em 1.999, do nosso acervo.
Vamos aqui transcrever seu texto, com muita satisfação:
Lenta infância de donde
como de um pasto lorgo
crece el duro pistilo,
la madera del hombre.
P. Neruda
Aí, ele, o São João, fala da menina acanhada e recolhida nos seus confusos, assim como a Macabeia, quem sabe mais infeliz até, pois sabia como é e seria sua vida cheia de dias e noites perseguidas pela história de Naraca e Amira, na qual se vê pelo nome quem era a boazinha, santinha, queridinha.
Por que a menina, pedaço de coisa ruim, como a chamavam muitas vezes, vivia assim atentada e todas as horas do dia e da noite sozinha?
No que daria aquele corpinho mal vestido de babados e sinhaninhas circulando nas amarelinhas, jogando bola com os pés, trepando agilmente nas suas queridas árvores e pulando corda como nenhuma conseguia tanto?
Bem se esforçava para estar no meio das outras e brincar direitinho, mas de repente, um não, não é assim ou não, você é a mãe e eu sou o pai e aí, no meio da escolha e das desordenadas ordens ouvia o que já ouvira centenas de vezes: não, eu não vou mais brincar com você.
Pior quando chegando escutava: aquela uma vem vindo, ninguém quer brincar com ela, né?
Era a menina de olhos transparentes verdes e cabelinhos cacheados e sempre nas fotos saía com as pequeninas mãos cheias de bolachas e na boca balbucios e lágrimas correndo por uma coisa enorme, coberta de preto se ajeitando perto dela e, depois, um enorme laço azul aparecia caído sobre os arrumados caracóis.
Mas a moleca era mesmo como todos falavam, errada desde o começo. Não tinha par com ninguém. Vivia no sozinho do quintal horas e horas, rabiscava no chão suas casinhas, crianças e até barquinhos nunca vistos ao vivo.
Do mar ela soube do existir e já teve pesadelos com ele e muitas vezes chorava de cabecinha baixa quando sua mãe cantava "era o meu lindo jangadeiro de olhos verdes cor do mar".
No mais, a menina não se amedrontava com princesas ou bruxas e nunca se pensou princesa nem alguma outra figura.
Prosseguia no afastado e inventava seus brinquedos.
Gostava de contar caramujinhos juntados numa pequena caixa, feito cofre dos seus tesouros, e muitas vezes seguia uma lesma até o fim do dia pra ver onde ela ia chegar, assim nada à frente mas um traço prateado por onde ela passava.
É assim que as lesmas brincam, vão desenhando.
Dava-se conta do entardecer quando ouvia: "recolham lenha, tragam a roupa que já vai chover", no que ela prontamente atendia sem saber se a ordem era pra ela ou para as outras irmãs, mas a menina fazia tudo pra se livrar dos fininhos beliscões que às vezes somavam três até o dormir.
Surras de mãe eram bem mais fracas embora também viessem carregadas dos xingamentos importados do deserto: Ilanik tãlaia e sikín adrabik, eram ouvidos em mais de mil e uma noites. E a menina gelava mesmo quando as cintadas chegavam às pernas. Protegia-as com seus braços dançando movimentos de acudir o corpo dos ai, ai, ai e cobrir o rosto para não ver a cara do pai tão viçosa e bonita quando ele cantava ou só conversava, mas naqueles momentos o vermelho alegre do rosto virava a feição do cruz - credo.
De vez em quando a menina se alegrava com sorrisos bons inteiros só pra ela, como os de sua madrinha que neles até embrulhava uns caramelos e por vezes uma pequena moeda colorindo o carinho que ela tanto gostava.
Ia se inventando coragens, camuflando seus medos nas explosões de socos, choros, risos, fugindo das pessoas sem se encontrar perto ou longe de nada e ninguém e aí descobriu mexer no rádio. Ouvia música. Adorou. Nada mais a encantava antes de ir pra cama do que escutar uma coisa que toca igual a do seu Brisola e viu que deve ser do mesmo que a dona Lola tem. Toda noite, mais que Ave-Marias e Santos Anjos, sua oração era ouvir música e com ela adormecia debruçada na mesa.
Na escola, esse ainda pedaço de coisa ruim ou satanás, era a primeira a ser chamada para declamar, cantar ou representar. Que noite aquela dos tantos versos recitados no palco, vestida com seu uniforme de bandeirante... "sou filho dos montes, dos rios... " e olhando para os pracinhas da cidade, um deles parente seu, aclamados heróis, a pequena fardada, sob prolongadas palmas, recebia também uma medalha pelo segundo lugar no desempenho das tarefas escolares pois que é menino quem deve ganhar sempre o primeiro lugar, ora, onde já se viu.
Já com dez ou onze anos, ela se inquietava no religioso. Esgueirava-se pelos bancos do catecismo e queria ser Filha de Maria como todas as primas. Esforçava-se. Confessava os veniais, ajeitava-se nas procissões lá no fim quase ao escuro das velas sem nunca ser notada mas repetindo os "ora pro nobis". Meses seguidos de culpas e pecados, a menina se desesperava no desejo de ser e seguir igual aos carneirinhos, mas pobre excomungada, durou pouco a tentativa, pois " ela não fazia nada direito e a gente precisava sempre corrigir". Não conseguiu mais do que espiar alguns pecados quando beijava a medalhinha e dobrava a fita de tafetá azul que lhe prometia algum milagre, talvez um dia. Também no cofrinho guardou, não sem antes beijá-lo, um colorido Jesus menino que ela trocara por uns santinhos de coração sangrando e santas de cabeça inclinada com brancas mãos no além.
Foi crescendo a infância nos pequenos cachos dourados quando alguém disse pra mãe, deixando-a ouvir, que a cabecinha bonita da sua filha é tão parecida com a de São João, nossa! Até os olhinhos!
Aí a menina se interessou em conhecer melhor a cara desse santo com nome de criança de escola. Soube que na casa da don`Ana tinha um grandão na parede e foi lá várias vezes na semana e não despregava seus olhinhos do quadro, admirava o vermelho da roupinha daquele menino e o carneirinho que parecia daqueles que às vezes seu pai comprava e logo desaparecia.
Ele é santo? São João? Que diferença daqueles ardidos coloridos corações ensanguentados que se via em todas as casas e quantos nas igrejas! Este, pensava ela, nem precisa de milagres, esmolas e nem velas por perto. Acha que o carneirinho comia todas as flores. Era de pura alegria o rosto do menino safadinho que em vez de "Covas da Iria" gostava de traques, busca-pés e rabos de porco, pois era cantado nas rodas dos bailes e aos foguetórios. Grande encontro!
Companheiro São João era a alegria da escola o tempo inteiro e no natal, não era ele o da cestinha na "mangerona"?
Como é bom ter um verdadeiro santo que carrega um animalzinho. Como estava feliz, feliz agora que ela tem um amigo pra quem sorrir e ele em todo lugar que a via, sorria inteiro pra ela.
Gostava de contar caramujinhos juntados numa pequena caixa, feito cofre dos seus tesouros, e muitas vezes seguia uma lesma até o fim do dia pra ver onde ela ia chegar, assim nada à frente mas um traço prateado por onde ela passava.
É assim que as lesmas brincam, vão desenhando.
Dava-se conta do entardecer quando ouvia: "recolham lenha, tragam a roupa que já vai chover", no que ela prontamente atendia sem saber se a ordem era pra ela ou para as outras irmãs, mas a menina fazia tudo pra se livrar dos fininhos beliscões que às vezes somavam três até o dormir.
Surras de mãe eram bem mais fracas embora também viessem carregadas dos xingamentos importados do deserto: Ilanik tãlaia e sikín adrabik, eram ouvidos em mais de mil e uma noites. E a menina gelava mesmo quando as cintadas chegavam às pernas. Protegia-as com seus braços dançando movimentos de acudir o corpo dos ai, ai, ai e cobrir o rosto para não ver a cara do pai tão viçosa e bonita quando ele cantava ou só conversava, mas naqueles momentos o vermelho alegre do rosto virava a feição do cruz - credo.
De vez em quando a menina se alegrava com sorrisos bons inteiros só pra ela, como os de sua madrinha que neles até embrulhava uns caramelos e por vezes uma pequena moeda colorindo o carinho que ela tanto gostava.
Ia se inventando coragens, camuflando seus medos nas explosões de socos, choros, risos, fugindo das pessoas sem se encontrar perto ou longe de nada e ninguém e aí descobriu mexer no rádio. Ouvia música. Adorou. Nada mais a encantava antes de ir pra cama do que escutar uma coisa que toca igual a do seu Brisola e viu que deve ser do mesmo que a dona Lola tem. Toda noite, mais que Ave-Marias e Santos Anjos, sua oração era ouvir música e com ela adormecia debruçada na mesa.
Na escola, esse ainda pedaço de coisa ruim ou satanás, era a primeira a ser chamada para declamar, cantar ou representar. Que noite aquela dos tantos versos recitados no palco, vestida com seu uniforme de bandeirante... "sou filho dos montes, dos rios... " e olhando para os pracinhas da cidade, um deles parente seu, aclamados heróis, a pequena fardada, sob prolongadas palmas, recebia também uma medalha pelo segundo lugar no desempenho das tarefas escolares pois que é menino quem deve ganhar sempre o primeiro lugar, ora, onde já se viu.
Já com dez ou onze anos, ela se inquietava no religioso. Esgueirava-se pelos bancos do catecismo e queria ser Filha de Maria como todas as primas. Esforçava-se. Confessava os veniais, ajeitava-se nas procissões lá no fim quase ao escuro das velas sem nunca ser notada mas repetindo os "ora pro nobis". Meses seguidos de culpas e pecados, a menina se desesperava no desejo de ser e seguir igual aos carneirinhos, mas pobre excomungada, durou pouco a tentativa, pois " ela não fazia nada direito e a gente precisava sempre corrigir". Não conseguiu mais do que espiar alguns pecados quando beijava a medalhinha e dobrava a fita de tafetá azul que lhe prometia algum milagre, talvez um dia. Também no cofrinho guardou, não sem antes beijá-lo, um colorido Jesus menino que ela trocara por uns santinhos de coração sangrando e santas de cabeça inclinada com brancas mãos no além.
Foi crescendo a infância nos pequenos cachos dourados quando alguém disse pra mãe, deixando-a ouvir, que a cabecinha bonita da sua filha é tão parecida com a de São João, nossa! Até os olhinhos!
Aí a menina se interessou em conhecer melhor a cara desse santo com nome de criança de escola. Soube que na casa da don`Ana tinha um grandão na parede e foi lá várias vezes na semana e não despregava seus olhinhos do quadro, admirava o vermelho da roupinha daquele menino e o carneirinho que parecia daqueles que às vezes seu pai comprava e logo desaparecia.
Ele é santo? São João? Que diferença daqueles ardidos coloridos corações ensanguentados que se via em todas as casas e quantos nas igrejas! Este, pensava ela, nem precisa de milagres, esmolas e nem velas por perto. Acha que o carneirinho comia todas as flores. Era de pura alegria o rosto do menino safadinho que em vez de "Covas da Iria" gostava de traques, busca-pés e rabos de porco, pois era cantado nas rodas dos bailes e aos foguetórios. Grande encontro!
Companheiro São João era a alegria da escola o tempo inteiro e no natal, não era ele o da cestinha na "mangerona"?
Como é bom ter um verdadeiro santo que carrega um animalzinho. Como estava feliz, feliz agora que ela tem um amigo pra quem sorrir e ele em todo lugar que a via, sorria inteiro pra ela.
Carneirinho e São João
por que vocês são bonzinhos e eu não?
Não.
Carneirinho e seu João
porque vocês são bonzinhos
vamos brincar na procissão?
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