Como José Bonifácio alertou para as consequências da degradação ambiental
Boa parte do Brasil está passando por prolongada estiagem. Os efeitos são facilmente notados, tanto na saúde da população (sendo as crianças e idosos os que tendem a sofrer mais em decorrência da péssima qualidade do ar), quanto na enorme facilidade com que incêndios conseguem propagar-se, quer nas matas, quer nas cidades. Ainda esta manhã os telejornais mostravam uma favela a arder no Jabaquara, com o quadro agravado por tratar-se de área próxima ao aeroporto de Congonhas. Já os jornais estão a falar em "dias de Saara" para São Paulo e adjacências, paralelamente à divulgação de dados alarmantes relativos aos incêndios florestais, que chegam a desafiar a perseverança e competência de bombeiros e voluntários por semanas inteiras, como é o caso do que ainda ocorre na Ilha do Bananal. Agricultores lamentam o comprometimento das lavouras, enquanto que em algumas cidades, aquelas com sistemas de captação menos eficientes, já começam a ser impostas medidas para controle do consumo de água.
É nesse clima que escrevo e, para ser mais exata, neste momento a umidade relativa do ar marca absurdos 13%, o que me fez lembrar de uma leitura de tempos atrás que quero compartilhar com você, leitor.
Era o ano de 1823 e, em meio aos debates da Assembleia Constituinte, José Bonifácio escreveu uma memória em que advogava o fim gradual da escravidão, mostrando toda a inconveniência do trabalho compulsório para o Brasil. Ocorre que a Constituinte foi dissolvida e, como se sabe, José Bonifácio foi exilado, de modo que a citada memória, com o título deA Abolição, só veio a ser impressa pela primeira vez em Paris, no ano de 1825, após o que virtualmente caiu no esquecimento, do qual só foi arrancada pela crescente luta abolicionista nos anos oitenta do século XIX. Mas, nesse tempo, Bonifácio já era falecido há décadas.
Por suposto o leitor atento de nossos dias notará nessa pequena obra todo o ideário do tempo em que foi produzida, o que não invalida a ideia central que seu autor desenvolveu. Não, não estou fugindo do assunto da postagem; ao contrário, concluo citando um breve trecho de A Abolição, para que você possa estabelecer seu próprio juízo sobre o assunto:
"A natureza fez tudo a nosso favor, nós porém pouco ou nada temos feito a favor da natureza. Nossas terras estão ermas, e as poucas, que temos roteado, são mal cultivadas, porque o são por braços indolentes e forçados; nossas numerosas minas, por falta de trabalhadores ativos e instruídos, estão desconhecidas, ou mal aproveitadas; nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo; nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes, que favoreçam a vegetação, e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil em menos de dois séculos ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia. Virá então esse dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos."(*)
Que lhe parece? Bonifácio escreveu em 1823. Estamos em 2010!
(*) ANDRADA E SILVA, J. B., A Abolição
Rio de Janeiro: Lombaerts & Comp., 1884, pp. 34 e 35
Postado por Marta Iansen
O desmatamento provocado pela agricultura no Período Colonial
Li, há pouco, uma notícia dando conta da preocupação de governantes brasileiros em fazer que os proprietários rurais assumam a responsabilidade pela recuperação de áreas que foram desflorestadas. Ora, leitor, se isso ocorrer - se - iremos ver este país na contramão de tudo o que já ocorreu no passado em termos de preservação de matas e florestas. Coisa óbvia, a colonização do Brasil se fez com base no desmatamento mais escandalosamente despreocupado. Isso não significa que não tenha existido ou não haja agora muita gente consciente, manejando os recursos naturais com responsabilidade, tratando de conciliar o máximo de produtividade na agricultura e na pecuária com a preservação de florestas que, de outro modo, estariam irremediavelmente perdidas. Mas isso, pelo menos até aqui, manifesta-se como exceção, e não regra.
Vejamos. Os engenhos de cana-de-açúcar do período colonial eram consumidores vorazes de quanta madeira se podia encontrar em suas proximidades. É de Antonil o seguinte informe:
"O alimento do fogo é a lenha, e só o Brasil com a imensidade dos matos que tem podia fartar, como fartou por tantos anos e fartará nos tempos vindouros, a tantas fornalhas, quantas são as que se contam nos engenhos da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, que comumente moem de dia e de noite, seis, sete, oito e nove meses do ano. E para que se veja quão abundantes são estes matos, só os de Jaguaripe bastam para dar lenha a quantos engenhos há à beira-mar no Recôncavo da Bahia, e de fato quase todos desta parte só se provêm. Começa o cortar da lenha em Jaguaripe nos princípios de julho, porque na Bahia os engenhos começam a moer em agosto." (¹)
Não, não, padre Antonil, esses matos não eram eternos, quanto suas dimensões fariam supor. Escrevendo pouco mais de cem anos depois, outro sacerdote, Ayres de Casal, observou:
"As canas-de-açúcar, a mandioca, a planta do tabaco, os algodoeiros, são os principais ramos da agricultura, que tem feito diminuir tão consideravelmente as melhores matas." (²)
E, em outro trecho da mesma obra, informa Ayres de Casal:
"É pena ver derrubar uma árvore magnífica [...] só para se utilizar de algumas dúzias de frutos!" (³)
Penso que isto basta para dar uma ideia de quão criteriosa foi no passado a utilização dos recursos florestais. Não posso prever o futuro, mas posso advertir quanto às consequências do prosseguimento dessas práticas seculares. Neste caso, como em muitos outros, manter a tradição não será nenhuma virtude.
(1) ANTONIL, A. J., Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, 1711
(2) AYRES DE CASAL, Corografia Brasílica, 1817
Preocupações ambientais: do "Brasil holandês" à época da Independência
Embora não haja muito rigor técnico na expressão, é comum que o período de permanência de holandeses no Nordeste brasileiro entre 1630 e 1654 seja chamado de "Brasil holandês". Esse tempo teve início sob a União Ibérica (¹) e a rivalidade entre a Espanha e os Países Baixos explica, ao menos em parte, a tentativa de estabelecimento de uma colônia holandesa nas ricas áreas de produção açucareira do Nordeste.
É fato que todo o período colonial, independente de quem estivesse no comando, foi assinalado por uma exploração dos recursos naturais disponíveis, com pouca preocupação quanto às questões de preservação ambiental. Como regra, esse não era um tema que naquela época despertasse muito interesse, mesmo porque o objetivo principal era sempre extrair ou produzir aquilo que pudesse ser vendido na Europa com altos lucros.
Apesar disso, durante os anos de presença holandesa, vez por outra houve uma lembrança de que os recursos naturais não eram ilimitados, daí a ocorrência de recomendações no sentido de preservá-los. Dois casos serão suficientes para demonstração desse fato, ambos relatados por Jean Nieuhof, em sua Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. Lembremo-nos de que esse autor viveu em Pernambuco entre os anos 1640 e 1649.
Referindo-se à Ilha de Itamaracá, Nieuhof observou que "em certa época, foi ela grandemente infestada por animais selvagens que depredaram os canaviais. Foi então que Pieter Bas, diretor da Capitania de Itamaracá, consultou o Conde Maurício e o Grande Conselho, em 1647, sobre se seria melhor empreitar a destruição desses animais daninhos ou dar-lhes caça a fim de servir de alimento às guarnições." (²)
Imaginam os leitores que, por consequência, um festival de caça foi organizado, não é? Nada disso. Explicou Nieuhof:
"O Conselho, entretanto, rejeitou ambas as alternativas e limitou-se a aconselhar o povo a que não sacrificasse inutilmente os animais, abatendo apenas os que invadissem as plantações, pois era do interesse da Companhia preservá-los para uma eventual necessidade. Os canaviais poderiam ser protegidos por meio de cercas de pau a pique, evitando assim que fossem danificados." (³)
Lembrando, de passagem, que essa prática tão sábia bem podia valer até hoje, vamos ao outro caso de que temos notícia, em virtude de um registro pelo já mencionado Jean Nieuhof. Dessa vez o alvo das preocupações conservacionistas foi o célebre pau-brasil, que era, então, extraído em proporções absurdas:
"Quando os holandeses conquistaram parte do Brasil, encontraram grande quantidade dessa madeira já preparada e pronta para ser utilizada. Essas partidas foram, porém, pelos portugueses, vendidas à Companhia holandesa. Desde então tanto portugueses como holandeses passaram a cortar pau-brasil em larga escala, e tal foi a quantidade de madeira exportada em 1646 e 1647, que os membros do Grande Conselho do Brasil Holandês, Srs. Hendrik Hamel, Bullestrate e Kodde, conhecedores dos ruinosos métodos adotados no corte dessa árvore - e que com o correr do tempo poderia acarretar o seu extermínio - fizeram publicar uma proclamação coibindo tais abusos." (⁴)
Neste ponto será bom recordar que, após a saída dos holandeses, tendo Portugal retomado o controle pleno do Brasil, não foram poucas as vezes em que, ao enviar governantes, o monarca luso incluiu, em suas instruções, ordens expressas no sentido de que se evitassem as derrubadas inúteis de matas, de que engenhos não fossem construídos a pouca distância uns dos outros (pois não seria possível que houvesse madeira suficiente para todos), ou mesmo de que se restringisse a captura de baleias no litoral brasileiro, já que estas, antes bastante numerosas, começavam a escassear.
Tais medidas, no entanto, provaram-se sempre insuficientes. A administração colonial, ainda que eventualmente quisesse executar as ordens, parecia incapaz de fiscalizar seu cumprimento. O resultado disso, sem mais rodeios, foi que, pela época da Independência, já havia muitas regiões do Brasil que não tinham, nem de leve, o aspecto primitivo. Saint-Hilaire, naturalista francês que esteve em São Paulo em 1822, observou:
"A cerca de uma légua de Guaratinguetá, a vegetação dos brejos desaparece completamente, mas é difícil determinar se o que apreciamos é, em toda a parte, resultante do trabalho destruidor dos homens, ou se, em alguns pontos, a paisagem foi sempre tal qual a vemos hoje. Em nenhum trecho deparamos com verdadeiras florestas virgens." (⁵)
Interessante é que o próprio Saint-Hilaire, em um rasgo quase profético, acabaria por assumir que tinha consciência do valor de seu trabalho, ao descrever as paisagens naturais que ainda podiam ser encontradas, antes que chegasse o tempo em que elas não mais existiriam:
"[...] Julgo não ter sido inútil à ciência, fazendo conhecer a topografia botânica das diversas regiões que visitei e cuja vegetação primitiva ainda não desapareceu. Saber-se-á, assim, o que foram essas belas campinas antes de se transformarem nas culturas de milho, de mandioca ou de cana-de-açúcar que um dia as cobrirão; e, talvez, qualquer amante da natureza terá saudade das brilhantes flores dos campos, da majestade das florestas virgens, dos cipós enlaçados em festões pelas árvores e da imponente voz dos desertos." (⁶)
Ah, leitor, em nosso tempo em que já nem são mais os cultivos agrícolas que recobrem muitas das áreas percorridas por Saint-Hilaire, bem podemos avaliar o quanto tinha ele razão. Retorno ao passado? Não é possível, e talvez, sob alguns aspectos, nem seja desejável. Mas é perfeitamente razoável esperar, hoje, um manejo inteligente dos recursos naturais com que este País é favorecido.
(1) 1580 - 1640.
(2) NIEUHOF, Jean Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil
São Paulo: Livraria Martins, p. 49
(3) Ibid., pp. 49 e 50
(4) Ibid., pp. 297 e 298
(5) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo
Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 197
(6) Ibid., p. 199
Postado por Marta Iansen
de 2010 a 2015.
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