sexta-feira, 19 de outubro de 2018

JOSÉ SARNEY E A DEMOCRACIA QUE POUCO OS BRASILEIROS CONHECEM


A conquista da democracia
Quando Tancredo Neves morreu, deixou-me com a difícil e quase impossível tarefa da transição democrática: sair do regime autoritário militar para o estado civil de direito.
Só eu sei e guardo o quanto foi difícil. O país estava dividido. Na área militar a maioria, a linha dura, era contra a abertura iniciada por Geisel e continuada por Figueiredo. Do lado civil a paisagem não era nada animadora: divisão completa entre grupos que iam da extrema esquerda, passando pelos agitadores, pelos moderados até aos adeptos da volta dos militares.
A Constituinte, por mim convocada, virou uma festa e a bacia das almas, cheia de candidatos a presidência querendo depor-me. Não foi feita com os olhos no futuro. Dela saiu a Constituição que tornou o país ingovernável, como se vê agora. Parlamentarista e presidencialista, capitalista e socialista.
Por duas vezes tive que sustenta-la: uma, quando tentou retirar das atribuições das Forças Armadas a de assegurar a ordem interna. Estivemos à beira do retrocesso. Outra, quando quiseram submeter a propriedade privada a controle social. Depois foi paralisada pela impossibilidade de se aceitar que a Comissão de Sistematização impusesse um projeto aprovado por 47 votos, que só poderia ser modificado por dois terços dos 559 constituintes. Era um golpe da esquerda radical contra a maioria. Ajudei Ulysses a superar o impasse e concluir a Constituição de 88, com o apoio de patrióticas lideranças do Congresso. Caso contrário iríamos seguir o caminho das constituintes de 1823, dissolvida, ou de 1934, que deu no Estado Novo do Getúlio.
Enfrentei 12.000 greves movidas por desestabilizar o governo e algumas vezes estivemos à beira da anarquia. Enfrentei-as democraticamente e com muita paciência.
Terminamos com o país redemocratizado.
Os militares voltaram aos quartéis e integraram-se ao poder civil, síntese de todos os poderes. Pacifiquei a nação, tive eleições todos os anos, normalmente e sem traumas. Obra de engenharia política que, sob minha liderança, construiu um novo Brasil, voltado para o social, com oportunidades para todos, em que um operário, Lula, foi candidato em 89 e chegou a ser Presidente da República em 2002. Os partidos de esquerda, como o PC do B, que viviam sempre na clandestinidade, foram legalizados por mim. João Amazonas, seu fundador, transformou-se em meu amigo. O Brasil cresceu uma Argentina, 5% ao ano, 25% no período. O Brasil passou para o 6º lugar na economia mundial. Deixamos as instituições consolidadas e um país pacificado.
Fui o presidente que fez a transição democrática.
O brasilianista Ronald M. Schneider, autor do clássico Latin American History: Patterns & Personalities, disse ter sido ela “a mais exitosa do mundo”, com grandes elogios a minha atuação. Tenho orgulho de ter prestado esse serviço ao meu país e a sua História. A democracia agonizante não morreu em minhas mãos, ao contrário, ressuscitou. Meu temperamento de paciência, de diálogo, de prudência e de espírito de conciliação salvou o país.
Sabe Deus o que passei. Mas, hoje, 30 anos depois, eis mais uma eleição. As instituições recriadas resistem a tudo. E os cidadãos que participam lembram-se de quem, modestamente, abriu o poço.

De Péricles às batatas
Ao discursar nas Nações Unidas, em 1989, tive a oportunidade de afirmar que “o caminho do desenvolvimento passa pela democracia”. A definição mais simples e mais antiga dela é a grega, cujos princípios básicos estão no discurso de Péricles, grande general e orador, aos mortos na guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta.
Ali ele define democracia pela junção de duas palavras gregas: governo do povo. E define a obediência às leis (estado de direito, que James Harrington, citando Aristóteles, sintetizou, milênios depois, como governo das leis e não dos homens); igualdade de todos; democracia representativa, isto é, não ser o governo de um só homem, mas de muitos, sempre escolhidos pelo povo etc. Lincoln, na beleza com que escrevia, aprimorou sua definição para:Governo do povo, pelo povo e para o povo; já Churchill, com cruel realismo, disse: É a pior forma de governo, exceto todas as outras.
Esta introdução é para dizer que as eleições são a essência da democracia. É por meio dela que o governo democrático se constitui. Por isso tem que ser limpa, sem deformação da interferência do poder político, econômico, militar e da fraude. Até hoje não conseguimos afastar essas ameaças, embora contra elas lute-se sempre.
Tivemos uma eleição atípica no último dia 7. E o resultado também foi assim. O país vive um caos institucional — como no universo de Einstein, sempre em expansão, os poderes ocupando espaços veloz e autoritariamente, um querendo engolir o outro. Por outro lado, tornou-se um país dividido, marcado pelo ódio e pela pregação da divisão de classes, pela insegurança jurídica — desapareceram a coisa julgada e o direito adquirido —, por leis circunstanciais e casuísticas desintegrando o estado de direito. Nesse clima, com trinta e nove partidos, uma Câmara de Deputados atomizada e o Senado também, sem falar na qualidade da representação, é impossível governar.
Mas fico feliz, pois, esquecendo tudo isso, sei que o País vai superar suas septicemias e vamos viver um Brasil que se contorce, mas que vai ressurgir.
Muito pior vivi eu, em 1985, quando Tancredo morreu e assumi a presidência da República. Mas comandei a transição, deixei a Democracia restaurada e o país andando.
Infelizmente, a Constituição de 1988, feita com os olhos no retrovisor, sem ver a sociedade do futuro, tornou o País ingovernável, e um anarcopopulismo levou-nos ao caos que atravessamos.
Como dizia Machado de Assis: aos vencedores as batatas. Mas que tenham sorte. São meus votos.

Entre trancos e barrancos
Alexis de Tocqueville, em sua clássica e famosa obra, “A Democracia Americana”, que já caminha para dois séculos de sua primeira edição (1835), fez a apologia do regime praticado nos Estados Unidos, único no mundo com suas características, até então, e disse de suas grandes e inovadoras virtudes. Tão boas que essas instituições se espalharam no mundo inteiro, inclusive no Brasil, onde a República, sob a inspiração de Rui Barbosa, moldou a Constituição de 1891 com o domínio das ideias civilistas dos direitos individuais e do poder político, síntese de todos os poderes.
Mas Tocqueville fez uma ressalva sobre o modelo americano: a instituição da reeleição.Em duas páginas ele explica porque era um erro e porque a condenava. O Presidente já assumia pensando na sua reeleição e fazia o diabo para alcançá-la — assim ferindo os ideais democráticos.
Eu, quando passou a reeleição no Brasil, era senador e fui contra, preferindo estender o mandato de 4 anos para 6, mas não introduzir a reeleição. Mesmo tendo a época uma filha Governadora, assumi essa atitude tendo na cabeça o livro de Tocqueville e concordando com ele com suas ressalvas.
Só tenho motivos para não me arrepender de minha posição. Veja-se a eleição de domingo próximo, dia 7, que será realizada sob uma nova lei eleitoral, péssima, que até se dá ao luxo de dar quantos centímetros deve ter um cartaz, e introduziu o financiamento público exclusivo. O sonho do legislador e dos Ministros do TSE era baratear as eleições, sendo menor o período eleitoral e evitar que o dinheiro e o governo trucidassem a liberdade democrática. Para lembrar Shakespeare, “Sonho de uma Noite de Verão”. Nunca vi, em meus 64 anos de política, nenhuma eleição como esta, em que o governo não tivesse nenhum pudor em violar a vontade do povo, com o medo, a perseguição, o terror, o dinheiro e a utilização da máquina estatal. O dinheiro, segundo nos falam, corre altíssimo, em números assombrosos. Para a corrupção, de que fizeram tanto alarde, ninguém ligou. A política judicializou-se e a Justiça politizou-se.
O Brasil está dividido, com ódio e perda total da autoestima.
É assim, aos trancos e barrancos, que caminha a democracia, que já foi, no sonho de Péricles e de Jefferson, o caminho para a cidadania e a busca da felicidade.
Para mim, continuo certo de que, com a Constituição de 88 e leis eleitorais como a atual, o país está e ficará cada vez mais INGOVERNÁVEL.

José Sarney

- do site oficial do ex-presidente -


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