Lei obriga os museus brasileiros a tomar mais cuidado com seu acervo Muitas peças expostas como relíquias do passado são de origem duvidosa.
MARCELO BORTOLOTI
Quem caminha pelos corredores do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, depara com objetos célebres que ajudam a contar um pouco da história brasileira. Um deles é um tacape que teria pertencido a Tibiriçá, líder indígena que ajudou os jesuítas na fundação de São Paulo e posteriormente recebeu o nome cristão de Martim Afonso.
MARCELO BORTOLOTI
Quem caminha pelos corredores do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, depara com objetos célebres que ajudam a contar um pouco da história brasileira. Um deles é um tacape que teria pertencido a Tibiriçá, líder indígena que ajudou os jesuítas na fundação de São Paulo e posteriormente recebeu o nome cristão de Martim Afonso.
A peça, na verdade, é uma borduna, arma de ataque feita de madeira e palha. Ao observar a relíquia com mais atenção, uma suspeita pode surgir aos olhos do visitante: tanto a madeira como a ornamentação de palha estão extremamente conservadas para uma arma de quase 500 anos.
A documentação relativa ao objeto faz a suspeita aumentar. Não há nenhuma prova de que a arma pertenceu a Tibiriçá.
A documentação relativa ao objeto faz a suspeita aumentar. Não há nenhuma prova de que a arma pertenceu a Tibiriçá.
Os arquivos informam apenas que, no século XIX, o tacape surgiu na coleção do imperador Pedro II, ninguém sabe como. “O único certificado de autenticidade que temos seria um bilhete do imperador atestando que a peça era de Tibiriçá, mas mesmo esse bilhete desapareceu”, diz Rafael Zamorano, pesquisador do Museu Histórico Nacional.
Segundo o registro, o imperador doou o tacape ao general Couto de Magalhães, na época presidente da província de São Paulo. Depois da morte deste, um sobrinho do general deu de presente ao médico sergipano José Vieira da Costa Valente, que por sua vez doou ao museu.
A arma tem uma história de culto e legitimação que não pode ser desprezada, mas os museólogos concordam que dificilmente pertenceu ao índio.
A fabricação desse tipo de relíquia foi uma prática comum em museus brasileiros e estrangeiros no princípio do século XX. Naquele período, entendia-se que o museu deveria ser um depositário dos objetos que ajudassem a manter viva a memória dos heróis e dos grandes feitos da pátria, muitos deles também inventados.
A fabricação desse tipo de relíquia foi uma prática comum em museus brasileiros e estrangeiros no princípio do século XX. Naquele período, entendia-se que o museu deveria ser um depositário dos objetos que ajudassem a manter viva a memória dos heróis e dos grandes feitos da pátria, muitos deles também inventados.
No esforço para cumprir esse papel, todo objeto com alguma ligação histórica era bem-vindo, ainda que sua garantia de autenticidade fosse somente a fala do doador ou algum manuscrito num pequeno pedaço de papel.
Assim foram criadas relíquias como a forca que matou Tiradentes, a espada que Pedro I ergueu no Grito do Ipiranga, a farda usada por Marechal Deodoro na Proclamação da República, criações que a reportagem de ÉPOCA tenta desmistificar ao longo desta reportagem.
Assim foram criadas relíquias como a forca que matou Tiradentes, a espada que Pedro I ergueu no Grito do Ipiranga, a farda usada por Marechal Deodoro na Proclamação da República, criações que a reportagem de ÉPOCA tenta desmistificar ao longo desta reportagem.
Essas peças serão objeto de debate em maio, num encontro promovido no Brasil pelo Conselho Internacional de Museus com o tema Museus e Histórias Controversas.
Relíquias desse tipo estão presentes no acervo dos principais museus históricos brasileiros.
--------------------- “Por meio desses objetos, é possível entender a disputa de poder dentro de um museu. São relíquias sempre associadas aos grandes vultos, que ajudam a construir a história a partir das memórias de uma elite. Muitos foram legitimados apenas pela palavra do doador, interessado que determinado objeto ou personagem participasse também da narrativa”, diz Ana Lourdes Costa, responsável pela organização do evento no Brasil.
Apropriação cultural é racismo?
Nos últimos anos, o culto aos heróis caiu em desuso.
Apropriação cultural é racismo?
Nos últimos anos, o culto aos heróis caiu em desuso.
Os museus começaram a abrir espaço para a representação de grupos que ficaram à margem da História, como os escravos ou os índios. Além disso, em 2009 foi criado o Estatuto de Museus, a primeira lei federal que obriga as instituições a pesquisar seu acervo e a garantir sua autenticidade.
Atualmente, a incorporação de um objeto ao acervo de um museu é cercada de muito mais cuidado.
Em 2015, um leiloeiro de Petrópolis colocou à venda a fronha que Getúlio Vargas usava quando cometeu suicídio, em 1954. A peça tinha marcas de sangue e o mesmo bordado do enxoval da Presidência.
O Museu da República, que tem entre suas principais atrações o pijama usado por Getúlio no dia da morte, interessou-se em comprá-la. Antes de fazer o cheque, enviou a peça ao laboratório Genera, que faz exames de DNA, para verificar se o tipo de sangue batia com o do presidente. O resultado deu negativo: o sangue era de mulher. A compra foi abortada.
Quem disse que esse é um Rodin?
Apesar desse cuidado mais recente, instituições públicas brasileiras têm um enorme passivo de peças questionáveis que foram incorporadas ao longo do século passado e por décadas cultuadas como objetos legítimos, embora seja impossível garantir sua autenticidade.
Quem disse que esse é um Rodin?
Apesar desse cuidado mais recente, instituições públicas brasileiras têm um enorme passivo de peças questionáveis que foram incorporadas ao longo do século passado e por décadas cultuadas como objetos legítimos, embora seja impossível garantir sua autenticidade.
São relíquias que os pesquisadores dos próprios museus estão estudando para reclassificá-las de maneira que não enganem mais o público, mas sem apagar sua trajetória de objeto de culto.
A farda de Deodoro da Fonseca – tem botões com o brasão da República, que só foi criado depois da Proclamação (Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)
Museu da República
Deodoro da Fonseca, militar apontado como o proclamador da República em 1891, não marchou imponente com seu cavalo branco sobre a Praça da Aclimação, como aparece no famoso quadro de Henrique Bernardelli.
Museu da República
Deodoro da Fonseca, militar apontado como o proclamador da República em 1891, não marchou imponente com seu cavalo branco sobre a Praça da Aclimação, como aparece no famoso quadro de Henrique Bernardelli.
Naquele 15 de novembro, ele estava doente e foi quase carregado por seus companheiros.
Alguns historiadores suspeitam que essa doença era uma indisfarçada fidelidade ao imperador, que ele manteve até não ser mais possível conter a revolta militar.
O uniforme usado pelo marechal naquela data é uma das relíquias do Museu da República. Foi doado em 1926 por seu sobrinho, Joaquim Dutra da Fonseca. Sobre ela pesam duas suspeitas. A primeira é uma carta de 1932 do general Clodoaldo da Fonseca, outro sobrinho do marechal, afirmando que naquela ocasião o tio usava uma farda mais confortável, sem a gola e os punhos bordados, como a do museu. Isso porque estava com “o fígado muito congestionado”. Pelo mesmo motivo, não teria carregado a espada, também do acervo do museu. O segundo problema é que os botões da farda têm impresso o brasão da República, criado depois da proclamação. Na época, os botões deveriam estampar ainda o símbolo da Monarquia.
--------- “Ou ele nunca usou a farda, ou usou e depois trocou os botões. Existe alguma falsificação aí”, diz o museólogo Mário Chagas.
Essa espada foi fichada como o sabre de Dom Pedro I da época da Independência apenas com base no depoimento de um doador da peça (Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)
Museu Histórico Nacional
Os historiadores não chegaram a um consenso sobre a existência do Grito do Ipiranga – aquele episódio no qual o imperador Pedro I teria erguido sua espada para gritar “Independência ou morte” para selar a independência do Brasil de Portugal em 1822.
Museu Histórico Nacional
Os historiadores não chegaram a um consenso sobre a existência do Grito do Ipiranga – aquele episódio no qual o imperador Pedro I teria erguido sua espada para gritar “Independência ou morte” para selar a independência do Brasil de Portugal em 1822.
Na correspondência da época, não há menção a tal acontecimento.
A Independência envolveu uma negociação lenta. Seu marco inicial já foi estabelecido em agosto e outubro, antes de ser fixado no dia 7 de setembro. No entanto, a espada de Dom Pedro I no Grito do Ipiranga é uma das relíquias do Museu Histórico Nacional.
Em 1933, Sebastião Guillobel, um oficial da Marinha, fez a doação ao museu dizendo que recebera a espada das mãos do seu avô, o barão de São Victor, e que ela teria pertencido a Pedro I. O diretor do museu, Gustavo Barroso, escreveu ao doador agradecendo a relíquia e dizendo que “possivelmente” fora a usada no Ipiranga. A simples troca de mensagens foi suficiente para que a espada fosse fichada como sabre de Dom Pedro I da época da Independência. Uma década depois, o mesmo Gustavo Barroso, em carta ao ministro da Educação, afirmava com segurança que o sabre do imperador no Ipiranga “encontra-se já no Museu Histórico”. A referência hoje é questionada pela própria instituição.
Há duas canetas em exposição identificadas como a usada por Prudente de Morais na assinatura da Constituição de 1891. A autêntica pode não ser nenhuma delas (Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)
Museu Paulista e Museu Prudente de Morais em Piracicaba
Em 2014, um leiloeiro ofereceu ao Museu da República a caneta de ouro com que Prudente de Morais, presidente da Constituinte de 1891, assinou a primeira Carta republicana. Essa Constituição foi um marco para a democracia brasileira, por instituir o presidencialismo por voto direto e separar a Igreja do Estado. Numa rápida troca de mensagens para assegurar a autenticidade da peça, os museólogos tiveram uma surpresa. Existem canetas com a mesma identificação em pelo menos outros dois museus no país. Uma delas está no Museu Paulista e foi doada em 1990 pela neta do político, Maria de Morais Barros. Estava em poder de seu pai, Pedro de Morais, sobrinho de Prudente. Ela veio acompanhada por um bilhete datilografado, atribuído ao presidente, que dizia: “Pena com que assinei a Constituição federal de 1891”.
Museu Paulista e Museu Prudente de Morais em Piracicaba
Em 2014, um leiloeiro ofereceu ao Museu da República a caneta de ouro com que Prudente de Morais, presidente da Constituinte de 1891, assinou a primeira Carta republicana. Essa Constituição foi um marco para a democracia brasileira, por instituir o presidencialismo por voto direto e separar a Igreja do Estado. Numa rápida troca de mensagens para assegurar a autenticidade da peça, os museólogos tiveram uma surpresa. Existem canetas com a mesma identificação em pelo menos outros dois museus no país. Uma delas está no Museu Paulista e foi doada em 1990 pela neta do político, Maria de Morais Barros. Estava em poder de seu pai, Pedro de Morais, sobrinho de Prudente. Ela veio acompanhada por um bilhete datilografado, atribuído ao presidente, que dizia: “Pena com que assinei a Constituição federal de 1891”.
Outra caneta, também identificada da mesma forma, está no Museu Prudente de Morais, em Piracicaba. Esta foi doada por Hermínia Silveira Melo, viúva do neto de Prudente, João Silveira Melo. O testamento do político coloca mais dúvida no caso. Ele menciona a peça, descrevendo-a como uma caneta em forma de pena com pedra de diamante. Nenhuma das três canetas que apareceram até agora tem essa pedra.
É impossível atestar que essa pedra que já foi exposta em exibições temporárias, atingiu o carro de Getúlio Vargas em 1993 e quase o matou (Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)
Museu Imperial de Petrópolis
Em abril de 1933, o presidente Getúlio Vargas viajava com a mulher e um filho para Petrópolis, quando o carro foi atingido por uma pedra que se despregou da encosta. A rocha atravessou a capota do automóvel, matou o motorista e provocou fraturas no presidente e na primeira-dama. Na ocasião, falou-se em conspiração, pois na mesma semana o presidente do Peru fora morto a tiros dentro de um automóvel. Depois da perícia, que não identificou crime, a pedra foi requisitada pelo Museu de Petrópolis, onde deu entrada com valor simbólico de 20 cruzeiros. Pesava 81 quilos e media 1 metro de diâmetro. Em seguida foi transferida para o Museu Imperial, onde hoje permanece na reserva técnica, identificada como a pedra fatídica. O problema é que várias pedras rolaram da montanha naquela ocasião. Segundo descrição dos jornais, logo após o acidente, caiu uma segunda pedra e uma terceira estava para despencar. Não é possível garantir que a rocha correta chegou ao museu. “Seria impossível fazer hoje uma pesquisa para identificar se foi realmente essa a pedra que caiu. Ela deu entrada aqui como um documento policial. Hoje é um objeto bastante atípico na nossa coleção”, diz o diretor do museu, Maurício Ferreira.
Museu Imperial de Petrópolis
Em abril de 1933, o presidente Getúlio Vargas viajava com a mulher e um filho para Petrópolis, quando o carro foi atingido por uma pedra que se despregou da encosta. A rocha atravessou a capota do automóvel, matou o motorista e provocou fraturas no presidente e na primeira-dama. Na ocasião, falou-se em conspiração, pois na mesma semana o presidente do Peru fora morto a tiros dentro de um automóvel. Depois da perícia, que não identificou crime, a pedra foi requisitada pelo Museu de Petrópolis, onde deu entrada com valor simbólico de 20 cruzeiros. Pesava 81 quilos e media 1 metro de diâmetro. Em seguida foi transferida para o Museu Imperial, onde hoje permanece na reserva técnica, identificada como a pedra fatídica. O problema é que várias pedras rolaram da montanha naquela ocasião. Segundo descrição dos jornais, logo após o acidente, caiu uma segunda pedra e uma terceira estava para despencar. Não é possível garantir que a rocha correta chegou ao museu. “Seria impossível fazer hoje uma pesquisa para identificar se foi realmente essa a pedra que caiu. Ela deu entrada aqui como um documento policial. Hoje é um objeto bastante atípico na nossa coleção”, diz o diretor do museu, Maurício Ferreira.
Esse pedaço de madeira é exposto como parte da forca onde foi executado Tiradentes (Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)
Museu Histórico Nacional e Museu da Inconfidência de Ouro Preto
Pedaços de madeira que faziam parte da forca em que Tiradentes foi executado estão distribuídos em museus do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. No século passado, tiveram de ser retirados de exposição por um período, em razão do assédio do público. Acreditava-se que usar um fragmento da forca como amuleto dava sorte. A relíquia estava sendo corroída pelos visitantes. Sua procedência, no entanto, é controversa. As madeiras foram encontradas no subsolo de uma prisão para padres que existia no Rio de Janeiro, exatamente 100 anos após a morte de Tiradentes, num momento em que se festejava sua memória. Quem localizou foi o tenente Deocleciano Mártir, político republicano que tinha grande interesse na valorização do herói da Inconfidência. Ele se baseou no registro histórico de que os instrumentos de execução eram na época recolhidos a um galpão privado e em seguida iam para essa prisão. Havia, no entanto, pelo menos três locais de execução pública no Rio, e todas as forcas usadas tinham o mesmo destino. Um século depois, com as madeiras já deterioradas, seria impossível distinguir em qual delas Tiradentes foi morto. A documentação da época não esclarece o critério de identificação. Valeu a palavra do tenente.
Museu Histórico Nacional e Museu da Inconfidência de Ouro Preto
Pedaços de madeira que faziam parte da forca em que Tiradentes foi executado estão distribuídos em museus do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. No século passado, tiveram de ser retirados de exposição por um período, em razão do assédio do público. Acreditava-se que usar um fragmento da forca como amuleto dava sorte. A relíquia estava sendo corroída pelos visitantes. Sua procedência, no entanto, é controversa. As madeiras foram encontradas no subsolo de uma prisão para padres que existia no Rio de Janeiro, exatamente 100 anos após a morte de Tiradentes, num momento em que se festejava sua memória. Quem localizou foi o tenente Deocleciano Mártir, político republicano que tinha grande interesse na valorização do herói da Inconfidência. Ele se baseou no registro histórico de que os instrumentos de execução eram na época recolhidos a um galpão privado e em seguida iam para essa prisão. Havia, no entanto, pelo menos três locais de execução pública no Rio, e todas as forcas usadas tinham o mesmo destino. Um século depois, com as madeiras já deterioradas, seria impossível distinguir em qual delas Tiradentes foi morto. A documentação da época não esclarece o critério de identificação. Valeu a palavra do tenente.
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