sábado, 17 de agosto de 2013

FERNANDO PESSOA (S)

Principalmente os estudantes brasileiros conhecem muito bem o poeta português Fernando Pessoa, nascido em 1.888 e morto em 1.935. 
Em todo livro de português, tem lá um poema dele.
Mas que negócio é esse de heterônimos?
Como pode uma só pessoa transformar-se em tantas personalidades e tão distintas entre si? 
Álvaro de Campos, Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares...
Quantas personagens habitavam dentro de Fernando Pessoa?
Seria essa a razão da morte prematura do poeta? 
E como começou tudo isso?
Leia esta carta enviada por Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de Janeiro de 1.935, de Lisboa, p
ublicada pela primeira vez em 1.937 na Revista Presença, após a morte do poeta, a qual também foi 
editada por Manuela Parreira da Silva e publicada por Assírio & Alvim, em 1.999, em Lisboa.
Está aí o motivo porque ele continua sendo cada vez mais contemporâneo.
Vai que ele ( ELE MESMO) ainda vive por aqui... 
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. 
Esbocei umas coisas em verso irregular (não ao estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. 
Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. 
(Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos, depois lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. 
Levei uns dias a elaborar o poeta, mas nada consegui. 
Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 —, acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. 
E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. 
Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. 
Abri com um título: “O Guardador de Rebanhos”. 
E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. 
Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. 
Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio também, os seis poemas que constituem “Chuva Oblíqua”, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… 
Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. 
Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajudei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. 
E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. 
Num jacto, e à maquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. 
Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. 
Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi dentro de mim as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. 
E parece que assim ainda se passa. 
Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes e como eu não sou nada na matéria.
Mais uns apontamentos nesta matéria… 
Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. 
Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. 
Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. 
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (à 1:30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes, e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. 
Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. 
Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. 
Álvaro de Campos é alto (1m, 75 de altura — mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. 
Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. 
Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. 
Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o “Opiário”. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?… 
Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. 
Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. 
Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. 
(O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa [Livro do Desassossego] é um constante devaneio. É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afetividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de tênue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos, como dizer “eu próprio” em vez de “eu mesmo”, etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. 
O difícil para mim, é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).

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