sexta-feira, 7 de novembro de 2014

NO BRASIL, JUIZ É DEUS "PARA OS POBRES"


EDITORIAL DE HOJE NO JORNAL "CRUZEIRO DO SUL", DE SOROCABA.




               O JUIZ QUE NÃO ERA DEUS



O caso da agente de trânsito condenada a pagar indenização a um juiz de direito abordado por ela em uma blitz da Operação Lei Seca, no Rio de Janeiro, tornou-se motivo de vergonha para o Judiciário e de indignação para os brasileiros, já cansados de ver as leis serem pisoteadas por aqueles que, uma vez investidos de poder e autoridade, comportam-se como intocáveis e se valem de suas funções para fugir às consequências de seus atos. 
O juiz João Carlos de Souza Corrêa, hoje titular do 18º Juizado Especial Criminal do RJ, foi parado pela agente Luciana Silva Tamburini em fevereiro de 2011, no Leblon. Ele estava sem habilitação e não portava os documentos de seu Land Rover, que não tinha placas. O juiz, conforme Luciana, teria tentado se prevalecer de sua função para não ser multado -- a famosa carteirada, que o juiz, naturalmente, nega. Os dois discutiram e Luciana manteve a multa. Corrêa deu voz de prisão para a agente, que se recusou a ir com ele para a delegacia. Quando um PM tentou algemá-la, Luciana afirmou que Corrêa era juiz, mas não era Deus. Inconformado, o juiz apresentou queixa à polícia. 
Luciana ingressou com uma ação por danos morais contra Corrêa, mas a juíza Mirella Letízia Guimarães Vizzini, da 36ª Vara Cível do Rio de Janeiro, entendeu que a autora "perdeu a razão" ao "ironizar uma autoridade pública" e a condenou a pagar R$ 5 mil ao juiz, por danos morais. A agente de trânsito recorreu da sentença no Tribunal de Justiça, mas a condenação foi mantida. "Ao apregoar que o demandado era "juiz, mas não Deus", a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa na sociedade", escreveu o desembargador José Carlos Paes, da 14ª Câmara Cível do TJ-RJ. 
A decisão, de um corporativismo clamoroso, inverteu vergonhosamente os papéis. Quem zombou do cargo de juiz não foi a agente de trânsito. Foi o próprio juiz, no momento em que se insurgiu contra uma punição corretíssima, consideradas as circunstâncias totalmente irregulares em que conduzia seu automóvel. Os detalhes do episódio mostram que Corrêa não se comportou, em todo o incidente, como alguém que admite não ter razão e se submete à lei. Se ele tivesse reconhecido seu erro, não teria havido discussão, nem tentativa de prender a agente que executava com zelo seu serviço, numa nítida tentativa de intimidá-la. 
Qualificada como ironia e falta de respeito pelos colegas do réu, a afirmação da agente de trânsito Luciana Tamburini é a mais pura verdade -- ao que parece, uma verdade incômoda, da qual alguns integrantes do Judiciário não gostam de ser lembrados: juiz não é Deus. Sua autoridade existe apenas em função de seu dever para com a sociedade. Por mais respeitável que seja o cargo, juízes não podem se considerar isentos das obrigações legais impostas a todos os cidadãos. Pelo contrário: o mínimo que se pode esperar, de um funcionário público que tem por função julgar pessoas acusadas de praticar atos ilegais, é que seja, na vida pública como na particular, cumpridor das leis. 
A sentença do desembargador José Carlos Paes afirma que Luciana zombou "do que a função [de juiz] representa na sociedade". Mas, tomando-se por parâmetro esse caso específico, o que inspira o comportamento do juiz e daqueles que julgaram o caso, além de prepotência, abuso de poder e impunidade? Não foi justiça o que a juíza de primeira instância e o TJ-RJ fizeram, ao endossar o comportamento do juiz e transferir a culpa para a agente de trânsito: foi uma indicação clara de que, para alguns brasileiros, o que vale não é o princípio constitucional de que "todos são iguais perante a lei", mas sim a velha máxima segundo a qual alguns são "mais iguais" do que os outros. 
É oportuna a disposição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de passar o caso em revista. A maneira como o episódio for conduzida pelo CNJ balizará o comportamento dos magistrados em casos semelhantes, e terá o poder de estimular ou inibir atitudes que, embora amparadas no argumento da proteção institucional, apequenam o Judiciário e o expõem ao ridículo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário