segunda-feira, 20 de março de 2017

PARA QUEM GOSTA DE FILOSOFIA

Resenha do livro: O atiçador de Wittgenstein
(João Roberto Ferreira Franco)

O livro em questão trata de uma discussão de dez minutos ocorrida entre dois grandes filósofos e é escrito por David Edmonds e John Eidinow. 
A leitura além de me fazer ficar preso não me poupou o trabalho de pensar sobre questões da minha vida acadêmica, sobre a escrita, a filosofia e sobre como nosso passado e nossas experiências de vida e em como influenciam em nossa capacidade de pensar e de assumir posições frente as adversidades e grandes questões da vida e acadêmicas.
Do ponto de vista filosófico o livro traz sim questões complexas embasadas por óbvio no posicionamento dos dois filósofos (protagonistas da historia) e em sua produção bibliográfica mas não se pode dizer que se trata de uma obra que trata da filosofia em sentido estrito. 
É claro que para um leitor que não é acadêmico da cadeira de filosofia o texto traz toda a história do pensamento filosófico do final do século XIX até meados do século XX que contou com a participação brilhante das teorias dos dois protagonistas. 
Só por isso, já se pode dizer que o livro é uma aula de história da filosofia e de teorias filosóficas e suas implicações no contexto histórico do ambiente vivido pelos dois filósofos Wittgenstein e Popper.
A questão filosófica, ao que parece, tem um contexto mais abrangente sem muito aprofundamento, porém, o livro em várias partes do texto faz citações filosóficas não só dos protagonistas mas também de outros autores e coloca com maestria o debate dentro da visão de Wittgenstein e Popper, do positivismo lógico e do Circulo de Viena. 
Vale a ressalva de que o livro no campo filosófico é abrangente e mostra bastante seriedade, mas seria impossível tratar de assuntos tão complexos e importantes para a história da própria filosofia dentro das páginas de o atiçador, essa tarefa cabe a outras leituras referentes a matéria.
O atiçador não é apenas a história de uma discussão entre dois filósofos que confrontam suas opiniões dentro de um encontro acadêmico, é o reflexo de uma era de pensadores que teve início no final do século XIX e terminou na metade do século XX com o fim do círculo de Viena, tendo esses pensadores atravessado duas grandes guerras e o holocausto. 
Neste contexto é que um (des)encontro ocorrido em Cambridge em 25 de outubro de 1946, como parte das atividades desenvolvidas pelo Moral Sciences Club, um grupo de discussão filosófica da universidade presidido pelo filósofo Ludwig Wittgenstein que havia convidado para ser orador, o Dr. Karl Popper, foi o palco dessa leitura que aguça nossa curiosidade e pensamento.
Na plateia estavam estudantes e professores, entre eles Bertrand Russel, que não só era um filósofo renomado mas havia influenciado diretamente os dois Wittgenstein e Popper; portanto, em um primeiro momento se tem a ideia de que não haveria embate entre duas cabeças que vinham da mesma escola filosófica. 
Edmonds e Eidinow, autores do livro, relatam que não é possível ter a certeza do que aconteceu naquele episódio, o que se sabe é que foi a primeira vez que três grandes filósofos se encontraram na mesma sala (Wittgenstein, Popper e Russel) para debater questões filosóficas.
Pela leitura percebe-se que os dez minutos de discussão ficaram concentrados entre as posições de Popper e Wittgenstein, o primeiro querendo trazer ao embate a questão sobre se realmente existem problemas filosóficos enquanto o segundo defendia a ideia de que os problemas filosóficos são apenas perplexidades. 
Sabe-se que houve uma veemente troca de palavras e de ideias entre os dois com ambos tentando defender suas posições.
Não é à toa que o livro leva o nome de o atiçador de Wittgenstein; Popper relataria em um livro de sua autoria (descrição que foi incorporada no livro em análise por Edmonds e Eidinow) que seu rival "brincava nervosamente com o atiçador, manejando-o como uma batuta para reforçar suas afirmações e que quando surgiu uma pergunta sobre o status da ética, Wittgenstein o desafiou a dar um exemplo de regra moral. Eu disse: Não ameaçar palestrantes com atiçadores. Ao que Wittgenstein, num acesso de raiva, jogou o atiçador no chão e se retirou da sala, batendo a porta" (páginas 14 e 15).
Esse é o brilhantismo da narrativa do livro em análise que não se restringe a tentar descobrir o que ocorreu naqueles dez minutos do encontro e quem se sagrou vencedor da disputa de ideias. 
Sua intenção é ser mais amplo e transmutar para o leitor os debates filosóficos e a vida acadêmica e científica do final do século XIX e metade do século XX em Viena, do ponto de vista da vida de Wittgenstein e Popper.
Wittgenstein aliás em um dos seus livros escreveu uma frase que diz muito sobre a proposta de Edmonds e Eidinow: "poupar aos outros o trabalho de pensar, mas sim, se for possível, estimular alguém a pensar por si próprio". 
Essa é a proposta do atiçador ao nos levar em uma viagem ao centro do que foi chamado de o Círculo de Viena, reuniões ocorridas nos cafés e praças da cidade que tinha como objetivo discutir questões filosóficas e científicas que envolviam a sociedade, a linguagem e a vida acadêmica.
Importante destacar da leitura que foi justamente nesse período que ocorreram duas guerras mundiais e a cidade de Viena estava repleta de matizes e elementos que por si só seriam capazes de criar horas, dias, meses e anos de discussões e páginas e mais páginas de escritos. 
O livro, que faz questão de descrever a vida de Wittgenstein e Popper até o momento da fatídica discussão, traz em seu conteúdo justamente esse conteúdo histórico que mistura fascismo, nazismo e o holocausto ao conteúdo histórico, social, político e econômico da cidade de Viena do antes, durante e pós-guerra.
Não é possível deixar de dizer que Viena foi a cidade mais afetada pelo desejo de Hitler de exterminar os judeus e suas ideias inundaram o cotidiano da cidade influenciando diretamente pessoas e é claro, os dois filósofos. 
Com clareza de detalhes, documentos, entrevistas e outras provas que retratam a vida em Viena e a vida dos dois filósofos, o livro faz questão de distinguir a formação e a visão de Wittgenstein e Popper do mundo, bem como suas ideologias filosóficas a partir de um contexto que retrata o crescimento intelectual, cultural, filosófico, social e moral de cada indivíduo descrevendo com brilhantismo como cada um viveu até aquele dia em Cambridge.
Wittgenstein era judeu, filho de uma das famílias mais abastadas da Europa e morava em um palácio frequentado por músicos famosos e a alta classe social europeia. 
Popper, também judeu, era filho de um advogado e tinha o hábito de ler muito e ajudar os pobres. 
Essa dicotomia entre o mundo dos dois e a questão do holocausto, fazem parte de um capítulo à parte do livro que se dedica a demonstrar como foi possível para ambos e suas famílias sobreviverem à guerra e se tornarem reconhecidos pensadores.
Não se trata só de uma descrição ou tentativa de descrição de um debate entre dois filósofos ocorrido em dez minutos em um auditório de Cambridge que terminou com a saída abrupta de Wittgenstein, a profundidade da leitura nos leva a pensar em questões muito mais complexas e amplas como a condição de ser e existir dentro de um contexto social, cultural, econômico e intelectual de uma Viena envolvida por uma guerra cruel e absurda.
A forma como o livro trata do crescimento dos filósofos como pessoas e as adversidades a que foram submetidos gratuitamente é o tempero de fundo da leitura que tenta explicar com embasamento em todo esse contexto o suposto desfecho do encontro dos dois filósofos no debate. 
É possível o leitor pensar na sua própria vida e como aquilo que ficou para traz contribui com o que se é e com o que se deseja ser, posicionamentos, ideias, conduta social e outros elementos que formam a personalidade de cada indivíduo, acho que essa é a temática principal do livro.
Outra questão muito interessante que faz parte do cenário da historia é a capacidade dos filósofos de utilizarem-se da escrita e da linguagem para disseminar ideias e ideais de modo que se camuflasse dentro dos elaborados escritos as verdadeiras mensagens e propósitos que ambos queriam tratar. 
Em um momento tenso como o vivido na segunda guerra, a importância da escrita e da linguagem na construção de textos se torna ainda mais evidente quando esses textos têm como pano de fundo afrontar ou disseminar propósitos contrários ao regime dominante, aliás, essa parte da leitura nos remete a lembrança das ditaduras onde o poder ditador selecionava tudo o que podia ser ouvido, escutado ou falado, daí a importância da escrita na construção do texto, da música, educação, arte entre outros.
De um modo geral o Atiçador é uma leitura que tem como objetivo trazer contextos históricos, teorias filosóficas e suas consequências na vida e na sociedade despertando o interesse do leitor em buscar dentro de si duvidas, interrogações, questões e respostas que só podem ser encontradas se manuseado o intelecto do pensamento. 
A ideia de se fazer pensar e questionar é uma dádiva que o homem possui e não deve de maneira nenhuma ser desestimulada ou podada de modo que só é possível o crescimento se for possível o pensamento e acho que nesse ponto o Atiçador deixa sua mensagem. 
Como seres humanos somos todos um pouco filósofos, pois a filosofia como disciplina é a busca pelas ideias que um dia poderão ou não fazer parte da sociedade como um todo, na constante busca das pistas que embasarão as respostas, o texto é exatamente isso, uma descrição da vida e do pensamento de dois filósofos na busca por pistas do que aconteceu naquela discussão.
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João Roberto Ferreira Franco é sócio-diretor do escritório Lodovico Advogados.
In Migalhas

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