Clóvis Kuntz
HÁ CAUSOS (026)
O dia em que fui ordenado padre sem saber
Quando era guri até que me interessei pela vocação eclesiástica e cheguei a arrumar a mala para ir ao internato dos irmãos maristas. Mas antes de viajar, refleti e concluí que queria mesmo era namorar e casar.
Pois tive um dia de padre, sem querer. Por conta do bom humor dos companheiros de pescaria.
Meu concunhado Horácio (o "Nêgo") morava em São Paulo das Missões e, mesmo sendo obreiro da Assembléia de Deus, tinha como melhor companheiro de pesca o padre católico Julci. Descobriram um bom pesqueiro em Garruchos e deixaram ajustada com um alambrador chamado Oscar Aranda a pescaria do ano seguinte. O Aranda tinha os pais e outros parentes sepultados numa ilha grande do rio Uruguai e queria que um padre fizesse uma bênção no local. O padre Julci prometeu que atenderia o pedido, mas o rio subiu e o ato ficou para outra oportunidade. Aconteceu que Julci largou a batina e foi embora de São Paulo das Missões. No ano seguinte, levei meu filho Taimur Gibran para sua primeira pescaria no Uruguai. Quando chegamos no Barreiro, em Garruchos, o Aranda nos esperava com tudo pronto. Logo estranhei o tratamento respeitoso com que me tratava, nunca falando palavrão perto deste contador de causos.
Por mais que tentasse descontrair, o Aranda continuava muito sério comigo.
Mas tudo se esclareceu quando o Taimur falou:
- Pai, eu vou com o Rodrigo pescar lambari.
Todos caíram na gargalhada e o Oscar, longe de ficar bravo:
- Bem que desconfiei que estavam me enganando! Era muita piada bagaceira para um padre!
HÁ CAUSOS (041)
O "pum" involuntário e o complexo de culpa
Aconteceu lá pelo ano de 1974. Para cursar o ginásio, tínhamos de caminhar todos os dias por cerca de 10 quilômetros (ida e volta) de Esquina Santo Antônio até a Escola Santa Cecília na "vila" do Alecrim. Como não tínhamos dinheiro para a merenda, vendíamos batata doce assada e laranjas de umbigo para comprar sanduíche de mortadela no bar do Hattwig ou sorvete na estação rodoviária do Walter Mahl. Às vezes algum professor falhava e então nos reuníamos no único posto de gasolina para ouvir as piadas mais pesadas contadas pelos caminhoneiros.
O gerente do posto, um senhor de baixa estatura com apenas sete letras no nome e sobrenome (OO, SS, L, E e H, não nesta ordem), já estava de saco cheio da gurizada curiosa.
Certo dia chuvoso, perto da bomba de gasolina formou-se uma rodinha para ouvir umas piadas contadas por um alemão russo do Lajeado Patos.
Quando todos riam alto, o gerente deixou escapar um sonoro "pum" que competia em decibéis com o caminhão FNM que subia a avenida.
O autor da "façanha" virou-se para este contador de causos e consolou:
- Não fica vermelho, guri! Isso também me acontece de vez em quando!
HÁ CAUSOS (046)
Pecos Bill e o cinema itinerante com direito a rajada de balas.
O cinema fez parte da nossa infância e adolescência. Não tínhamos como assistir às matinês dos cines Odeon e Sideral em Santa Rosa, mas as películas chegavam até nós nas barrancas do rio Uruguai pelas mãos de um exibidor itinerante de Três Passos, que com uma Kombi 1200 percorria as colônias exibindo os últimos lançamentos do mercado cinematográfico. Ele chegava de manhã no povoado, acertava o aluguel do salão com o presidente da sociedade e depois percorria as estradinhas com os alto-falantes ligados. Assim, sabíamos que à noite teríamos cinema na vila.
Antes de conhecermos a televisão na Copa do Mundo de 1970, já estávamos bem informados com a exibição do inesquecível "jornal" que antecedia o filme propriamente dito. Foi dessa maneira que assistimos as fitas de Tarzan, Mazzaropi e Teixeirinha. “Motorista Sem Limites” foi a glória do riso.
Pois o “seu Schmidt” fez a nossa alegria. Como éramos assíduos leitores dos gibis de Tex Willer, os filmes de faroeste também tinham uma platéia cativa nos periódicos aparecimentos do exibidor itinerante.
Certa feita, quando o contrabando de farinha da Argentina para o Brasil era intenso e os gendarmes e “navais” não tinham sossego, a Kombi chegou numa cancha de bochas de um afastado rincão das bandas de Porto Lucena. Depois de acertado o uso do salão, “seu Schmidt” saiu com os alto-falantes ligados para convidar o povo. A noite prometia. A película era “Tarzan, o Rei das Selvas”. Logo os altos decibéis ecoaram naquela faixa costeira então densamente povoada. O alvoroço foi grande.
Quando o sol entrou os moradores começaram a ocupar as cadeiras de palha. Veio gente até do outro lado do Roncador. Tinha castelhano trabalhador e até brasileiro que fugira para o outro lado para escapar da lei.
As luzes dos lampiões se apagaram. O gerador da Kombi passou a roncar e no grande lençol branco começou a ser projetado o “jornal”; notícias do avanço da Transamazônica e o slogan do regime: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Pelé e suas jogadas incríveis encerrou o noticiário.
De repente apareceu no pano branco a imagem do lendário mocinho Pecos Bill, personagem criado no livro de contos de Edward O'Rellye. O herói do faroeste fazia o transporte de uma carga de ouro garimpado no Eldorado. Ao lado do cocheiro da diligência, tinha uma visão ampla das pradarias. Eis que os bandidos sobem no toldo do carroção. Um deles avança em direção aos dois homens postados na boléia.
Momento de tensão e suspense. Era grande a torcida por Pecos Bill. Todos esperavam que ele olhasse para cima e evitasse a surpresa do ataque.
Seis tiros soaram no recinto. E não foram disparados pelos personagens e figurantes da fita. Um castelhano evitou o assalto que estava prestes a acontecer.
A tela escureceu. Foi grande a correria em meio a fumaça e o cheiro de pólvora. Era só o trailer. Imaginem se fosse a projecão integral do filme propriamente dito.
No outro dia “seu Schmidt” foi cedo à cidade comprar um novo pano branco.E não ficou ninguém para pedir a devolução do valor do ingresso.
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