domingo, 2 de setembro de 2018

"CULPA DO MATA-BURRO"






Nas noites frias de inverno, meu pai costumava fazer uma pequena fogueira no meio da cozinha onde então dispunha as cadeiras em círculo e lá ficávamos nós, as cinco meninas, a ouvir histórias com os olhos brilhantes de felicidade.
Minha mãe então nos servia café com leite bem quentinho e broas de fubá que desde os sete anos de idade aprendera a fazer com Nhá Lila, minha avó.
O dia havia sido de intenso trabalho no Sítio “Bom Retiro” onde morávamos.
Meu pai contava muitas histórias.
Primeiramente, retornava à tecla permanente.
Falava do tempo em que servira o Exército como Voluntário na cidade de Ribeirão Preto, na década de 40.
Meu pai sempre dizia que, se não fosse sãomiguelense da gema, e se tivesse uma coisa chamada de “livre arbítrio”, que só bem mais tarde compreendi o que ela significava, ele teria gostado de ter nascido e se criado naquela cidade.
Meu pai então lembrava-se de muitos episódios, como do tempo em que fora prático de Farmácia em São Paulo, trabalhando na Rua Domingos de Moraes.
Aí, contava que morara numa pensão no Bairro da Liberdade e que nessa época a Capital possuía mais de trinta mil veículos.
A gente sabia o que era veículo, só não imaginava todos esses carros trafegando pelas ruas da cidade.
Tempo do prefeito Prestes Maia.
Foi nesse tempo que meu pai se tornou um grande torcedor do São Paulo Futebol Clube.
E era são-paulino roxo.
Estranho, porque na época só os ricos é que se diziam torcedores desse time.
Como foi?
Recebia um ordenado tão miserável nessa farmácia, que mal dava para pagar o aluguel. Ainda mais que acabou travando forte amizade com um colega de quarto, muito farrista, e que o levou a conhecer as noites paulistanas.
- “Que noites!”- suspirava ele, jogando os olhos para minha mãe...
Foi quando um colega de trabalho o aconselhou a se tornar amigo também do cobrador de um bonde que ele tomava todos os dias e que era tricolor doente, quer dizer, um tricolor quase desenganado de tão roxo.
Feito isso, meu pai passou a viajar de graça diariamente, claro, enganando o cobrador.
Só que o engano demorou pouco, pois o time do São Paulo acabou conquistando seu coração.
Meu pai tornou-se um são-paulino, de alma e coração, até o fim de seus dias.
Das histórias que nos contava, havia uma que ele sempre repetia. Essa permaneceu durante toda a nossa infância chegando até a frustrar por algum tempo nossos primeiros sonhos.
Dizia de um grande casamento para o qual fora convidado numa cidade vizinha a São Miguel Arcanjo.
Como ainda não tinha automóvel, foi para lá de cavalo. Um cavalo branco muito grande e bonito chamado Bainho.
Segundo meu pai, nesse casamento tinha de tudo.
Comidas que ele jamais conhecera, tantos paladares e cores. 
Bebidas que ele jamais tomara, tantos os sabores.
Sanduíches que ele jamais experimentara.
Bolos, então, de tantas formas e tamanhos.
Guloseimas? Milhares delas.
Aí ele voltava do transe em que se enlevava e dizia para a gente, só para ver a nossa reação:
- “Arranjei uma sacola bem grandona e coloquei dentro dela tudo o que o cavalo podia carregar para trazer para casa; tinha até umas lembrancinhas, miniaturas de florinhas em tules bordados”.
- “E daí, pai?” - eram cinco vozes em uníssono.
- “E daí, quando eu estava chegando perto do mata-burro, começou um tremendo temporal. Dei um tranco no Bainho para ele apressar o passo, mas ele acabou tropeçando bem no meio do mata-burro e derrubando a sacola que escorreu pelo buraco e caiu na enxurrada que já se formava na estrada. E lá se foi aquele montão de doces e salgados que eu trazia da festa. Não pude fazer nada”.
Minha mãe olhava para nós com tanta pena pela judiação que meu pai nos fazia com toda aquela mentirada sobre o tal casamento.
Íamos dormir frustradas e magoadas. Cada qual sonhando igual.
Mas no dia seguinte, tudo estava esquecido, porque minha mãe já se arvorava a fazer bolinho de frango, doce de goiaba com queijo, tudo para matar nossas lombrigas ouriçadas pela noite anterior.
O bolinho de frango da minha mãe?
Ela aprendeu com minha avó, mãe do meu pai, a Nhá Lila.
Dentro do bolinho, vinha um pedaço inteiro de uma parte do frango cortado na junta.
Era uma verdadeira refeição.
Minha mãe nos dizia sempre que aprendera com nossa avó, mas ‘só de olhar’.

- Trecho transcrito do livreto "CRÔNICAS DE INFÂNCIA" da autora Luiza Válio, Editora Trombetti - publicado em 2.010.


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