terça-feira, 8 de setembro de 2015

UM OLHAR DE FILHO SOBRE O CÂNCER DE MAMA


Ao fotografar o seio ausente da mãe, o carioca Lucas Gomes desperta uma questão: até quando a lei que garante a cirurgia plástica reparadora no SUS será ignorada?
CRISTIANE SEGATTO
07/09/2015 - Época

A atadura esgarçada contorna o tórax, mas não esconde a ausência do seio direito. A cicatriz é explícita. Os dedos sugerem muito trabalho e um casamento. Para ocultar a nudez, não há mãos, folhas ou a estola de pele das atrizes de Hollywood. Nada poderia ser mais eloquente que a panela amassada a proteger o peito. 

 
(Foto: Lucas Gomes)

De quem será o rosto da trabalhadora que representa o destino de tantas brasileiras? Até quando vamos aceitar que milhares sejam mutiladas ao final de uma dolorosa e inútil busca por diagnóstico e tratamento contra o câncer de mama?
Nos casos em que a perda da mama é inevitável, por que ela não é reconstruída com uma prótese de silicone? Desde 1999, uma lei garante que as pacientes façam cirurgia plástica reparadora pelo SUS. Em 2013, essa lei foi alterada para determinar que a reparação seja feita no mesmo momento da extração da mama, quando houver condições técnicas para isso.
Na impossibilidade de reconstrução imediata, a lei diz que a cirurgia será garantida assim que a paciente alcançar as condições clínicas necessárias. Existe a lei e existe o fato. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Mastologia, apenas 10% das brasileiras conseguem a reconstrução imediata do seio.
Por que a lei é sumariamente descumprida? Em geral, falta prótese e falta equipe capacitada para realizar cirurgia plástica. O que não falta é má vontade quando as pacientes têm pouco poder de pressão.
Imagens têm força. Emocionam e mobilizam. A desta página me fez refletir sobre um dos mais tristes temas da saúde feminina. Não estaríamos aqui discutindo sobre isso se o carioca Lucas Gomes, de 21 anos, não tivesse sido selecionado para participar de um curso de fotografia oferecido por um instituto de responsabilidade social.
Quando o professor propôs um projeto com tema livre, o rapaz não precisou pensar duas vezes. A família estaria em primeiro plano. “Sem ela, não seria nada”, me disse Lucas. 
O foco seria a mãe, Antonia, que sempre se portou como a fortaleza da casa.
Antonia cozinha. Essa é a vocação que melhor define o jeito de ser Antonia Maria do Nascimento Lage. 
Pernambuca, 54 anos, moradora de Jacarepaguá, mãe de quatro filhos. 
Quando Lucas teve a ideia de fotografar a mãe como ela é (em preto e branco e sem nenhuma produção), Antonia levou um susto. “Não queria chocar as pessoas, mas gostei do resultado. Achei que ficou diferente”, diz ela.

Cozinheira de um buffet carioca, Antonia descobriu um pequeno nódulo na mama direita em dezembro de 2008. Virada de ano é quando ela mais trabalha. A saúde ficou em segundo plano. Só em março conseguiu fazer os exames de imagem.
Meses se passaram sem que ela conseguisse fazer uma biópsia. A fila no Instituto Nacional do Câncer (Inca) era grande. A família toda se mobilizou. O marido pediu, mandou carta, reclamou – e nada. Um drama que se repete diariamente com pacientes de baixa renda no país todo.
Antonia só conseguiu ser atendida quando os patrões pagaram uma consulta particular. A cirurgia aconteceu em dezembro de 2010, dois anos depois dos primeiros sinais da doença. Tarde demais para salvar o seio.
Não foi possível fazer a reconstrução da mama na mesma cirurgia. Era preciso aguardar os resultados do tratamento. Vieram os incômodos da quimioterapia e da radioterapia. Durante esse duro período, a família, que sempre morou de aluguel, enfrentou mais uma mudança de endereço. Fragilizada, Antonia precisava de ajuda até para tomar banho.
Assustado, Lucas assistia aos danos causados pela doença e pelo tratamento. Em vez de relaxar, repousar, ficar de cama, Antonia trabalhava. Sentia dores, andava devagar, mas fazia questão de cozinhar para a família. O farfalle com molho quatro queijos, o preferido do filho, continuou a chegar à mesa.
Com essa dor e com esse prazer, Lucas fez a arte que hoje tenho a felicidade de compartilhar com vocês. “Para mim, a falta do seio é normal. É como se ele nunca tivesse estado ali”, diz ele. Ver a mãe viva, cinco anos depois do início do tratamento, é o que importa. “A força dela é o que mais me inspira. Minha mãe venceu por ela mesma”.
Antonia nunca foi de lamentar a perda do seio. “Sou positiva, alegre”, diz ela. Está confiante de que a alta virá em dezembro, quando completar cinco anos sem sinal da doença. Gostaria de fazer a reconstrução da mama, se os médicos concluírem que ela tem condições clínicas para isso. O que falta é dinheiro. Ou a chance de vencer a peneira para ser operada pelo SUS, como a lei determina.
Lucas é estagiário de design gráfico numa agência de publicidade. Pretende continuar a fotografar, nem que seja por hobby. A foto de Lucas e outros trabalhos dos alunos da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia ficarão expostos até o dia 04 de outubro no Instituto Oi Futuro (Rua Visconde de Pirajá, 54), no Rio. 

 
(Foto: Acervo Pessoal)
Acredito no poder mobilizador de imagens e histórias como a de Lucas e Antonia. E você?
(Cristiane Segatto escreve às segundas-feiras para a revista ÉPOCA.

Nenhum comentário:

Postar um comentário