sábado, 4 de julho de 2015

DE LIMA BARRETO: SE PUDER, LEIA "O JORNALISTA", DEDICADO A RANULFO PRATA

  

A cidade de Sant'Ana dos Pescadores fora em tempos idos uma cidadezinha próspera. Situada entre o mar e a montanha que escondia vastas vargens férteis, e muito próximo do Rio, os fazendeiros das planuras transmontanas preferiam enviar os produtos de suas lavouras através de uma garganta, transformada em estrada, para, por mar, trazê-los ao grande empório da Corte. O contrário faziam com as compras que aí faziam. 
Dessa forma, erguida à condição de uma espécie de entreposto de uma zona até bem pouco fértil e rica, ela cresceu e tomou ares galhardos de cidade de importância. As suas festas de igreja eram grandiosas e atraíam fazendeiros e suas famílias, alguns tendo mesmo casas de recreio apalaçadas nela. 
O seu comércio era por isso rico com o dinheiro que os tropeiros lhe deixavam. Veio, porém, a estrada de ferro e a sua decadência foi rápida. O transporte das mercadorias de "serra-acima" se desviou dela e os seus sobrados deram em descascar como velhas árvores que vão morrer. Os mercadores ricos a abandonaram e os galpões de tropa desabaram. Entretanto, o sítio era aprazível, com as suas curtas praias alvas que foram separadas por desabamentos de grandes moles de granito da montanha verdejante do fundo do vilarejo, formando aglomerações de grossos pedregulhos.
A gente pobre, após a sua morte, deu em viver de pescarias, pois o mar ai era rumoroso e abundante de pescado de bom quilate. Tripulando grandes canoas de voga, os seus pescadores traziam o produto de sua humilde indústria, vencendo mil dificuldades, até Sepetiba e, daí, à Santa Cruz, onde ele era embarcado em trem de ferro até ao Rio de Janeiro. 
Os ricos de lá, além dos fabricantes de cal de marisco, eram os taverneiros que, nessas vendas, como se sabe, vendem tudo, mesmo casimiras e arreios, e são os banqueiros. 
Lavradores não havia e até frutas iam do Rio de Janeiro. 
As pessoas importantes eram o juiz de direito, o promotor, o escrivão, os professores públicos, o presidente da Câmara e o respectivo secretário. Este, porém, o Salomão Nabor de Azevedo, descendente dos antigos Nabores de Azevedo de "serra-acima" e dos Breves, ricos fazendeiros, era o mais. Era o mais porque, além disto, se fizera o jornalista popular do lugar. A idéia não fora dele, a de fundar - O Arauto, órgão dos interesses da cidade de Sant'Ana dos Pescadores; fora do promotor. Este veio a perder o jornal, de um modo curioso. O doutor Fagundes, o tal de promotor, começou a fazer oposição ao doutor Castro, advogado no lugar e, no tempo, presidente da Câmara. 
Nabor não via com bons olhos aquele e, certo dia, foi ao jornal e retirou o artigo do promotor e escreveu um descabelado de elogios ao doutor Castro, porque ele tinha suas luzes, como veremos. 
Resultado: Nabor, o nobre Nabor, foi nomeado secretário da Câmara e o promotor perdeu a importância de melhor jornalista local, que coube, daí por diante e para sempre, a Nabor. 
Como já disse, este Nabor recebera luzes num colégio de padres de Vassouras ou Valença, quando os pais eram ricos. O seu saber não era lá grande; não passava de gramaticazinha portuguesa, das quatro operações e umas citações históricas que aprendera com Fagundes Varela, quando este foi hóspede de seus pais, em cuja fazenda chegara, certa vez, de tarde, numa formidável carraspana e em trajes de tropeiro, calçado de tamancos.
O poeta gostara dele e lhe dera algumas noções de letras.
Lera o Macedo e os poetas do tempo, daí o seu pendor para cousas de letras e de jornalismo. 
Herdou alguma cousa do pai, vendera a fazenda e viera morar em Sant'Ana, onde tinha uma casa, também pela mesma herança. Casou aí com uma moça de alguma pecúnia e vivia a fazer política e a ler os jornais da Corte, que assinava. 
Deixou os romances e apaixonou-se por José do Patrocínio, Ferreira de Meneses, Joaquim Serra e outros jornalistas dos tempos calorosos da abolição. 
Era abolicionista, porque... os seus escravos ele os tinha vendido com a fazenda que herdara; e os poucos que tinha em casa, dizia que não os libertava, por serem da mulher. 
O seu abolicionismo, com a Lei de 13 de Maio, veio dar, naturalmente, algum prejuízo à esposa... Enfim, após a República e a Abolição, foi várias vezes subdelegado e vereador de Sant'Ana. 
Era isto, quando o promotor Fagundes lembrou-lhe a idéia de fundar um jornal na cidade. Conhecia aquele a mania do último, por jornais, e a resposta confirmou a sua esperança: — Boa idéia, "Seu" Fagundes! A "estrela do Abraão" (assim era chamada Sant'Ana) não ter um jornal! Uma cidade como esta, pátria de tantas glórias, de tão honrosas tradições, sem essa alavanca do progresso que é a imprensa, esse fanal que guia a humanidade - não é possível! — O diabo, o diabo... fez Fagundes. — Por que o diabo, Fagundes? — E o capital? — Entro com ele. 
O trato foi feito e Nabor, descendente dos Nabores de Azevedo e dos famigerados Breves, entrou com o cobre; e Fagundes ficou com a direção intelectual do jornal. 
Fagundes era mais burro e, talvez, mais ignorante do que Nabor; mas este deixava-lhe a direção ostensiva porque era bacharel. 
O Arauto era semanal e saía sempre com um artiguete landatório do diretor, à guisa de artigo de fundo, umas composições líricas, em prosa, de Nabor, aniversários, uns mofinos anúncios e os editais da Câmara Municipal. 
Às vezes, publicava certas composições poéticas do professor público. Eram sonetos bem quebrados e bem estúpidos, mas que eram anunciados como "trabalhos de um puro parnasiano que é esse Sebastião Barbosa, exímio educador e glória da nossa terra e da nossa raça". 

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