Em Desemboque/MG, na década de 1980, grupo de jovens ambiciosos protagonizou cinematográfico roubo do sino de uma antiquíssima capela.
Para quem nunca ouviu falar de Desemboque, essa é a cidade natal de Aryclenes Venâncio Duarte ou, se preferirem, Lima Duarte, o ator que obteve sucesso com a novela "Beto Rockfeller" e se tornou um dos melhores atores da televisão, criando tipos memoráveis como o Zeca Diabo, em "O Bem-Amado"; Sinhozinho Malta, em "Roque Santeiro"; e Sassá Mutema, em "O Salvador da Pátria".
Mas Desemboque, distrito de Sacramento, em Minas Gerais, é lembrado também pelo roubo do sino de sua capela, em 22 de março de 1983.
Um crime que parece coisa de cinema !
Acompanhe conosco esta matinê.
O crime
Tudo se deu no dia 21 de março de 1983, com uma tentativa frustrada de levar o sino do vilarejo.
Segundo consta na denúncia feita pelo promotor de Justiça, os bandidos não conseguiram o intento porque "o sino era difícil de tirar".
Imaginem, migalheiros, a cena: uma turma de jovens tentando arrancar um sino de 139 quilos sem ninguém perceber! O fato foi que calcularam mal e não conseguiram tirar a peça do lugar.
Que vergonha! Afinal, como diz o ditado, "vergonha é roubar e não poder carregar".
Diante do insucesso inicial, armaram um plano mirabolante para o dia seguinte: "simulando prender um ladrão do próprio sino, dizendo-se policiais federais, levariam a peça para um ‘lugar seguro’, a prefeitura de Sacramento".
Com esse intento em mente, chegaram à cidade simulando uma ação policial.
Os moradores e o zelador da igreja que ali estavam, entretanto, acharam tudo muito estranho e não consentiram na retirada da peça histórica.
Com isso, passaram a ser ameaçados – os bandidos estavam com arma em punho.
Por desespero, nesse momento, toda a farsa foi por água abaixo. Saíram de cena os policiais e entraram os bandidos.
"Amedrontado, o zelador abriu a igreja e permitiu a retirada do sino. Os demais, diante das sucessivas promessas de mal sério
e grave, ficaram impossibilitados de oferecer qualquer resistência e assistiram a toda a ação".
À força, os criminosos retiraram o sino e o levaram num Fiat Panorama e, após o partirem em diversos pedaços, enterraram as partes na fazenda Santa Cruz, no município paulista de Franca.
Apesar das trapalhadas, o crime poderia ter ficado encoberto, não fosse a boa memória do morador José Militinho, que reconheceu um dos assaltantes.
Não demorou muito, a quadrilha foi detida, o crime confessado e com eles foram encontrados um revólver marca Smith & Wesson, calibre 38, um Taurus calibre 32 e um Ina, calibre 32.
De acordo com o pedido feito pelo Ministério Público, cabia aos bandidos as "penas do art. 157 § 2º, itens I e II, do código penal" (roubo qualificado), também a do "art. 163 – parágrafo único, itens I, III, IV" (dano qualificado), e a do "art. 25" (co-autoria), "com vistas ao art. 45, todos do código penal".
A prisão preventiva de todos os envolvidos foi logo requerida.
O exame do toque
O que atiçou a ambição dos jovens, alguns até abastados, foi a lenda que circulava, no vilarejo e nas cidades vizinhas, de que 50 dos 139 quilos do sino da capela do Desemboque eram de ouro.
Uma fortuna.
Em verdade, viu-se depois, um equívoco.
O sino era uma peça cunhada em bronze e de valor incalculável apenas para o Patrimônio Histórico Nacional, já que estava na igreja há mais de 230 anos!
Os ladrões só vieram a ter conhecimento desse fato, entretanto, depois que o mentor do crime, incumbido de verificar o metal para saber sua constituição e realizar a fundição e a divisão em partes iguais da peça, fez o inusitado "exame do toque".
Era tarde demais.
O mal já estava feito!
Resultado: em 6 de junho de 1983, foi decretada a prisão preventiva dos acusados.
Conforme o processo 22/83 do Cartório do Crime e Execuções Fiscais, isso funcionaria como garantia da ordem pública, que estaria "malferida enquanto durar íntegra a quadrilha dos acusados. A segregação deles justifica-se como medida de desbaratar a quadrilha, que é um perigo constante, rondando a sociedade" e por ser "conveniente à instrução criminal". Apesar disso, apenas um deles foi preso.
Nesse meio tempo, os pedaços do sino foram recolhidos e refundidos pela Fundação Artística Paulistana Ltda., seguindo o modelo original.
Isso tudo às expensas dos membros da quadrilha, como reparação aos danos causados.
O que era pra ser lucro virou prejuízo!
Posteriormente, em 14 de junho de 1985, o pedido de prisão preventiva foi revogado, a fim de possibilitar aos requerentes que se apresentassem para interrogatório e outras medidas que se fizessem necessárias ao esclarecimento da verdade e às formalidades processuais, já que, por medo, estavam escondidos da Justiça.
Assim decidiu o juiz Rui da Matta Costa :
------------------- "creio que os fundamentos nos quais escorou o decreto da prisão preventiva não subsistem no momento, tornando-se, patentemente, desnecessária a custódia provisória dos requerentes". Além disso, a prisão preventiva como "garantia da ordem pública" se justificaria "se, após os fatos criminosos que ensejaram esta ação penal, tivessem os requerentes, juntamente com os demais membros da quadrilha, perseverado nos crimes porque estão sendo processados – do que não há prova nos autos. Já são passados mais de dois anos do roubo noticiado neste processo, ocorrido em março de 1983, e não há nenhuma informação, no processo, de outras atuações delituosas do bando".
Lembrou ainda o magistrado :
------------------------------------------ "a prisão preventiva deve ser reservada para casos de extrema necessidade, porque toda prisão provisória é excepcional e, de certa forma, envolve punição por antecipação, sem que antes o Judiciário tenha o agente como culpado".
A ação da Justiça
Revogada a preventiva, deu-se seguimento ao processo. Mas a instrução criminal teve lenta tramitação. Audiências foram adiadas por falta de intimação dos defensores ou por falta de juiz ou falta de promotor da comarca de Sacramento.
O processo chegou a ficar parado de 1985 a 1990.
Finalmente, após interrogar as testemunhas e todos os envolvidos no roubo do sino, o juiz Armando Conceição Vieira Ferro, incumbido do caso, julgou procedente o pedido da denúncia e condenou os réus nas penas do "art. 157, § 2º, inciso II, por terem praticado furto qualificado pelo concurso de pessoas".
Para dois dos réus, foi fixada a pena de seis anos de reclusão, agravada em 8 meses, nos termos do art. 61, inciso II, letra "b", do código penal.
Para os outros foi dada a atenuação da mesma pena em 4 meses, nos termos do art. 65, inciso III, alínea "d", de modo que deveriam cumprir 6 anos e 4 meses de reclusão. Nos termos do art. 33, § 2, alínea "b", a reprimenda deveria ser cumprida em regime semi-aberto.
A decisão foi dada em 3 de março de 1993.
A defesa apelou e solicitou : nulidade do processo, uma vez que "houve a inversão na ordem legal na inquirição das testemunhas"; nulidade processual quanto a aplicação da pena "posto que não observara a sentença condenatória o critério trifásico adotado pela sistemática pátria"; e que quanto ao mérito, "haveria que se registrar que não houve violência ou grave ameaça praticada pelos apelantes contra os moradores do povoado de Desemboque, porque ditas pessoas foram iludidas, cabendo, desta feita, a desclassificação do crime de roubo para o de furto ou de estelionato". Assim, "que se impunha a fixação da pena no mínimo legal para os apelantes".
A apelação foi recebida pelos desembargadores Myriam Saboya, Márcia Milanez e Herculano Rodrigues.
Quanto à preliminar de nulidade por inversão na oitiva das testemunhas, esta foi rejeitada pelos três, pois estavam "à míngua de comprovação de qualquer prejuízo" para os réus. Com relação à preliminar de nulidade da citação, esta também foi rejeitada, pois segundo eles "a lei não retroage".
Já na preliminar de nulidade da sentença, os juízes se dividiram. Myriam Saboya a rejeitou, pois não considerou ter havido qualquer prejuízo para a defesa enquanto os juízes Márcia Milanez e Herculano Rodrigues a julgaram como procedente "pois fere princípio constitucional da individualização da pena".
Assim teve fim o crime cinematográfico realizado em Desemboque: sem ouro e com condenação.
Desemboque
Em 1776 foi criado o "Julgado dos Nossos Descobertos de Nossa Senhora do Desterro do rio das Velhas do Desemboque" e abrangia todo o Triângulo Mineiro atual e todo sul de Goiás.
Houve muita briga entre o governo desses dois Estados até que fosse definida a questão dos limites de Desemboque, resolvida no dia sete de outubro de 1811, em Araxá, pelo Ouvidor-geral Joaquim Inácio Silveira da Mota. Foi, então, estabelecido o território entre os rios Grande e Paranaíba como sendo do Desemboque e o restante para Goiás.
Desemboque foi o centro de desenvolvimento de todo o Triângulo Mineiro. A cidade cresceu rápido, impulsionada pelo garimpo do ouro.
Estima-se que entre os anos de 1743 e 1781 tenham saído de Desemboque mais de 100 arrobas de ouro. Mas com o tempo, o ouro começou a ficar escasso. A decadência se deu a partir de 1781. Em decorrência disso, a população passou a procurar novas riquezas organizando bandeiras pelo sertão. No meio do caminho, foram fundados alguns povoados, que vieram, posteriormente, a se tornar cidades. É o caso de Sacramento e Uberaba.
In Migalhas
(07 de julho de 2009)
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