domingo, 20 de novembro de 2016

A EXCLUSÃO SOCIAL COMEÇA EM CASA, A PARTIR DO MOMENTO EM QUE UM CASAL DEIXA DE IMPORTAR-SE COM A FORMAÇÃO DE SEUS FILHOS PARA BUSCAR SOMENTE O SEU BEL-PRAZER


Exclusão Social - Sarah Escorel

A origem mais contemporânea do termo exclusão social é atribuída ao título do livro de René Lenoir, Les exclus: un français sur dix (‘Os excluídos: um em cada dez franceses’), publicado em 1974, ainda que o trabalho não contivesse qualquer elaboração teórica do conceito de exclusão social. 
A preocupação do então Secretário de Ação Social do governo gaullista de Jacques Chirac concentrava-se nos ‘inadaptados sociais’, nos pobres que precisavam ser amparados por ações governamentais, representando gastos sociais crescentes. 
O título foi conferido pelo editor baseado no sucesso dos trabalhos de Foucault, principalmente em sua história sobre a loucura (Didier, 1996). 
No momento da publicação do livro de Lenoir, quando a situação de pobreza na França parecia ser residual e superável, a noção de exclusão estava relacionada à sua dimensão subjetiva e não à sua dimensão objetiva, econômico-ocupacional.
Antes de ganhar o destaque no título do livro, referências à exclusão e excluídos eram utilizadas nos trabalhos sobre pobreza e desigualdades sociais sem suscitar polêmicas ou debates. 
Até então essas análises referiam-se à underclass, e, posteriormente, à marginalidade. 
A noção de underclass foi utilizada para classificar moradores dos guetos norte-americanos, com forte carga preconceituosa e estigmatizante que parecia estabelecer quase um ‘destino’ de gravidez precoce, desemprego, alcoolismo, família desestruturada e criminalidade. 
Numa direção teórica oposta, com forte influência do marxismo, na década de 1960, marginalidade era um conceito integrante da teoria que buscava entender a inserção marginal no processo produtivo capitalista nas economias dependentes da América Latina.
Em 1976, na França, o processo de pauperização começou a atingir não apenas os grupos populacionais ‘tradicionalmente marginalizados’ (imigrantes e moradores das periferias), mas também os que até então pareciam inseridos socialmente e usufruindo, mesmo que nas margens do sistema capitalista, dos benefícios do desenvolvimento econômico e da proteção social. A partir de meados dos anos 80, frente a uma situação objetiva de aumento das desigualdades e de mudança do perfil de pobreza, a noção de exclusão social estabeleceu-se no debate público e acadêmico e foi em solo francês que o tema adquiriu preponderância e estatuto teórico, relevância e publicidade. 
Exclusão social passou a ser usado para denominar o fenômeno integrante de uma “nova questão social” (Rosanvallon, 1995; Castel, 1991, 1998), problemática específica do final de século XX, cujo núcleo duro foi identificado na crise do assalariamento como mecanismo de inserção social. 
Essa crise, por sua vez, era oriunda de mudanças no processo produtivo e na dinâmica de acumulação capitalista gerando a diminuição de empregos, inviabilizando essa via de constituição de solidariedades e de inserção social, constituindo os ’inválidos pela conjuntura’ e provocando fraturas na coesão social. 
A exclusão foi então percebida como uma marca profunda de disfunção societal que assume uma multiplicidade de formas. 
O conceito expressa a existência de um fenômeno diferente de uma ’nova pobreza’, e ao mesmo tempo, tem a capacidade de vocalizar a indignação com esse mundo partido em dois.
No Brasil, na década de 1990, estudiosos também identificam uma nova problemática social a exigir uma conceituação própria. No entanto, as análises tendem a considerar a emergência do fenômeno contemporâneo como expressão de um processo com raízes históricas ancestrais na sociedade brasileira, ao longo do qual ocorreram situações de exclusão que deixaram marcas profundas em nossa sociabilidade como a escravidão. 
A partir dessa marca estrutural a sociedade apresentou, nos diversos períodos históricos, faces diferenciadas, expressões de processos sociais presididos por uma mesma ‘lógica’ econômica e/ou de cidadania excludente. 
Na década de 80, a transição do regime político e os ciclos econômicos recessivos aumentaram a visibilidade da ’questão social’. 
Na década de 90, e não antes, surgiram os sinais evidentes de uma piora das condições de vida. A exclusão social tornou-se visível e contundente a partir da população de rua e da violência urbana (Nascimento, 1993).
No processo de construção do conceito de exclusão social este tem sido contraposto e diferenciado de uma série relativamente abrangente de outros termos e categorias, que acabam por integrar o ‘vocabulário’ da exclusão: desvinculação, desfiliação, desqualificação, precariedade, vulnerabilidade, marginalização, discriminação e segregação social. 
Pelo lado positivo do fenômeno há também distinções a fazer entre inclusão social e justiça social, capital social, integração, emancipação, autonomia e empoderamento.
A exclusão social integra o campo da pobreza e das desigualdades embora seja diferente destes dois conceitos e contenha em si situações e processos que podem se desenvolver fora do âmbito da pobreza e das desigualdades sociais, como por exemplo, a impossibilidade dos homossexuais constituírem uniões estáveis e terem direito à herança de seus companheiros ou companheiras. 
Entretanto, a maior parte dos processos de exclusão social está relacionada e tem consequências diretas nas condições econômicas dos grupos populacionais, e se fazem mais presentes em situações de intensa pobreza e desigualdades sociais.
A pobreza absoluta significa não ter acesso aos bens e serviços essenciais, é a impossibilidade de suprir as necessidades básicas, alimentares e não-alimentares (Lopes, 1992). 
A indigência ou miséria é o afastamento de um mínimo necessário à manutenção da sobrevivência física de um indivíduo posto que não consegue “adquirir a cesta básica de alimentos que lhe proporcione nutrição suficiente para uma vida ativa e produtiva” (Gershman & Irwin, 2000, p. 15).
A pobreza relativa, a desigualdade, é a falta de recursos ou de consumo em relação a padrões usuais ou aprovados pela sociedade do que é considerado essencial para uma vida digna. As desigualdades sociais expressam as modalidades e os mecanismos mediante os quais numa dada sociedade são distribuídos bens e recursos, atribuindo posições diferenciadas e relativas aos indivíduos e grupos em relação ao acesso aos bens, e também em relação a uma escala de valores mediante a qual estes lugares sociais são avaliados. 
As três dimensões essenciais do processo de estratificação são a riqueza, o prestígio e o poder (Cavalli, 1991). 
Nas sociedades ocidentais e modernas, ou melhor, no modo de produção capitalista, o fato fundamental que orienta a estratificação é a propriedade dos meios de produção e a divisão social do trabalho, conformando um sistema de classes sociais.
O conceito de exclusão social amplia as dimensões de análise da pobreza e das desigualdades.
É o processo pelo qual indivíduos ou grupos são total ou parcialmente excluídos de participarem integralmente da sociedade em que vivem (European Foundation for the Improvement of Living and Working Condition, apud Gershman & Irwin, 2000, p.16).
São processos de vulnerabilidade, fragilização ou precariedade e até ruptura dos vínculos sociais em cinco dimensões da existência humana em sociedade: ocupacionais e de rendimentos; familiares e sociais proximais; políticas ou de cidadania; culturais; e, no mundo da vida onde se inserem os aspectos relacionados com a saúde (Escorel, 1999, p. 75).
A exclusão consiste de processos dinâmicos, multidimensionais produzidos por relações desiguais de poder que atuam ao longo de quatro dimensões principais – econômica, política, social e cultural –, e em diferentes níveis incluindo individual, domiciliar, grupal, comunitário, nacional e global. Resulta em um continuum de inclusão/exclusão caracterizado por acessos desiguais aos recursos, capacidades e direitos que produzem iniquidades em saúde (Popay et al, 2008, p. 36).
A noção de exclusão social designa ao mesmo tempo um processo e um estado. 
Uma trajetória ao longo de um eixo inserção/exclusão, um movimento que exclui, processos potencialmente excludentes, vetores de exclusão ou vulnerabilidades e, ao mesmo tempo, um estado, a condição de exclusão, o resultado do movimento. Nessa condição (estado) costuma-se verificar a sobreposição das situações de exclusão num mesmo grupo social. Há uma somatória, uma concentração dos critérios sociais de discriminação, estigmatização e exclusão em certos grupos a um ponto tal que a exclusão social caracteriza o contexto de sociabilidade.
Processos excludentes produzem uma distribuição injusta de recursos e acessos desiguais a capacidades e direitos de: criar as condições necessárias para que todas as populações tenham e possam ir além das necessidades básicas; permitir sistemas sociais participativos e coesos; valorizar a diversidade; garantir a paz e os direitos humanos; e, sustentar sistemas ambientais (Popay et al, 2008, p.36 ).
Nem todos concordam que exclusão social seja uma categoria explicativa de fenômenos sociais contemporâneos. A maior crítica que é feita ao conceito é que, assim como underclass e marginalidade, traz implícita uma visão dicotômica, que divide o todo em duas partes, perdendo a complexidade das relações sociais envolvidas no fenômeno. Não existiria um dentro (inclusão) e um fora (exclusão) da sociedade. Todas as relações constituiriam uma mesma tessitura social, mais ou menos esgarçada, porém sempre tecida.
A noção passou a ser criticada tanto pelos alegados limites em sua capacidade explicativa como em função do uso abusivo do termo. (...) [Sua] contribuição é mais relevante no campo da ação pública do que no da pesquisa social. Exclusão social remeteria ao enfraquecimento da participação dos indivíduos nas redes sociais mais fundamentais do contexto em que vivem (...) enfraquecimento, mas não descarte, abandono, porque o excluído pertence ao sistema em relação ao qual ele tende a ser colocado à margem (Zioni, 2006, p. 24 ).
No campo da saúde, a exclusão social foi abordada em trabalho conjunto realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPS), relativo à Extensão da Proteção Social em Saúde (EPSS,1999), posteriormente desenvolvido pela OPS (2001, 2003) com a Agência Sueca para o Desenvolvimento Internacional.
A OPS define exclusão social como um processo estrutural, multidimensional, que envolve a falta de recursos e oportunidades e a falta de pertencimento como um produto da ruptura dos laços sociais que permitem que os indivíduos integrem uma rede social (OPS, 2003). 
A exclusão em saúde, fenômeno integrante, mas independente da exclusão social, constitui a negação do direito de uma pessoa ou um grupo de satisfazer suas necessidades em saúde e pode adotar diferentes formas em função de fatores geográficos, culturais, econômicos e sociais (OIT & OPS, 1999).
A exclusão em saúde tem em sua origem três dimensões: falta de acesso; problemas de financiamento; e baixa dignidade da atenção (qualidade e oportunidade dos serviços). Portanto, a proteção social em saúde (EPSS), direito dos cidadãos e dever do Estado, deve garantir: o acesso aos serviços eliminando qualquer tipo de barreira; a segurança financeira dos domicílios; e a atenção com qualidade e dignidade.
A exclusão social em saúde tende a ser maior em sistemas de saúde que apresentam uma ou mais de quatro características: segmentação ou coexistência de subsistemas com diferentes arranjos de financiamento, filiação e prestações que segmentam a população segundo seu nível de renda ou capacidade de contribuição; fragmentação ou existência de múltiplas entidades não integradas dentro de um mesmo subsistema que aumentam a ineficiência dos recursos; predomínio do pagamento direto dos serviços ou um alto gasto individual; e a frágil reitoria manifesta na ausência de regras justas nas relações entre usuários e prestadores (OPS, 2002 apud Hernández et al, 2008).
Pesquisas realizadas pela OPS (2003) identificaram, na região das Américas, que a exclusão em saúde está fortemente associada com a pobreza, a marginalidade, a discriminação racial e outras formas de exclusão relacionadas a: características culturais, precariedade do emprego, subemprego e desemprego, isolamento geográfico, falta de acesso aos serviços públicos e baixo nível educacional das pessoas. O perfil dos grupos e indivíduos vulneráveis a processos de exclusão nos sistemas de saúde é, em sua maioria, de pobres, idosos, mulheres, crianças, grupos étnicos, trabalhadores informais, desempregados e subempregados e população rural, indicando que a exclusão em saúde reitera os processos excludentes que estão vigentes na sociedade.
Um enfoque diferenciado das relações entre exclusão social e iniqüidades em saúde veio à luz com a constituição da Comissão de Determinantes Sociais em Saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), que estimulou a composição de nove redes de conhecimento entre as quais a Rede de Conhecimentos sobre Exclusão Social
Em seu Relatório Final, o grupo de pesquisadores (Popay et al, 2008) ressalta a importância da abordagem processual da exclusão social em contraposição ao que vem sendo feito correntemente por órgãos e unidades de combate à exclusão social que concentram suas preocupações e ações em grupos excluídos, em situações extremas, desconsiderando os processos causais e, preconizando políticas focalizadas minoram as conseqüências mas não atingem as causas dos processos excludentes que continuam a produzir grupos de excluídos.
Focando a atenção em processos incrustados nas relações de poder, em questões de mediação e intervenção (quem está sendo excluído, por quem e como respondem?) e na natureza multidimensional e inter-relacionada das iniqüidades econômicas e sociais, [a categoria de] exclusão social provê novas compreensões sobre os determinantes das desigualdades sociais em saúde e fornece novas direções para políticas e ações reparadoras (Popay et al, 2008, p. 37).
A estratificação social produzida nas quatro dimensões – social, política, econômica e cultural – em que indivíduos, grupos, comunidades ou países estão posicionados em situações de maior ou menor inserção, experimentando processos mais ou menos excludentes, está relacionada com a exposição diferenciada a circunstâncias prejudiciais para a saúde. E, ao mesmo tempo, essa posição social estabelece as capacidades (de ordem biológica, social, psicológica e econômica) das pessoas de se protegerem (ou não) dessas circunstâncias, assim como possibilita ou restringe seu acesso aos serviços de saúde e a outros serviços essenciais para a proteção e promoção da saúde. Esses processos criam desigualdades em saúde que retroalimentam e aumentam as iniqüidades em relação à exposição de fatores de vulnerabilidade e nas capacidades de proteção, aprofundando a diferenciação e estratificação social (Popay et al, 2008).
Embora seja pequeno o número de pesquisas adotando o conceito de exclusão social como alavanca analítica para compreender as causas das desigualdades em saúde, é possível identificar tanto no plano teórico quanto no empírico as relações entre exclusão social e desigualdades em saúde. Essas relações são de ordem constitucional e instrumental. Constitucional, pois a participação restrita nas relações econômicas, sociais, políticas e culturais tem impacto negativo na saúde e no bem-estar. Instrumental, na medida em que essas restrições resultam em outras privações que contribuem para o adoecimento e piores condições de saúde. 
O modelo elaborado pela Rede de Conhecimento sobre Exclusão Social fornece um guia útil para o desenvolvimento de políticas e ações direcionadas para reverter os processos excludentes, e um marco de avaliação para examinar a adequação e o impacto de tais políticas e ações (Popay et al, 2008).

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