quarta-feira, 25 de julho de 2018

O STF DA TERRA DE MALASARTES E SUAS "FILIAIS"

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Desesperançados, muitos malasarteanos têm ido embora da sua pátria de nascimento, deixando para trás quem não pode ou não tem coragem de os seguirem.


Na Terra de Malasartes o sistema Judiciário tem em sua cúpula o STF – Subalterno Tribunal Federal e, sob ele, operam outros tribunais menores, alguns que podem ser chamados de filiais, uma vez que seguem as orientações que vêm de cima. Não, não estamos falando de uma orientação técnica, baseada em precedentes, mas de natureza política, na qual o direito entra como servo e não como senhor. Segundo doutrinadores, tal orientação nem sequer viria do alto dos membros daquele STF como fator mandamental, mas ela permearia a atuação de certos segmentos do Judiciário daquele país segundo uma cultura disseminada por um sistema de contaminação do tipo bacteriano, que traz o perigo de uma infecção generalizada.
O termo subalterno daquele STF tem a ver, portanto, com a obediência a inclinações políticas de alguns dos seus membros, que não seriam jurídico-políticas, nem político-jurídicas, uma vez que o termo jurídico de que se fala tem uma aplicação completamente desligada do seu significado técnico, próprio da Ciência do Direito. O uso de um pseudo direito está mais próximo da arenga que tiveram o Leão e o Cordeiro na conhecida fábula de La Fontaine.
Naquela fábula o leão avistou um cordeiro bebendo água no riacho no qual havia chegado, destacando-se que o cordeiro se encontrava em uma posição abaixo daquela do rei dos animais, ou seja, a água que o leão bebia chegava ao cordeiro depois de que aquele tivesse se dessedentado. Ou seja, o leão estava a montante e o cordeiro a jusante. Em resumo, o leão acusou o cordeiro de sujar a água que bebia e, diante da negativa fundada na evidência, alegou que se não fosse ele, cordeiro, teria sido seu irmão. Mas o cordeiro era filho único, argumento que não foi levado em conta e o cordeiro terminou dentro da pança do leão.
Na fábula não se fala de defensores do cordeiro, causídicos preparados para um enfrentamento com o leão. Muito menos há qualquer referência a um órgão controlador da fome desmesurada do leão, um CSML – Conselho Superior da Magistratura Leonina. Mesmo que houvesse, temos certeza de que o leão não seria punido. Nunca ouvimos falar de impixe desse tipo de leão. E, convenhamos, depois que a vítima foi digerida, o que se poderia fazer, a não ser exéquias com honra?
No tocante ao STF da Terra de Malasartes, nas decisões de alguns ministros, certos tipos de cordeiros jurídicos serão devorados de qualquer maneira, não importando obediência a todo e qualquer principio, seja ele de direito material ou processual. Isto porque existe algum tipo de fome a ser saciada, cuja origem encontra-se fora do contexto da relação jurídica que se estabelece entre o cordeiro, seu acusador e o direito. Que tipo de fome será essa? Não sabemos, mas é provável que a causa esteja na genealogia do leão, ou seja, como ele virou leão naquele espaço? Ele assumiu uma dívida para comprar o espaço onde bebe a sua água, de maneira a ter ali uma cadeira cativa? Essa dívida será um dia resgatável, de maneira a que a fome do leão passe a ter uma origem interna e não externa? Nesse contexto alguns intérpretes chamados de ingênuos dizem que não, que o agir do leão vem de suas próprias convicções digestivas e não foram neles plantadas por terceiros. Não há resposta, mas como debaixo do sol não há segredo que um dia não chegue à luz, quem sabe poderemos satisfazer nossa curiosidade no futuro?
Foi pensando nessa situação que eu me lembrei de Turno, personagem criado por Virgílio em sua Eneida, chamado de audaz pelo poeta, porque tomou a iniciativa de encetar uma batalha contra o herói Eneias. Sim, disse Turno, a Fortuna favorece os que ousam. E ele seguiu em frente, não tendo se dado nada bem no final1. Na verdade, a Fortuna foi propícia ao intrépido Eneias, vindo da distante Tróia para fazer o seu nome na Bota Latina.
No latim de Virgílio temos o uso do termo audentes, a respeito do qual eu peço licença para entender traduzível de duas formas, audaciosos e audazes, cada uma com significado diferente da outra. Audaciosos seriam aqueles que tomam uma iniciativa cheia de perigos intransponíveis, em relação aos quais a derrota seria certa. Sua ação não apresentaria algum fundamento factível. O evento danoso a ser enfrentado ficaria no campo da certeza e não do risco. Nessa interpretação estariam presentes elementos de negligência, imprudência e imperícia de nível tão elevado que passariam para o campo da materialidade incontornável.
Já audazes seriam os que tomam uma iniciativa corajosa, de alcance do tipo "missão impossível", mas conhecem os perigos à sua frente e acreditam que eles são superáveis. Analisam as circunstâncias, as pesam e seguem adiante conscientes de que há um resultado valioso a ser alcançado. Mais ainda, o audaz perseguiria uma causa meritória, enquanto o audacioso agiria em favor do seu próprio egoísmo ou do de algum "protégé".
Nessa nossa tentativa de uma nova construção semântica eu diria que Napoleão Bonaparte foi audacioso quando invadiu a Rússia no inverno, enquanto os astronautas da NASA foram audazes quando seguiram para a lua nas suas naves.
No nosso entendimento, alguns ministros do STF da Terra de Malasartes agem de forma audaciosa em seus julgamentos e um dia a conta a pagar chegará inexorável, qualquer que seja a sua forma. O mesmo acontecerá com os julgadores integrantes das filiais desse STF e, se arrependimento matasse – a não ser que muito estejamos enganados -, teríamos já um óbito, ocorrido a contar de um episódio ainda bem fresco na memória dos cidadãos da Terra de Malasartes, que pode ficar conhecido como o "Puxa-Puxa de Puerto Contento", cidade esta do sul daquele país. Essa história será registrada nos anais da Terra de Malasartes na categoria de tragicomédia, mais para comédia do que tragi, porque os seus anti heróis deramcom los burros em la agua, falando aqui em bom portunhol. E tudo aconteceu porque três aloprados, da Guarda Vermelha do Cardeal Richeliula resolveram tentar um golpe baixo para tirá-lo da prisão onde se encontra cumprindo pena relativa a uma condenação por crime de gula imobiliária litorânea descontrolada.
Uma pergunta não deixa de cutucar a nossa cabeça? Onde estariam os demais membros do STF da Terra de Malasartes? Todos eles são contados entre os audaciosos? Não há qualquer deles do lado dos audazes? Pretendem eles um dia fazer um upgrade do nome daquele tribunal para supremo? É estranho que na conta daquele tribunal o número três vale mais do que o número oito. Ou, mesmo, do que o número cinco. E o número onze nunca foi visto inteiro. Tem algum erro nessa aritmética. Pior ainda, o número um tem reinado muitas vezes sozinho, sem qualquer contraste, altaneiro como um abutre singrando os ares, acima das montanhas geladas da Terra de Malasartes. Esse número um devora as suas vítimas, nada deixando para as outras aves da mesma espécie. É um abutre insaciável, classificado como avis monokrática, espécie que era rara, mas anda se multiplicando muito ultimamente.
E enquanto alguns magistrados daquele mínimo tribunal bombardeiam o direito (tal como os venezianos que destruíram o Partenon em Atenas com um canhonaço), os cidadãos da Terra de Malasartes se enxergam desanimados, sem esperança, pagando a conta incalculável que lhes deixou uma dupla de ogros malvados, que, ovíparos, chocaram os seus ovos por todo o país, alimentando os filhotes não com boa refeição, mas com uma ração barata.
Desesperançados, muitos malasarteanos têm ido embora da sua pátria de nascimento, deixando para trás quem não pode ou não tem coragem de os seguirem. Muitos seguem para o acolhedor Portugal onde procuram um espaço para ganhar a vida. Mas existe certa elite desta Terra de Malasartes que também gosta de ir à terrinha lusitana para passear, curtir imerecidamente os restaurantes, tomar um "Pera Manca" e adoçar a boca com pastéis de Belém. Sabemos quem são.
Por aqui, "Ordem e Progresso", não mais. Em seu lugar "Desordem e Retrocesso".
Ave!
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1 Admirador da Ilíada e da Odisseia de Homero, Virgílio escreveu esse poema épico como continuação histórica dos dois poemas gregos, no qual defende a tese de que fundação de Roma tem origem em refugiados da Guerra de Troia, destacando-se entre eles o herói Eneias. Turno era um rei latino, que se tornou inimigo daquele. 
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é advogado e sócio do escritórioDucler

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