domingo, 3 de setembro de 2017

EXPOSTAS EM ITAPETININGA AS OBRAS DE UM LOUCO






Arthur Bispo do Rosário/ Reprodução Fotográfica: Vicente de Mello.
O Sesi de Itapetininga está exibindo a exposição “Arthur Bispo do Rosário: A Alguns Centímetros do Chão”.
Com curadoria de Luiz Gustavo Carvalho, a exposição vai até o feriado de 7 de setembro.
Negro, sem documentos, esquizofrênico, Bispo viveu em uma cela durante meio século no Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha.
No ano de 1939, foi trancafiado na Colônia Juliano Moreira, dos doentes perigosos, onde passou a viver no pavilhão 11 do núcleo Ulisses Viana, utilizando apenas um colchão que ficava ao lado de um buraco no chão onde defecava para dar de comer a ratos e outros insetos.
Só sarou da loucura quando faleceu há 28 anos.
Enquanto vivo, criou interessantes obras que o deixaram famoso no Brasil e até fora dele, como, por exemplo, bordados, estandartes cheios de palavras e milhares de objetos que saíam de sua cabeça cada vez que levava choques para controlar as crises.
Como se pudesse recriar o mundo de Deus, ele que jamais seria um.
Sua arte correu mundo, desde a Bienal de Veneza e até em Paris.
Abaixo, um pouco da sua história biografada por Luciana Hidalgo em 2009:
1909 – Nasceu em Japaratuba, Sergipe, onde foi batizado aos 05 de outubro, com três meses de idade, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Saúde;
1925 A 1933 – Tornou-se marinheiro, tendo como função sinaleiro - chefe;
1933 A 1937 – Tornou-se borracheiro na Viação Excelsior, subsidiária da Light;
1937 – Tornou-se empregado doméstico do advogado Humberto Leoni;
1938 – Passou a ser interno no Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro;
1939 – Foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, ainda no Rio, onde vive durante meio século;
1982 – Hugo Denizart, fotógrafo e psicanalista, realiza um documentário com Bispo. Um crítico de arte chamado Frederico Morais incluiu algumas obras dele na Coletiva "À Margem da Vida";
1989 – Morre o homem no dia 05 de julho vítima de infarto.



Este trabalho ele intitulou de manto da apresentação. Demorou muito tempo para terminar. Dizia ser para uso no dia do Juízo Final.
Continua Luciana Hidalgo: "Como entre os esportes ali estimulados estava o boxe, Bispo se entregou de corpo e alma ao pugilismo. Por isto, guardas e enfermeiros logo viram nele um aliado. Forte e sisudo, o ex-boxeador rapidamente se tornou “xerife” do pavilhão. Criou um estilo próprio para deter os mais rebeldes: enrolava na mão um pano molhado entrelaçado nos dedos, como um soco inglês improvisado. O exercício do poder de xerife assegurou- lhe posição privilegiada na hierarquia da instituição e lhe permitiu recusar eletrochoques e medicações.
Acostumado a conter pacientes à sua volta, Bispo conquistou a confiança de funcionários – e pouco a pouco aprendeu também a se conter. Quando os sinais da sua “transformação” se apresentavam, era inútil combatê-los. Ele pedia para um enfermeiro de sua confiança trancafiá-lo, passando o cadeado pelo lado de fora da cela. E ali permanecia, às vezes por meses seguidos. Não aceitava refeições, passava fome: “Vou secar pra virar santo”, prometia.
Foi nessas fases de isolamento que a arte mais brotou. Na falta de material, Bispo desfiava o próprio uniforme azul do manicômio. Desfazia a veste e aproveitava fio por fio. Assim começou a cerzir o Manto da apresentação, espécie de mortalha sagrada que bordaria durante toda a vida para vestir no dia do Juízo Final, na data da sua “passagem”. Bordados no manto estão os nomes das pessoas que ele julgava merecedoras de subir aos céus – mulheres, em sua esmagadora maioria. O pano de fundo é um cobertor avermelhado do hospício, onde inscreveu minúsculos registros, “representações” dos mais variados objetos: tabuleiro de xadrez, dado, mesa de sinuca, avião, números, palavras e muito mais. Ele utilizou a mesma técnica de bordados nos estandartes: lençóis e cobertores da Colônia bordados à mão com as linhas dos uniformes. Não à toa o azul se destaca nesses panos estampados com navios, bandeiras e palavras, sempre palavras."






"NOS BRAÇOS DA VIRGEM"
Bispo costumava apagar o seu passado, dizendo apenas: “Um dia eu simplesmente apareci”. Mantinha o mistério sobre sua cidade natal, apesar de os dados biográficos desvelarem a verdade. Nascido em Japaratuba, Sergipe, ele contava a história do seu “aparecimento” no mundo pelos braços da Virgem Maria, a quem chamava de mãe. O pai era São José e ele, Jesus Cristo. Mas nem toda a ficção acerca de sua genealogia apagou o registro de batismo na igreja matriz de Nossa Senhora da Saúde, na praça central de Japaratuba. Lá se encontra a prova de que Arthur Bispo do Rosário foi batizado no dia 5 de outubro de 1909, aos três meses.
Ao se situar à margem do cotidiano do hospício, numa época em que a psiquiatria transformava os manicômios em campos de experimentações, ele se ilhava numa cela e se esforçava para construir um outro mundo. E nesse universo era rei. Sobre a sua própria situação e a de seus colegas, tinha opiniões muito particulares: “O louco é um homem vivo guiado por um morto”, dizia. Ou: “Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão”.
Funcionários e pacientes nem sempre compreendiam as motivações religiosas de Bispo, mas passariam a levar para ele todo tipo de sucata, em troca de objetos do escambo local. Qualquer elemento da rotina manicomial ganhava um sentido sob sua lógica. Eram objetos de plástico, aço, ferro e outros materiais, reunidos conforme o senso plástico de Bispo.
Nos primeiros tempos, num dos intervalos das “transformações”, ele voltou algumas vezes ao casarão da rua São Clemente, em Botafogo, onde a família Leoni mantinha o seu quarto. Bispo conheceu os patrões após um acidente de trabalho na Viação Excelsior, onde prestava serviço como borracheiro, após deixar a Marinha. Humberto Leoni foi o advogado encarregado de uma ação trabalhista a seu favor contra a empresa. Bispo ganhou a causa e um emprego: virou o faz tudo da família e ali morou, até ser arrastado pelas hordas de anjos e encaminhado para o hospício. Em troca de comida e moradia, fazia pequenos serviços domésticos, mas não aceitava pagamento.
Nos anos 60, Bispo voltou de vez à Colônia. Passaria as décadas seguintes preparando-se para a “passagem”. Incansável, garimpava cabos de vassoura, ripas de madeira e badulaques para construir carrinhos, objetos diversos, variações sobre um tema: a Marinha. Produziu uma sequência de embarcações de madeira com mastros, escadas, arrastões, boias, botes salva-vidas e bandeirolas.
Reciclava refugos e produzia. Juntava, por exemplo, os tênis Conga usados pelos pacientes num compensado de madeira. Ou galochas, colheres, as canecas de alumínio do refeitório. Chegou mesmo a compor uma assemblage que reúne ícones do candomblé. Não sabia que tudo isto tinha nome e classificação no mercado de arte. Signos manicomiais ganhavam novo sentido e valor estético nessa ousada desconstrução do poder no hospício.
Nos Estados Unidos, artistas se rebelavam contra os excessos da sociedade de consumo, transformando em símbolo da pop art a latinha de sopa Campbell, por exemplo. Com intenção distinta, Bispo criava em Jacarepaguá assemblages com embalagens de desodorante, detergente, amaciante e cerveja. E dedicava uma obra somente aos sabonetes: uma merendeira e vários potes de plástico abrigam rótulos de Palmolive, Cinta Azul, Gessy, Lux. O fosso a separar Arthur Bispo do Rosário do artista americano Andy Warhol, porém, era tão fundo quanto o inconsciente coletivo que os circundava. Guiado por tutores nebulosos, o sergipano mantinha uma antena apontada para a estética mundial.

"MOÇAS BONITAS"
"Bispo lia jornais e revistas para acompanhar os fait divers. Tinha uma especial predileção pelas fotos das jovens de pernas bem torneadas, cinturas espremidas em espartilhos e olhares ao longe. Eram as misses – e suas imagens de moças castas e belas – suas favoritas. Os concursos chegavam até ele pelas publicações. A Miss Universo de 1963, Ieda Maria Vargas, era a mais admirada por ele, afinal, era a mulher mais bonita do mundo. Por isto, uma série de obras – faixas e cetros – foi dedicada às rainhas da beleza dos mais gloriosos e dos mais sofridos países do planeta. Bispo também bordou o mapa da Colônia com seus pavilhões, pacientes, funcionários. Fez um detalhado levantamento emocional, histórico e topográfico do hospício carioca numa espécie de planta baixa do asilo que o acolheu durante 50 anos (não consecutivos). Nesse estandarte estão o temido Egas Muniz (o pavilhão das lobotomias), o Bloco Médico, a casa do diretor, os rios, o posto do Exército e até os ônibus que levavam amigos e parentes de pacientes em dias de visita.
Em 1982 o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro expôs alguns exemplares do universo de Bispo numa coletiva reunindo presidiários, menores infratores e idosos, intitulada À margem da vida. A princípio ele não quis participar, mas depois cedeu algumas obras. Na época, o crítico de arte Frederico Morais ofereceu-lhe uma sala inteira para exposição no MAM, onde Bispo poderia se espalhar e se alojar por um tempo. Ele sequer pensou no assunto. Morreu na solidão de sua cela, em 1989, sem ver seu império classificado como obra de arte, percorrendo o mundo. Mas, aos olhos da crítica e do público, era já um artista."

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