A desigualdade não é imoral ✰ Artigo de João Pereira Coutinho
Fato: Cristiano Ronaldo tem mais dinheiro do que eu. Tem mais casas. Tem mais carros. Tem mais roupas. E, quando ele se despedir do futebol, é provável que Ronaldo tenha uma aposentadoria mais confortável do que a minha (digo "é provável" porque o futuro é sempre incerto por definição).
Pergunto: existe entre mim e Ronaldo um problema de "desigualdade econômica"? E, já agora, devemos combatê-la porque todas as desigualdades são imorais?
Calma, leitor, não responda já. Afinal de contas, eu tenho um casa. Tenho um carro. Tenho um salário. Os meus vizinhos não têm nada. Metade do meu país também não. Em nome de uma sociedade verdadeiramente igualitária, será que eu e os meus compatriotas devemos viver no mesmo patamar de pobreza?
Essas são algumas questões que Harry G. Frankfurt analisa em "On Inequality" (sobre a igualdade), um dos livros do ano que quase passou ao lado do meu radar (obrigado, "L.A. Review of Books").
Neste pequeno grande livro, Frankfurt vira o debate do avesso. Os políticos gostam de combater as "desigualdades" porque acreditam que a desigualdade é sempre imoral. Mas, como vimos nos dois primeiros exemplos, nem sempre a desigualdade é imoral (Ronaldo tem muito; eu tenho o suficiente) e nem sempre a igualdade é invejável (uma sociedade onde todos são igualmente pobres não é uma sociedade decente).
A principal conclusão de Frankfurt é que aquilo que devemos considerar "imoral" não é a desigualdade "per se". O que é relevante é a existência de pobreza. Ninguém se comove com a desproporção entre a fortuna de Ronaldo e o meu conforto tipicamente "burguês". Coisa diferente é saber que o meu vizinho não tem o que comer ou vestir.
Consequentemente, Frankfurt afirma —e bem— que a política deve abandonar as suas fantasias igualitaristas e concentrar-se numa "doutrina da suficiência", um conceito muito mais complexo de realizar do que simplesmente dividir o bolo em fatias rigorosamente iguais.
O objetivo não é todos terem o mesmo —uma "engenharia social" que leva ao desastre porque os recursos são limitados. O objetivo é todos terem o suficiente. E o que é "suficiente"?
A resposta a essa pergunta leva-nos à segunda crítica que Frankfurt dispara contra o igualitarismo. Porque o problema do igualitarismo é pensar a situação dos mais pobres sempre em relação aos mais ricos. Uma "doutrina da suficiência" prefere olhar para as pessoas a partir das suas circunstâncias e necessidades pessoais.
Para regressar à metáfora do bolo: eu posso dividi-lo em dez fatias iguais para alimentar as dez pessoas sentadas à mesa. Mas esse igualitarismo cego pode ser uma forma perversa de desigualdade se eu não souber primeiro quem é o faminto; quem é o guloso; e quem já almoçou antes de chegar para a sobremesa. Uma "doutrina da suficiência" não desperdiça recursos com o guloso e prefere reforçar a dose do faminto.
O breve ensaio de Frankfurt é um pequeno prodígio de inteligência e elegância literária - qualidades raríssimas na reflexão filosófica. Pena que alguns pontos do livro não estejam suficientemente desenvolvidos.
O autor condena a pobreza; mas condena igualmente os excessos de riqueza por ver neles uma ameaça política e social para a "saúde" das democracias.
Conheço o argumento - desde Aristóteles. Duas observações. A primeira é que Frankfurt não mostra como funciona essa ameaça. Admito que ela exista. Mas gostaria de ler um pouco mais sobre o bicho.
Pessoalmente, não creio que o problema esteja na existência de riqueza excessiva; mas antes na riqueza ilegalmente obtida —por exemplo, à custa dos mais pobres. A ideia de que "toda a propriedade é um roubo" não passa de uma proclamação ideológica, sem qualquer validade empírica. A minha casa não foi roubada a ninguém. E a sua?
Por outro lado, concordo com Frankfurt sobre a importância de discriminar na hora de distribuir o bolo. Mas essa discriminação não deve ser apenas material (dar mais bolo ao faminto, por exemplo). Deve ser também moral. Existe uma diferença entre o faminto que não consegue encontrar emprego; e o faminto que simplesmente não quer trabalhar.
A minha fatia extra de bolo só iria para o primeiro, não para o segundo.
Fato: Cristiano Ronaldo tem mais dinheiro do que eu. Tem mais casas. Tem mais carros. Tem mais roupas. E, quando ele se despedir do futebol, é provável que Ronaldo tenha uma aposentadoria mais confortável do que a minha (digo "é provável" porque o futuro é sempre incerto por definição).
Pergunto: existe entre mim e Ronaldo um problema de "desigualdade econômica"? E, já agora, devemos combatê-la porque todas as desigualdades são imorais?
Calma, leitor, não responda já. Afinal de contas, eu tenho um casa. Tenho um carro. Tenho um salário. Os meus vizinhos não têm nada. Metade do meu país também não. Em nome de uma sociedade verdadeiramente igualitária, será que eu e os meus compatriotas devemos viver no mesmo patamar de pobreza?
Essas são algumas questões que Harry G. Frankfurt analisa em "On Inequality" (sobre a igualdade), um dos livros do ano que quase passou ao lado do meu radar (obrigado, "L.A. Review of Books").
Neste pequeno grande livro, Frankfurt vira o debate do avesso. Os políticos gostam de combater as "desigualdades" porque acreditam que a desigualdade é sempre imoral. Mas, como vimos nos dois primeiros exemplos, nem sempre a desigualdade é imoral (Ronaldo tem muito; eu tenho o suficiente) e nem sempre a igualdade é invejável (uma sociedade onde todos são igualmente pobres não é uma sociedade decente).
A principal conclusão de Frankfurt é que aquilo que devemos considerar "imoral" não é a desigualdade "per se". O que é relevante é a existência de pobreza. Ninguém se comove com a desproporção entre a fortuna de Ronaldo e o meu conforto tipicamente "burguês". Coisa diferente é saber que o meu vizinho não tem o que comer ou vestir.
Consequentemente, Frankfurt afirma —e bem— que a política deve abandonar as suas fantasias igualitaristas e concentrar-se numa "doutrina da suficiência", um conceito muito mais complexo de realizar do que simplesmente dividir o bolo em fatias rigorosamente iguais.
O objetivo não é todos terem o mesmo —uma "engenharia social" que leva ao desastre porque os recursos são limitados. O objetivo é todos terem o suficiente. E o que é "suficiente"?
A resposta a essa pergunta leva-nos à segunda crítica que Frankfurt dispara contra o igualitarismo. Porque o problema do igualitarismo é pensar a situação dos mais pobres sempre em relação aos mais ricos. Uma "doutrina da suficiência" prefere olhar para as pessoas a partir das suas circunstâncias e necessidades pessoais.
Para regressar à metáfora do bolo: eu posso dividi-lo em dez fatias iguais para alimentar as dez pessoas sentadas à mesa. Mas esse igualitarismo cego pode ser uma forma perversa de desigualdade se eu não souber primeiro quem é o faminto; quem é o guloso; e quem já almoçou antes de chegar para a sobremesa. Uma "doutrina da suficiência" não desperdiça recursos com o guloso e prefere reforçar a dose do faminto.
O breve ensaio de Frankfurt é um pequeno prodígio de inteligência e elegância literária - qualidades raríssimas na reflexão filosófica. Pena que alguns pontos do livro não estejam suficientemente desenvolvidos.
O autor condena a pobreza; mas condena igualmente os excessos de riqueza por ver neles uma ameaça política e social para a "saúde" das democracias.
Conheço o argumento - desde Aristóteles. Duas observações. A primeira é que Frankfurt não mostra como funciona essa ameaça. Admito que ela exista. Mas gostaria de ler um pouco mais sobre o bicho.
Pessoalmente, não creio que o problema esteja na existência de riqueza excessiva; mas antes na riqueza ilegalmente obtida —por exemplo, à custa dos mais pobres. A ideia de que "toda a propriedade é um roubo" não passa de uma proclamação ideológica, sem qualquer validade empírica. A minha casa não foi roubada a ninguém. E a sua?
Por outro lado, concordo com Frankfurt sobre a importância de discriminar na hora de distribuir o bolo. Mas essa discriminação não deve ser apenas material (dar mais bolo ao faminto, por exemplo). Deve ser também moral. Existe uma diferença entre o faminto que não consegue encontrar emprego; e o faminto que simplesmente não quer trabalhar.
A minha fatia extra de bolo só iria para o primeiro, não para o segundo.
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