a) Paraíso interrompido
"Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar". Com essas palavras, Deus expulsou Adão e Eva do Jardim do Éden, do eterno paraíso em que estariam imersos até o fim dos tempos, não fosse pelo cometimento da primeira das blasfêmias. Por comer do fruto proibido, foram arrancados da infinita quietude e atirados contra a incessante tormenta. A punição que se lhes infligia era tirar da terra o sustento, derramar o suor do rosto para obter-se o pão diário. Em suma, em razão de haverem desobedecido as suas ordens, Deus castigava os homens e as mulheres – os que são e os que virão – com a imposição de um verdadeiro martírio, mas que, a nós, homens modernos de agora, se afigura nada além de trivial: o trabalho.
Não seria exagero afirmar que a dispersão do paraíso notabiliza-se como um dos mitos fulcrais da civilização ocidental a respeito da trajetória humana. E no centro dessa narrativa encontra-se a categoria do trabalho, que acompanha o gênero humano desde tempos imemoriais e atravessa o limiar entre os séculos de forma perene. Tendo em vista o estabelecimento de um modelo de organização calcado em um sistema produtivo, organizamo-nos conforme uma lógica de fracionamento temporal inspirada na divisão do trabalho. Essa lógica indica a alternância entre dia e noite, e demarca e limita os momentos de trabalho e os momentos de repouso; pelo menos um, e tão somente um, dos dias da semana (o “dia do Senhor”, o Domingo, do latim “dies Domenica”) é reservado ao descanso. Assim teria sido a criação do universo – anterior mesmo ao “pecado original” e à imposição do trabalho como pena: “Assim os céus, a terra e todo o seu exército foram acabados. E havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou o dia sétimo, e o santificou: porque nele descansou de toda a sua obra que Deus criara e fizera”. Aos seis dias de duro trabalho, sucede o dia de descanso. Ao dia em que os fiéis se reuniam em torno da Igreja (o Domingo, o dia do Senhor) sucedem os dias de comércio, os dias de “feira”: a segunda-feira, a terça-feira, a quarta-feira... A divisão do ano conforme as estações (365 dias, em média, divididos em 12 meses, cada qual composto de semanas de 7 dias), por sua vez, obedecia principalmente aos imperativos do planejamento das atividades agrícolas.
Mas a gênese da atividade humana fundamental evoca um infortúnio: etimologicamente, o vocábulo “trabalho” provém do latim tripalium – agregação das palavras tri (“três) e palus (“pau”). Tripalium era como se denominava o instrumento de tortura romano, uma espécie de tripé cravado no chão, no qual eram supliciados os escravos. Trabalho remonta, destarte, à ideia de tortura; aqueles que trabalhavam eram os escravos, não por acaso pessoas destituídas de posses e honrarias. A mesma representação foi incorporada pelo idioma francês por meio do verbo travailler, que significava inicialmente sentir dor ou sofrer, e, posteriormente, cumprir uma atividade exaustiva, dura, desgastante. Aqueles que trabalhavam, no sentido exposto, eram os camponeses, agricultores, pedreiros, artesãos etc. Registra-se que somente a partir do século XIV o verbo “trabalhar” generalizou-se no sentido que ora lhe atribuímos: aplicação das forças, faculdades, talentos e habilidades humanas com o escopo de alcançar um determinado fim, “toda atividade realizada pelo homem civilizado que transforma a natureza com sua inteligência”.
Dificilmente a definição pregressa estaria em conformidade com a concepção que atualmente compartilhamos. Trabalhar é visto, agora, como um ato existencial, vital, e até mesmo emancipatório, que confere sentido e propósito à existência humana; que a um só tempo dignifica, redime e liberta. Ao redor do trabalho se constrói toda a realidade social, em função dele se erige todo planejamento individual e comum, são feitos os cálculos, os questionamentos e as escolhas primordiais para os indivíduos e para as coletividades. Parece insinuar-se um abismo intransponível entre ambas as concepções exibidas: de um lado, o trabalho como penúria, e, de outro, o trabalho como libertação. Como explicar uma tal oscilação semântica através da história? Quais circunstâncias fizeram do vil e ímpio trabalho uma espécie de divindade contemporânea?
Leia o artigo na íntegra.
*Antonio Oneildo Ferreira é Diretor-Tesoureiro do Conselho Federal da OAB. Especialista em Direito Trabalhista e Sindical. Pós-graduado em Direito Constitucional.
"Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar". Com essas palavras, Deus expulsou Adão e Eva do Jardim do Éden, do eterno paraíso em que estariam imersos até o fim dos tempos, não fosse pelo cometimento da primeira das blasfêmias. Por comer do fruto proibido, foram arrancados da infinita quietude e atirados contra a incessante tormenta. A punição que se lhes infligia era tirar da terra o sustento, derramar o suor do rosto para obter-se o pão diário. Em suma, em razão de haverem desobedecido as suas ordens, Deus castigava os homens e as mulheres – os que são e os que virão – com a imposição de um verdadeiro martírio, mas que, a nós, homens modernos de agora, se afigura nada além de trivial: o trabalho.
Não seria exagero afirmar que a dispersão do paraíso notabiliza-se como um dos mitos fulcrais da civilização ocidental a respeito da trajetória humana. E no centro dessa narrativa encontra-se a categoria do trabalho, que acompanha o gênero humano desde tempos imemoriais e atravessa o limiar entre os séculos de forma perene. Tendo em vista o estabelecimento de um modelo de organização calcado em um sistema produtivo, organizamo-nos conforme uma lógica de fracionamento temporal inspirada na divisão do trabalho. Essa lógica indica a alternância entre dia e noite, e demarca e limita os momentos de trabalho e os momentos de repouso; pelo menos um, e tão somente um, dos dias da semana (o “dia do Senhor”, o Domingo, do latim “dies Domenica”) é reservado ao descanso. Assim teria sido a criação do universo – anterior mesmo ao “pecado original” e à imposição do trabalho como pena: “Assim os céus, a terra e todo o seu exército foram acabados. E havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou o dia sétimo, e o santificou: porque nele descansou de toda a sua obra que Deus criara e fizera”. Aos seis dias de duro trabalho, sucede o dia de descanso. Ao dia em que os fiéis se reuniam em torno da Igreja (o Domingo, o dia do Senhor) sucedem os dias de comércio, os dias de “feira”: a segunda-feira, a terça-feira, a quarta-feira... A divisão do ano conforme as estações (365 dias, em média, divididos em 12 meses, cada qual composto de semanas de 7 dias), por sua vez, obedecia principalmente aos imperativos do planejamento das atividades agrícolas.
Mas a gênese da atividade humana fundamental evoca um infortúnio: etimologicamente, o vocábulo “trabalho” provém do latim tripalium – agregação das palavras tri (“três) e palus (“pau”). Tripalium era como se denominava o instrumento de tortura romano, uma espécie de tripé cravado no chão, no qual eram supliciados os escravos. Trabalho remonta, destarte, à ideia de tortura; aqueles que trabalhavam eram os escravos, não por acaso pessoas destituídas de posses e honrarias. A mesma representação foi incorporada pelo idioma francês por meio do verbo travailler, que significava inicialmente sentir dor ou sofrer, e, posteriormente, cumprir uma atividade exaustiva, dura, desgastante. Aqueles que trabalhavam, no sentido exposto, eram os camponeses, agricultores, pedreiros, artesãos etc. Registra-se que somente a partir do século XIV o verbo “trabalhar” generalizou-se no sentido que ora lhe atribuímos: aplicação das forças, faculdades, talentos e habilidades humanas com o escopo de alcançar um determinado fim, “toda atividade realizada pelo homem civilizado que transforma a natureza com sua inteligência”.
Dificilmente a definição pregressa estaria em conformidade com a concepção que atualmente compartilhamos. Trabalhar é visto, agora, como um ato existencial, vital, e até mesmo emancipatório, que confere sentido e propósito à existência humana; que a um só tempo dignifica, redime e liberta. Ao redor do trabalho se constrói toda a realidade social, em função dele se erige todo planejamento individual e comum, são feitos os cálculos, os questionamentos e as escolhas primordiais para os indivíduos e para as coletividades. Parece insinuar-se um abismo intransponível entre ambas as concepções exibidas: de um lado, o trabalho como penúria, e, de outro, o trabalho como libertação. Como explicar uma tal oscilação semântica através da história? Quais circunstâncias fizeram do vil e ímpio trabalho uma espécie de divindade contemporânea?
Leia o artigo na íntegra.
*Antonio Oneildo Ferreira é Diretor-Tesoureiro do Conselho Federal da OAB. Especialista em Direito Trabalhista e Sindical. Pós-graduado em Direito Constitucional.
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