Em livro de memórias, Ney Matogrosso narra sua relação com o divino, o sexo, a liberdade e o autoritarismo.
Leonardo Lichote/
04/11/2018 - 07:00
Aos 77 anos, Ney Matogrosso lança suas memórias, mas preservando sua intimidade e sem querer escandalizar metade da MPB Foto: Leo Aversa / Agência O Globo
As primeiras palavras de Vira-lata de raça (Tordesilhas), livro de memórias de Ney Matogrosso, são “sempre reagi ao autoritarismo”. As últimas, uma projeção do epitáfio futuro: “Viveu livre!”. Na linha que liga passado e futuro, infância e maturidade, o volume — com pesquisa, interlocução e organização do poeta e escritor Ramon Nunes Mello — traça exatamente um caminho que se mostra em suas duas pontas: uma história de recusa de limites. O uso de drogas servia a isso, bem como a relação de Ney com o divino, sua vida sexual e, evidentemente, sua persona no palco e sua trajetória artística. Na página 99: “Na recepção dos hotéis preencho a ficha de hóspede assim: ‘artista’. Não escrevo ‘cantor’, pois não quero me limitar”.
“Liberdade é a única coisa na qual acredito. É minha maneira de estar na Terra, encarnado aqui”, afirmou o cantor, ou melhor, o artista de 77 anos, que olha para o relato exposto em Vira-lata de raça e reconhece ali essa jornada pela liberdade.
“A vida é uma jornada, o ponto final é a evolução espiritual. É o que eu sempre idealizei em todos os momentos. As drogas eu usei com essa função, principalmente o lisérgico. O que se abria para mim com o ácido era a compreensão de Deus. A primeira vez que tomei um, estava em Búzios, na praia. Olhei para a areia na minha mão e entendi Deus, a criação, que tudo é importante e tem o mesmo valor.”
Ney Matogrosso aos 3 anos, quando morava na Bahia Foto: Arquivo pessoal.
A revelação de Deus nos grãos de areia, o infinito no minúsculo — é disso também que trata o livro.
Os pedaços de couro descartados que o jovem hippie Ney usava para fazer as joias artesanais nas quais exercitava o olhar plástico presente ao longo de sua carreira — e que já se mostrava nos desenhos da infância. A troca do verso de “Pro dia nascer feliz” por “f... pra ser feliz”, brincadeira que fazia nos shows sempre que na plateia estava o autor da canção (o amigo Cazuza, com quem teve um relacionamento amoroso de três meses, “uma paixão que se consumiu nas labaredas dela própria”). A resposta aos colegas de Secos & Molhados, que no início da banda o enquadraram por seus “exageros” no palco — estavam gerando boatos de que eles seriam “um grupo de bichas”: “Digam que vocês não são”. Detalhes que pintam o retrato de Ney, harmonizando tons de transgressão e
sensibilidade.
Estreia do mítico grupo Secos & Molhados Foto: Ary Brand
Vira-lata de raça foi feito sobretudo a partir de depoimentos dados por Ney ao longo de sua vida e compilados agora por Nunes Mello — o organizador também tirou material de três longas conversas com o artista. Por isso, o livro — que será lançado no dia 8 em São Paulo, na Saraiva do Shopping Pátio Paulista, e no dia 13 no Rio de Janeiro, na Travessa do Shopping Leblon — mira menos em revelar fatos e nomes e mais em expor um panorama extenso da vida, da personalidade e do pensamento de Ney. Até porque o artista sempre se expôs com muita clareza:
“Só existe uma verdade, não é? Não tenho versões da minha vida. Então quase tudo que está no livro eu já tinha falado. Afinal, na primeira entrevista que dei na vida, quando o jornalista se aproximou de mim, pensei: ‘O que eu vou falar?’. E entendi que eu tinha de falar a verdade. Porque assim você vive em paz com você mesmo, tranquilo com sua consciência, não vai ter ninguém atrás de você levantando escândalos sobre sua maneira de ser, de viver”, defendeu Ney, lembrando que há uma biografia sua sendo produzida pelo jornalista Julio Maria.
O limite da exposição, Ney diz, é sua intimidade. Um conceito que, para ele, é mais flexível do que para a maioria das pessoas. Ele associa intimidade a relacionamentos amorosos — já que não impõe barreiras quando o assunto recai sobre drogas, sexo ou política. “As coisas que eu preservo e são da minha intimidade jamais saberão, porque não tem como fazer levantamento disso. Intimidade é falar em nomes. Não quero escandalizar a sociedade, não quero fazer estremecer a MPB.”
No livro, porém, ele se permitiu deter-se sobre dois desses relacionamentos. Há um capítulo centrado em Cazuza. E também palavras dedicadas a Marco de Maria, seu companheiro por 13 anos. “Nunca tinha falado sobre o Marco”, contou Ney, referindo-se ao homem que recentemente foi chamado de seu “ex-marido” num jornal. “Isso é uma loucura. Nunca olhei para ele como marido, nem ele. Nunca passou pela minha cabeça chamar alguém de marido ou que alguém me chamasse de marido.”
Com Cazuza, um de seus amores, em 1986 Foto: Cristina Granato.
Cazuza é lembrado num encontro na praia, quando Ney tinha 39 anos e viu “o moleque de 17 anos, cabelo comprido de cachos, parecia um anjo que havia despencado do céu, aquele pivetezinho da praia, um tremendo vagabundo”, “lindo” e “apaixonante”. E também como o amigo, já debilitado, que ele visitava para massagear-lhe os pés. Ou para quem havia dirigido o show Ideologia, todo pensado para tratar com elegância a fragilidade física que a aids já impunha ao compositor.
“Depois, vi numa entrevista Cazuza dizer que aprendeu comigo a respeitar o palco”, disse Ney. “Eu respeito o palco. Tentei transmitir isso para ele. Não é só subir e fazer loucura, mesmo sendo rock’n’roll. É um lugar onde você está tendo uma manifestação, está manifestando algo. Eu não cuspo no palco. Nunca cuspi. Jamais cuspiria. Pode ser uma bobagem para muita gente. Para mim não é.”
Ney lembrou que foi ele quem sugeriu que Cazuza incluísse naquele show a então inédita “O tempo não para” (“Essa música tem de encerrar o show, escuta o que ela diz”, falou na época). “Cazuza foi um dos grandes amores da minha vida, mas não foi o único. Talvez sua grande importância tenha sido me abrir uma possibilidade. Porque até ali eu não tinha nenhum interesse de namorar, de morar. Com ele tive a percepção de que era um amor e de que portanto poderia ser uma coisa mais próxima durante mais tempo.”
No livro, Ney relata outros trabalhos que fez como diretor, como quando sugeriu que os garotos da iniciante RPM explorassem a sensualidade, tirando os agasalhos e ficando sem camisa. Com Chico Buarque, ele não foi tão ousado, mas mesmo assim encontrou resistência, disse, ao lembrar um episódio que não está no livro: “Como a imagem dele ia ser projetada no telão durante o show, sugeri: ‘Chico, bota um colírio nesse teu olho que ele vai faiscar no telão’. Ele disse que não queria. Aquele olho lindo ia enlouquecer a multidão”.
O domínio de palco que Ney aprendeu a ter ao longo da vida — e a força que manifesta nele — vem do exercício de domar uma energia interna que sempre sentiu. Uma energia que, de tão intensa — ele contou —, acreditou que fosse levá-lo à loucura. “Tinha medo na adolescência, porque percebia dentro de mim uma violência que me assustava. Temia que, no dia em que eu liberasse isso, não voltaria mais. Viraria um assassino, um psicopata.”
“Durante certo tempo, olhava para as fotos dos Secos & Molhados e não me reconhecia, achava aquilo muito diferente de mim. Pensei ter dupla personalidade, achei que era esquizofrênico. Mas entendi que aquilo era uma manifestação que era necessário que fosse agressiva, senão eu teria sucumbido. Porque alguns públicos foram muito agressivos.”
Vira-lata de raça traça, portanto, essa jornada de delicadeza e agressividade. Seu ponto de partida é o menino reprimido pelo pai militar, descrito no livro como “a maior autoridade que enfrentei na minha vida”. Seus passos mais recentes mostram o artista que não se permite capturar nem pela patrulha identitária — a polêmica com o cantor pernambucano Johnny Hooker, que atacou Ney por sua declaração “gay o caralho, eu sou um ser humano”, está no livro — nem pela desonestidade do MBL — um membro do grupo tirou uma foto com ele sem se identificar e divulgou a imagem afirmando que Ney apoiava o impeachment de Dilma Rousseff.
“Você não pode mais estar relaxado no mundo”, afirmou Ney. Para ele, hoje somos mais caretas do que éramos nos anos 60, 70 e 80. “Acabamos de eleger o Bolsonaro, isso é um sintoma dessa mentalidade mais conservadora. Não estou com medo, não vou plasmar medo. Mas estou atento a ele, observando”, disse.
“Por outro lado, vivi num mundo em que todo mundo era igual, havia o universal. Hoje é cada um na sua caixa. Quem é gay é gay, quem é feminista é feminista. Começamos a nos desprender uns dos outros, quando na minha cabeça tudo era uma coisa só. Tem um lado meu que entende isso. Essas pessoas talvez necessitem se desprender do todo para conseguir mais visibilidade, mais respeito. Mas não deixo de pensar que estamos perdendo o encanto de sermos todos uma coisa só, numa panela só.”
Beijo no palco com Caetano Veloso Foto: Ary Brand.
Revista Época.
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