Um sinal de que o presidente parece perdido é que, mesmo antes do primeiro ano de sua presidência, seus filhos já estejam lançando sua candidatura à reeleição em 2022, quando ele, na realidade, ainda continua em sua campanha anterior.
O presidente Jair Bolsonaro. ADRIANO MACHADO (REUTERS)
Tudo indica que o presidente Jair Bolsonaro, aos nove meses de um Governo que seria cheio de audácia, de mão dura contra a corrupção, contra a violência, contra a velha política e a favor da decolagem da economia encolhida, se encontra na verdade desorientado, entre duas águas, ou, para dizê-lo como o grande dramaturgo inglês William Shakespeare, preso entre o “ser ou não ser”.
A frase pronunciada pelo príncipe da Dinamarca, no início do terceiro ato da obra Hamlet, atravessou séculos de literatura e foi aplicada tantas vezes ao campo da política e até nos momentos de crise pessoal, quando, de reis até nós, os súditos, a vida nos obriga a escolher, a ser o que queríamos ser ou a permanecer na mediocridade do não saber escolher.
Recita o príncipe Hamlet:
“Qual é a mais digna ação da alma: sofrer os dardos penetrantes da sorte injusta ou opor-se a esta corrente de calamidades e dar-lhes fim com atrevida resistência?”.
O príncipe da Dinamarca segurava uma caveira na mão enquanto recitava seu “ser ou não ser, eis a questão”.
E essa interrogativa de mais de 400 anos atrás volta a ser atual hoje no mundo da política e das lutas sociais e se coloca com força na política brasileira.
O dilema de saber o que queremos afeta hoje visivelmente quem comanda os destinos do Brasil presidido pelo ex-capitão Jair Bolsonaro, que o colunista Vinicius Torres Freire acaba de descrever na Folha de S. Paulo como o presidente que “além de animar a extrema-direita e de cuidar dos filhos, está sem rumo. Além do circo e da filhocracia, existe uma sensação de vazio no ar”.
E é verdade que o problema de Bolsonaro, que deveria ser aconselhado a reler o Hamlet de Shakespeare, é saber o que realmente quer. Se ser o que prometeu para conquistar os votos ou ser o que agora talvez veja que lhe é impossível, porque a realidade da política acaba por superá-lo.
Bolsonaro começou a perceber que não existem atalhos entre democracia e ditadura se se quer fazer política. E esse é o seu problema, que por um lado abomina a política na que sempre viveu e gostaria de evitar os suores de resolver os problemas sem ferir os valores democráticos, que só se conjugam com a arte do compromisso e do diálogo e não admitem saltos no vazio nem ameaças autoritárias.
Que o presidente ainda não sabe o que quer ser é demonstrado pelo fato de que todos os dias perde consenso entre os que o enalteceram, porque se sentem traídos por ele ao vê-lo flertando com juízes e políticos da velha guarda. Aqueles que aplaudiram quando seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, disse durante a campanha eleitoral que para fechar o Supremo Tribunal Federal “bastava um cabo e dois soldados”, lhes parece uma traição vê-lo hoje com o magistrado Antonio Dias Toffoli, presidente do Supremo, como dois velhos amigos.
Em uma reunião com políticas, deputadas e senadoras, o presidente chegou a dizer-lhes que Toffoli havia sido uma “uma pessoa excepcional” com ele. E acrescentou: “a justiça está do nosso lado”. E Toffoli confidenciou que Bolsonaro era “uma pessoa alegre e de bom humor”. Adulações perigosas, mas que deram frutos, se considerarmos que o presidente viu Toffoli lançar um decreto que permitiu que seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, deixasse de ser investigado sobre suas supostas acusações de corrupção.
Bolsonaro, que havia prometido aos seus que com ele no Planalto “Lula apodreceria na cadeia”, pode, ironia da vida e da política, ver sob seu reinado o petista sair da prisão e até, talvez, ser absolvido de sua primeira condenação.
Todos os dias o presidente cheio de audácia se vê mais perdido entre o ser e o não ser.
E isso é grave inclusive para a direita liberal e para o centro, pois, com suas loucuras políticas, o presidente parece fazer ver que fora da esquerda, que ele abomina, não existem outras possibilidades políticas na democracia. A extrema-direita —que até ele já não sabe como administrar— está comprometendo o futuro político deste país.
Um sinal de que Bolsonaro parece perdido é que, mesmo antes do primeiro ano de sua presidência, seus filhos já estejam lançando sua candidatura à reeleição em 2022. A dinastia Bolsonaro deve ter detectado que os excessos do pai rearmaram a direita e o centro civilizados e até fazem a esquerda sonhar. Por isso querem começar já uma campanha eleitoral de três anos, quando na realidade Bolsonaro ainda continua em sua campanha anterior, que é o que ele gosta. É na campanha que podem ser lançadas as maiores barbaridades ou promessas celestiais sem medo.
Governar em paz, para todos, com respeito à democracia sem excluir ninguém, sem anátemas e sem ameaças, é outra coisa. Polônio, o velho camareiro-mor do reino, diz ao príncipe, em Hamlet: “a loucura acerta às vezes, quando o juízo e a prudência não dão frutos”. E é o juízo e a prudência que parecem faltar hoje à política brasileira. Será por isso que tantos continuam apostando e se sentem bem na loucura?
O difícil, nestes momentos em que parece não haver fronteiras entre o juízo e a loucura e onde, em meio a uma política e políticos que não sabem decidir entre o ser e o não ser, é encontrar o caminho da sensatez e da defesa de todos aqueles valores humanos e liberdades que nos redimem.
E aí entramos todos os que queremos uma política que fale, que não esconda, que ajude os mais pobres, que não degrade as conquistas sociais e as mantenha vivas. Um dos grandes silêncios de Bolsonaro e suas hostes é justamente o mundo dos excluídos, que estão deslizando abaixo da linha da pobreza. Um mundo que, quando Bolsonaro foi falar na ONU, ficou esquecido no Brasil. Seu silêncio sobre as questões sociais foi ensurdecedor.
Atribui-se a Einstein uma afirmação que quero deixar como esperança: “a crise leva ao melhor da criação e expõe o gênio do ser humano”. Oxalá que a emaranhada crise que o Brasil está vivendo e sofrendo leve, embora hoje possa parecer um sonho difícil, a uma profunda purificação da política e da cultura hoje tão desprezada.
No final, relendo Shakespeare 400 anos depois, vemos que os problemas políticos de então não eram tão diferentes dos que estamos sofrendo na era da inteligência artificial.
Hamlet já se queixava de que não era fácil “suportar a lentidão dos tribunais, a insolência dos funcionários e as arbitrariedades que recebe pacífico o mérito dos homens mais indignos”.
Bolsonaro deverá se decidir a ser ou não ser, ou serão as outras forças democráticas que decidirão por ele ou sobre ele.
EL PAÍS
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