DIÁRIOSEXTO SENTIDO
Memórias de um pracinha brasileiro na Itália
Posted on July 12, 2017
by anelise sanchez/POST ITALY
O corpo minuto contrasta com o vigor da mente. Por trás da boina e da jaqueta que ele insiste em atribuir ao Palestra Itália e não ao Palmeiras esconde-se um “pequeno grande menino” prestes a completar 97 anos.
Miguel Garofalo, “Michelo” para os íntimos, não é só, afetuosamente, o cúmplice das pescarias de meu avô paterno. Ele é a memória de uma importante página da história brasileira e mundial.
Michelo, filho de imigrantes italianos originários de Benevento, no sul do país, é um italo-brasileiro especial.
Ele é um “Pracinha”, um dos 25.445 homens que na Segunda Guerra Mundial integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB), a divisão que lutou junto aos aliados na campanha da Itália, participando de batalhas e liberando cidades da ocupação inimiga, contra o nazismo e o fascismo. “Pracinha” é um diminutivo carinhoso de “praça”, ou “soldado raso”.
Em 1939, sob o comando do então presidente Getúlio Vargas, o Brasil anunciou a sua neutralidade no conflito.
Foi só em 1942 que o país declarou guerra à Alemanha nazista e ao fascismo em resposta aos supostos ataques do Eixo a navios brasileiros.
Entre a declaração de guerra e o envio de tropas para o combate, no entanto, houve um longo intervalo.
Foi só em junho de 1944 que os primeiros soldados embarcaram para a Itália. A guerra contra o Japão só foi declarada oficialmente em junho de 1945.
O próprio símbolo Força Expedicionária Brasileira, caracterizado por um escudo com a figura de uma cobra fumando cachimbo, era uma espécie de provocação; uma resposta aqueles que afirmavam ser mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar realmente em guerra.
Michelo ainda conserva na memória o seu batismo de fogo e o sangue jorrado pelos brasileiros.
Os soldados da FEB contribuíram significativamente com a campanha da Itália.
Foram 239 dias de ação contínua com um balanço de 451 mortos, feridos, acidentados, prisioneiros e extraviados.
O meu pacto tácito com “Michelo” não é aquele entre entrevistador e entrevistado.
Prefiro escutar e deixar que ele simplesmente me conte. Condensar quase um século de histórias ou estruturá-las na hierarquia de perguntas e respostas significaria renunciar aos pormenores, às pausas e aos silêncios de um interlocutor que transborda de recordações.
Em um país onde o fervor por uma causa coletiva parece esmorecer, ao vê-lo ali, sentado em proximidade da bandeira brasileira, a primeira coisa que penso é em sua dedicação. Apesar da idade avançada, ele cumpre sem titubear o ritual diário de ir até a sede da Associação dos Ex-Combatentes do ABCDMRR.
A história de “Michelo” está estreitamente ligada à Itália. Seus antepassados foram alguns dos tantos cidadãos que imigravam em busca de “fortuna altrove” (sorte em outro lugar).
Ao me contar de sua infância difícil, ele sublinha que nunca teve um bolo de aniversário. Já no segundo ano da escola teve que interromper o percurso educativo. “Meu pai me convocou – conta – e disse que havia encontrado para mim uma vaga de assistente de pedreiro”.
Os anos seguintes foram ainda mais dramáticos. Com a Revolução de 1930 no Brasil e a depressão econômica americana, o pai, que na época era poceiro, perdeu o emprego. “Por dois anos caçávamos e vendíamos rãs em troca de algo para comer”.
Aos 14 anos tirou sua primeira carteira de trabalho. Para ir até a fábrica, trabalhar como pintor de bobinas para fios de seda, pediu ao primo sapatos emprestados.
Foi com o mesmo par que ele acompanhou uma donzela que atraia olhares no baile promovido pela Rhodia. A dama – cobiçada por seu chefe – recusou-se a abandonar o parceiro e o seu “não” custou-lhe caro.
Os anos passaram e em 1943 soube por intermédio de um amigo que o seu nome estava na Gazeta Oficial entre aqueles convocados para participar da guerra. A única maneira de ser dispensado seria uma carta do empregador justificando que Miguel era indispensável para a empresa.
O chefe redigiu o documento e entregou um documento lacrado ao comando geral do exército. Naquela caligrafia estava sigilado um destino. Miguel havia sido dispensado, mas somente por sessenta dias.
Foi assim que teve início a sua carreira na Força Expedicionária Brasileira.
Longe da família, se deslocou entre várias cidades do estado de São Paulo como Lorena, Piquete, Caçapava e Taubaté. Da patrulha entrou para o time de futebol “Ordem e progresso” e ganhava quase 300 merréis por mês. “Fui o capitão do time e com o salário conseguia ajudar minha família”.
O dia do anúncio da convocação para a guerra também é uma recordação nítida, de sabor agridoce. “Alguns colegas desmaiavam, enquanto outros começaram a preparar imediatamente a própria mala”, lembra.
Miguel sentia a responsabilidade de suas origens. Com pais italianos e acolhido pelo Brasil, em julho de 1944 partiu de navio para a Itália com destino Nápoles.
Os primeiros 5.081 homens do total de 25.445 da Força Expedicionária Brasileira chegaram na cidade italiana em 16 de julho de 1944, enquanto grande parte das tropas aliadas estavam na Normandia.
A recepção no país, no entanto, não foi calorosa como ele esperava. “Nossas fardas de cor verde oliva lembravam aquelas dos alemães e por isso a população local nos confundia com os inimigos”, lembra. Para resolver esse problema, pelo menos na linha de frente os soldados brasileiros eram orientados a vestir as jaquetas americanas, de cor caqui, que as diferenciava do uniforme alemão.
Em Nápoles foi recebido até com pedradas, mas não podia imaginar que aquela seria uma pequena hostilidade se comparada a dificuldades como a fome, o frio intenso e o fogo cerrado.
Apesar de diferenças culturais, a fluência no italiano foi uma grande aliada na superação da desconfiança recíproca. “Eu dizia, paesà, sono brasiliano, figlio di italiani – conta – e muitos demoraram para acreditar. Oferecia charutos que havia ganhado dos americanos e fiz amizades rapidamente”.
A vida de Miguel na Itália é repleta de rostos, perfumes, personagens. De Nápoles seu comando foi até Civitavecchia, cenário de situações dramaticamente neorealistas. “Comia minha marmita no chão quando uma criança se aproximou. Dei a ela a minha comida e no dia seguinte, no mesmo lugar, em vez de uma encontrei duas crianças e depois três, duzentas”.
Inicialmente o capitão havia criado um cordão de isolamento para evitar que as crianças continuassem aproximando-se, mas comovido, não deixou de alimentá-las.
Quem assistiu ao filme Duas Mulheres (La Ciociara), obra de Vittorio de Sica que rendeu um Oscar à Sophia Loren, se lembrará da história de uma mãe e uma filha estupradas por soldados marroquinos do exército francês, durante a Segunda Guerra Mundial.
Michelo conta que lutava para evitar cenas trágicas como essa envolvendo soldados e que em seu comando existia um pacto de respeito à população local.
De Civitavecchia seguiu para os Abruzos e para a Toscana. Em cidades como Casoli e Viareggio esteve na linha de frente e vivenciou vários bombardeios, uma hora de fogo cerrado das 2h às 3h da manhã.
Os brasileiros representaram cerca de 4% dos combatentes aliados, grupo de países liderados pelos Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética. Nossos soldados foram incorporados ao 5° Exército dos Estados Unidos e, apesar de inexperientes, colecionaram vitórias.
Uma das mais emblemáticas é aquela de Monte Castello ou o “monte maldito”, como lembra Michelo.
O local era uma elevação na região montanhosa dos Apeninos e dominado pela chamada “linha gótica”, uma barreira de soldados alemães. Sem conquistar aquela área os aliados não podiam avançar até Bolonha, porta de ingresso à planície do Pó e caminho para Brenner, na fronteira com a Áustria.
Dominar Monte Castello significava criar a condição ideal para vencer a guerra. Depois de quatro tentativas e fogo cerrado, foi só em fevereiro de 1945 que Monte Castello foi conquistada pelos brasileiros.
Michelo também conserva feridas no corpo e na alma. Em um dos momentos mais difíceis – com esforços para recuperar munição e um forte temporal – junto com um colega procurou abrigo em uma igreja, mas o padre que celebrava a missa era alemão. “Eu lhe disse que não deveria ter medo porque éramos brasileiros e não o machucaríamos”. Apesar da desconfiança, Miguel pediu a ele para que ele rezasse pelo fim da guerra. “Ele nos deu alguns santinhos e fomos embora”, completa.
A batalha mais sangrenta para ele aconteceu na área de Castelnuovo e de seus vilarejos próximos. Após horas de tiros ele ficou sem munição. Na linha de frente, Miguel levantou-se e foi atingido por estilhaços de granada e caminhou quatro quilômetros até chegar ao pronto socorro mais próximo. A ponte que passava sobre o rio havia caído e teve que percorrer a distância a pé. Foi operado em Lucca e tratado com penicilina de três em três horas.
Foi mandado de volta ao Brasil, mas sofreu ao saber que seus colegas permaneceram em solo italiano. “Embarquei às 10 horas e ao chegar, quando vi o Cristo Redentor, desabei no choro”. Internado em um hospital carioca, recebeu visitas que lhe disseram que sua mãe acreditava que ele havia perdido os braços e a visão.
“Fui tirar essa história a limpo e quando voltei para casa havia mais de duas mil pessoas esperando por mim”, emociona-se. “Ao me rever, minha mãe jogou-se em meus braços e me perguntou se aqueles eram os meus braços e se eu estava enxergando. Foi o episódio mais triste de minha vida”.
“Michelo” não esconde a palpitação ao lembrar-se de cenas marcantes de sua vida, mas é um homem grato e que sabe agarrar a felicidade. “Desafio qualquer um a encontrar alguém tão feliz quanto eu”, sentencia. Basta olhar para ele para entender que não há melhor maneira de auto representação.
Atualmente, junto com o filho, Kiko Garofalo, Miguel administra a Associação dos Ex-Combatentes do ABCDMRR, em Santo André, São Paulo.
Até hoje, os poucos pracinhas ainda vivos continuam recebendo homenagens e no Museo Storico di Montese, na província de Modena, existe até uma área expositiva dedicada à Força Expedicionária Brasileira.
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