0002764-20.2012.403.6110 - MANOEL CARREIRA (SP310945 - LUIZ AUGUSTO COCONESI) X UNIÃO FEDERAL (Proc. 181 - SEM PROCURADOR)
Cuida-se de ação ordinária com pedido de condenação da ré à indenização por danos morais cumulada com pensionamento vitalício, em decorrência de atos de tortura em cárcere, perpetrados à época do regime militar, em meados de 1970. Relata a parte autora que, contando 18 anos, em janeiro de 1970, iniciou o serviço militar obrigatório na cidade de Itu/SP, e cumprindo suas obrigações, em março de 1970, efetuou marcha de 32 km, sem descanso, seguindo, após, para o Vale do Ribeira para auxiliar na possível captura do considerado subversivo Capitão Carlos Lamarca.
Com essa finalidade, permaneceu durante aproximadamente 60 (sessenta) dias e noites, realizando buscas contínuas em diversas cidades integrantes do Vale da Ribeira ininterruptamente, sem descanso e alimentando-se precariamente.
Narra que os militares evitavam o confronto direto com o dito subversivo e seus comandados e, em razão disso, o diretor do II exército prometeu a todo o pelotão, em 30/05/1970, como prêmio pela captura de Lamarca, a elevação da patente, instalando-se na mata um clima de guerra iminente, com bombardeios constantes, que ensejou, inclusive, o assassinato de um policial militar por integrantes do grupo de Carlos Lamarca, após entrarem em confronto.
Conta que em 31/05/1970, num caminhão do exército, após percorrer cerca de 8 km para buscar água, foi rendido pelos homens de Lamarca, juntamente com outros recrutas e o sargento que acompanhava a missão, teve sua roupa apreendida e ficou somente com a roupa íntima, atado à carroceria da viatura, sob a mira de uma metralhadora e ameaças de morte por parte do dito subversivo, permanecendo por cerca de sete horas nas mãos dos sequestradores, que depois de abandonarem o veículo, deixaram os militares nas imediações da marginal do Rio Tietê.
Sob a suspeita de haver favorecido à fuga do Capitão Carlos Lamarca, segundo o autor, em 01/06/1970, foi transportado com os demais companheiros para a cidade de Sete Barras, onde foram ofendidos pelo comandante do local com expressões jocosas e de baixo calão, já que foram surpreendidos e rendidos pelos revolucionários, e, na sequência, foram todos transportados para o Quartel de Itu/SP, onde ficaram encarcerados, em celas individuais, de chão de tijolos que eram molhados a cada duas horas, a fim de impedir que os presos dormissem.
Assim, fatigados física e mentalmente, eram inúmeras vezes interrogados entre uma e cinco horas da manhã, inquiridos sob forte pressão, vestidos, durante todo o
tempo, tão somente com r
oupas íntimas, a despeito do rigor do inverno naqueles meses de junho e julho de 1970.
Acresce o fato de que somente lhes era fornecida água de beber quando pediam ao recruta de plantão, que a higiene era extremamente precária, os banhos e higiene bucal eram proibidos e vedada qualquer possibilidade de contato com familiares.
Posteriormente, alega, foram transportados para o Quartel de Santos/SP, onde foram mais uma vez severamente hostilizados e sobreviveram em condições atentatórias à dignidade humana, todos juntos, numa única cela de uma prisão em alto mar, que se assemelhava a uma masmorra, infestada de insetos, que atacavam os encarcerados, restando os corpos dos presos cobertos de feridas e hematomas em face das incontáveis picadas recebidas.
Ali permaneceram, o autor e demais recrutas, por duas semanas, mais uma vez vestidos apenas com a roupa íntima, sem calçados, camas, colchões ou travesseiros, e sem banheiro, fazendo suas necessidades fisiológicas numa lata de tintas de 18 litros, sem direito à higiene pessoal.
O chão do local também era molhado a cada duas horas para que permanecessem acordados, e, no período noturno, em razão dos ventos impetuosos, era intensa a sensação térmica de frio, e durante o dia, insuportável a sensação de calor.
Como alimento, na primeira semana, receberam um pedaço de pão e um litro de água para serem divididos em cinco pessoas e, na semana seguinte, somente água.
Decorrido o tempo na prisão em alto mar, foram todos transportados para outra: um porão de mais ou menos cinco metros quadrados, sem ventilação ou incidência da luz solar. Nesse local receberam esporádicas refeições que, quando ocorriam, consistiam no café da manhã por volta de 08:00 horas e uma refeição por volta de 23:00 horas, ou apenas uma refeição ao dia.
As demais condições desse cárcere eram similares às dos anteriores.
Relata, ainda, que, depois de duas semanas no porão, foram transferidos para o Quartel General de Itu,onde permaneceram presos, como forma de punição.
Assevera, ao final que suportou extrema, intensa e violenta ofensa, quer em sua integridade física, quer em sua integridade moral, quer em seu âmbito psíquico. (...)
Conforme parecer nutricional e psicológico (...), em face do intenso sofrimento físico e mental auferido nos dias do cárcere, sofreu sequelas permanentes, irreparáveis, tais como comprometimento de sua saúde biopsicossocial, desconforto perturbador, pesadelos, transtornos psicóticos, sexuais, dentre vários outros.
Requer a concessão dos benefícios da gratuidade da justiça e a procedência da demanda, com a condenação da ré na indenização por danos morais sofridos em valor não inferior a 100.000 (cem mil) salários mínimos, bem como de um pensionamento vitalício não inferior a 20.000 (vinte mil) salários mínimos mensais.
A inicial veio acompanhada dos documentos de fls. 38/147.
Instada, a parte autora emendou a inicial para o fim de regularizar o valor atribuído à causa (fls. 152).À fl. 153, foi acolhida a emenda promovida pelo autor e deferidos os benefícios da justiça gratuita.
Regularmente citada, a União apresentou contestação à demanda às fls. 157/168.
Preliminarmente alega carência da ação por falta de interesse de agir ao argumento de que o autor sequer formulou pedido à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, competente para analisar pedidos de indenização.
Como prejudicial de mérito alega a ocorrência da prescrição nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei nº 20.910/1932. Ademais, rechaça o mérito da causa.
Réplica do autor às fls. 171/178.À fl. 179 a parte autora pleiteia a produção de prova testemunhal.
A ré, por sua vez, à fl. 180, pugna pelo julgamento antecipado da lide.
Deferida à fl. 181 a produção de prova testemunhal requerida pela parte autora e à fl. 185, o rol de testemunhas indicado.
O autor requereu a produção de prova emprestada dos autos nº 0003042-21.2012.4.03.6110, em trâmite na Terceira Vara Federal desta Subseção Judiciária, consistente no depoimento que prestou na qualidade de testemunha naquele feito (fls. 188/190).
Restou indeferido o pedido conforme decisão de fl. 191.
Consoante termo de audiência de fl. 194, foi homologado o pedido do autor de desistência de oitiva da testemunha Wilson Soares e ouvidas as testemunhas Wagner Luiz Soares de Almeida e José Luiz de Mello, cujos depoimentos encontram-se armazenados em mídia eletrônica acostada à fl. 195.
Os memoriais da parte autora foram apresentados às fls. 196/198.
A parte ré apresentou os memoriais à fl. 199.
Vieram os autos conclusos para sentença em 11/12/2013.
É o relatório.
Decido.
A preliminar de falta de interesse de agir do autor arguida pela ré deve ser rejeitada.
A jurisprudência se firmou no sentido de que, para acesso à Justiça, os pedidos de indenização por atos praticados por agentes integrantes da ditadura independem de requerimento administrativo: PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO -DANOS MORAIS - PRISÃO E TORTURA DURANTE O REGIME MILITAR - OMISSÕES INEXISTENTES. I - (...) II - A alegada falta de interesse de agir por ausência de requerimento administrativo ao Ministro de Estado da Justiça sequer foi aventada no apelo.
Fica aqui consignado, todavia, que se encontra pacificado no âmbito desta E. Corte que o pedido administrativo não exclui a possibilidade de reconhecimento de indenização judicial por danos morais, vez que as reparações possuem fundamentos diversos. (...) (TRF3, TERCEIRA TURMA, APELREEX 00064095120064036114, Rel. JUÍZA CONVOCADA ELIANA MARCELO, e-DJF3 Judicial 1 DATA:27/09/2013) CONSTITUCIONAL, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PERÍODO DA DITADURA MILITAR. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA REJEITADA. PREJUDICIAIS DE MÉRITO DE PRESCRIÇÃO REJEITADAS. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REDUÇÃO. CABIMENTO.II - Afastada, também, a preliminar de ausência de interesse processual, na medida em que não é necessário aguardar a decisão da Administração Pública, nem sequer o esgotamento das vias administrativas, para que a parte recorra ao Poder Judiciário pleiteando o reconhecimento do seu direito.
Precedentes.(...)(AC 0043684-48.2007.4.01.3400 / DF, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, Rel. Conv. JUIZ FEDERAL CARLOS EDUARDO CASTRO MARTINS (CONV.), QUINTA TURMA, e-DJF1 p.206 de 03/04/2013) DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ATO DE EXCEÇÃO. PERSEGUIÇÃO POLÍTICA. PRISÃO E TORTURA DE SINDICALISTA LAVRADOR. DANO MORAL. CONSTITUCIONAL. IMPRESCRITIBILIDADE DE PRETENSÃO INDENIZATÓRIA DECORRENTE DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DURANTE O PERÍODO DA DITADURA MILITAR. LEI N. 10.559/2002. DECRETO N. 20.910/32. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.(...) 3. Para a propositura de ação de indenização a anistiado político em decorrência de prisão e atos de exceção por motivos ideológicos, não se exige o esgotamento da via administrativa. Lei nº.10.559/2002.(...)(AC 0000149-43.2005.4.01.3302 / BA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL FAGUNDES DE DEUS, Rel.Conv. JUIZ FEDERAL PEDRO FRANCISCO DA SILVA (CONV.), QUINTA TURMA, e-DJF1 p.165 de 22/05/2009) Também em relação à prescrição quinquenal, não prospera a arguição da União, eis que pacificado pelo C. STJ o entendimento de imprescritibilidade da ação que versa sobre a indenização por ofensa aos direitos fundamentais, como é o caso em apreço: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. TORTURA NO PERÍODO DO REGIME MILITAR. DANOS MORAIS. IMPRESCRITIBILIDADE. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. COMPROVAÇÃO DAS PRISÕES SOFRIDAS PELO AUTOR. DANO MORAL AFERÍVEL SEGUNDO AS REGRAS DE EXPERIÊNCIA. 1. (...) 5. Deve ser afastada a alegação de prescrição, visto que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido da imprescritibilidade da ação para reparação por danos decorrentes de ofensa aos direitos humanos, incluindo aqueles perpetrados durante o ciclo do Regime Militar.(...)(TRF3, TERCEIRA TURMA, AC00191560720084036100, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL MÁRCIO MORAES, e-DJF3 Judicial 1 DATA:14/02/2014) PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. PERSEGUIÇÃO POLÍTICA OCORRIDA DURANTE O REGIME MILITAR.
1. Conforme entendimento desta Corte, a prescrição quinquenal, disposta no art. 1º do Decreto 20.910/1932, não se aplica aos danos decorrentes de violação de direitos fundamentais, os quais são imprescritíveis, principalmente quando ocorreram durante o Regime Militar, época em que os jurisdicionados não podiam deduzir a contento suas pretensões (AgRg no AREsp 302.979/PR, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 5/6/2013). (...) (STJ, PRIMEIRA TURMA, AGRESP 200901384125, Rel. SÉRGIO KUKINA, DJE DATA:23/08/2013).
Assim, afastadas as preliminares arguidas pela União, passo à análise do mérito da demanda.
Os fatos narrados pelo autor revelam que em 1970, na condição de soldado recrutado, prestando o serviço militar, juntamente com outros quatro companheiros, exercia atividade determinada pelo superior hierárquico, quando foi rendido e sequestrado pelo considerado subversivo Capitão Carlos Lamarca e seus comandados, sendo os recrutas utilizados pelos revolucionários como garantia para que conseguissem empreender fuga, e, após, bem sucedidos, liberaram os reféns. Em tal contexto, como alude a inicial, o comando do Exército do Estado de São Paulo passou a tratar o autor e seus companheiros como suspeitos de facilitar a debandada dos subversivos, deliberando, a partir daí, todas as situações degradantes vivenciadas pelos recrutas presos, conforme narrativa da peça exordial.
Por conta da operação de fuga empreendida por Lamarca e seus homens, valendo-se da viatura do exército e da rendição dos seus soldados, foi instaurado inquérito policial militar para apuração dos fatos, sendo certo que o autor e seus companheiros foram indiciados.
Todavia, dos militares, somente o sargento que integrava o grupo foi denunciado, julgado e condenado, servindo o autor e demais recrutas tão somente como testemunhas no processo militar, como se denota dos documentos de fls. 53 e seguintes. Observo que da instauração do inquérito policial até o oferecimento da denúncia, decorreram cerca de dois meses (junho e julho de 1970), prosseguindo o processo militar.
A propósito, consta à fl. 117, o depoimento do autor prestado nos autos do processo militar em 27/08/1970, em que declarou contar à época dos fatos quatro meses de caserna.
Vale dizer, a cronologia dos fatos coadunam com a narrativa do autor.
As testemunhas arroladas pelo autor prestaram depoimento em Juízo, acerca dos momentos de cárcere por ele enfrentados. Vale transcrever:
Testemunha: José Luiz de Mello - "Prestei serviço militar junto com o autor em 1970. Sei que este processo trata do período em que houve o sequestro pelo Lamarca e que o autor ficou indo de cadeia em cadeia pro resto do ano. Servi na mesma bateria do autor. Estávamos juntos no campo de futebol onde era a base de acampamento do quartel naquele dia. Quando ele foi com o sargento Kondo e os outros soldados, eu não fui. Ficamos aguardando a volta deles, o que não aconteceu. Eles foram sequestrados naquele dia e foram achados na beira do rio Tietê, sem roupas, amarrados e depois começaram a ser questionados pelo antigo órgão de segurança (DOPS) e iam de cadeia em cadeia, e nós nunca mais vimos eles. Essas informações fiquei sabendo na época, porque éramos da mesma bateria. A informação que passavam para gente é que eles estavam sendo investigados por causa do Lamarca. A dúvida do exército talvez fosse se eles integravam o grupo do Lamarca, pelo jeito que eles ficaram, sendo torturados nas cadeias pelo Brasil afora. Eles eram soldados recrutas como a gente. Suponho que queriam que eles confessassem alguma coisa. Tivemos notícias deles no Vale do Ribeira, onde continuamos acampados, um ou dois dias depois. Depois de um ou dois anos que saímos do quartel, voltamos a nos encontrar em Sorocaba, mas durante o serviço militar nunca mais nos encontramos. Ele ficou durante um ano nessa situação de investigado. Na época comentaram que as condições de higiene do local onde eles ficaram eram péssimas, um cachorro na casa da gente ficava melhor que eles, que ficaram sem roupa, comendo sei lá o que ou sem comer, pão e água ou só água. Comiam qualquer coisa ou até ficavam sem comer. A cela tinha umidade cem por cento e ainda jogavam água para que ficassem numa situação mais degradante. Se era igual a celinha que tinha em Itu, não tinha cano, nada. Estive na cela de Itu apenas, presenciei. O autor ficou preso na cela de Itu enquanto eu estava lá, mas não me lembro por quanto tempo".
Testemunha: Wagner Luiz Soares de Almeida - "Conheci o autor no quartel. Sei dos fatos do processo e estava com ele quando foi capturado pelo Lamarca. Ele era da bateria do 2º grupo e eu era do 1º grupo. Eles estavam pegando água e o Lamarca veio e pegou eles. As baterias são separadas dentro de um mesmo campo. Servíamos juntos em Itu. Isso aconteceu em 1970, mas não me lembro do mês. Ele foi preso porque o Lamarca pegou. Qualquer coisa que acontecia nós éramos presos, conforme o que fazia. Eu fui preso porque capotei uma viatura. Eu fiquei 40 dias numa sala, de shorts e com água sendo jogada no chão. É triste. Eu parecia um bicho. Não podia reclamar prá ninguém. Comia resto de comida quando tinha. Quando estávamos preso em Itu, éramos os últimos a comer. Comíamos o que sobrava do rancho. Quando não sobrava, algum soldado trazia resto de comida. Não tínhamos direito a nada, nem sol. Cela é diferente de xadrez. É um quadrado com uma porta que tem um buraquinho que se vê o corredor. Eu fiquei 40 dias na cela, sem luz, sem banheiro. O xadrez é um cômodo que tem um banheiro, uma latrina, uma torneira que eles abriam por fora quando a gente pedia água, não abria por dentro. Quando o Manoel foi preso eu também estava lá, ele preso por uma coisa e eu por outra. Na cela estavam muitos presos, todos misturados. Eu fui preso em muitos lugares, mas não sei onde é. A gente ia dentro da viatura e não sabia para onde era levado. Quando a família nos procurava, não sabiam onde a gente estava. Quando ele chegou preso, ficou junto com a gente e depois foi levado para outro lugar. Depois eu fui preso num outro lugar. Ficamos preso num lugar em que os bichos estavam nos comendo. Nós ficávamos encaroçados. A pior coisa que pode acontecer a um ser humano é ficar preso como ficamos num lugar desses. Em cada cela ficava um. A guarda era rendida de 2 em 2 horas e cada guarda que entrava jogava água no chão para que a gente não dormisse. Isso era 24 horas com água no chão, não tinha colchão, nada. Só tinha um shorts. Eu arrumei uma camiseta velha que enfiava pelo pescoço e respirava por dentro para esquentar e tenho problemas nos brônquios até hoje por conta disso. Muito sofrimento. Não vi ninguém ser bem tratado. Todos que foram presos conosco eram tratados dessa maneira. Pra fazer as necessidades, usávamos uma lata ou um pedaço de papel, porque às vezes um filho de Deus jogava um jornal lá dentro. O tratamento era igual independentemente do motivo da prisão. Eu fiquei 40 dias sem tomar banho, algumas vezes comia pão duro. Tanto o Manoel como eu ficamos incomunicáveis. Quando era frio ou calor era tratado do mesmo jeito".
Com efeito, a prova testemunhal pode embasar o pedido de indenização quando corroborada por outros elementos que compõem a instrução do feito, como na hipótese em apreço.
Os relatos das testemunhas em sede judicial são consonantes à narrativa do autor.
De outro turno, se harmonizam com as exposições dos fatos contidas no inquérito policial militar juntado por cópia às fls. 53 e seguintes, bem assim, com a reprodução dessa fase da história, trazida por inúmeras obras à memória de muitos, a exemplo daquela mencionada pelo autor, qual seja, As Alusões Armadas, volume II, intitulado A Ditadura Escancarada, da lavra do jornalista Elio Gaspari. Aliás, incontáveis obras revelam o cenário contemplado à época do regime militar vivido pelo autor.
Em edição especial publicada no mês de março de 2010 em homenagem aos 400 anos da cidade de Itu/SP, a Revista Campo & Cidade estampa matéria acerca dos fatos tratados nestes autos, da qual vale salientar o seguinte excerto: A Vanguarda Popular Revolucionária, uma das organizações guerrilheiras de resistência que surgiram depois do golpe militar de 1964, montou um campo de treinamento político-militar no Vale do Ribeira. A perseguição a um de seus mais influentes líderes, o ex-capitão Carlos Lamarca, contou com efetivo do quartel de Itu, então comandado pelo coronel Leônidas Pires Gonçalves, integrado às forças formadas por milhares de homens do Exército, Aeronáutica e Polícias Militar e Civil. A operação tinha comando geral da Artilharia Divisionária da 2º Divisão do Exército, chefiada pelo então general de brigada Paulo Carneiro de Tomaz Alves. No dia 31 de maio de 1970, próximo ao município de Sete Barras/SP, Lamarca e três guerrilheiros capturaram o caminhão militar Mercedes Benz EB 2114626 e renderam o sargento Koji Kondo e os soldados José Carlos Donatini, Paulo Roberto Motta, Manoel Carreira e Hélio da Silva Freitas Filho, da unidade militar de Itu. Amarrados e amordaçados os militares foram deixados na carroçaria do caminhão do Exército na Marginal do Tietê, na capital de São Paulo.
As testemunhas ouvidas em Juízo asseguraram que o autor encarou múltiplas detenções em locais diversos, mantidos pelo Poder Público da época - Polícia do Exército (PE), entre outras, sempre incomunicável e submetido a torturas físicas e morais, tudo em função da suspeita de que, junto com seus companheiros recrutas e o Sargento Kondo, teria facilitado a fuga do Capitão Carlos Lamarca em 31/05/1970.
O reconhecimento do dano, neste caso, pressupõe a responsabilidade do Estado pelo comportamento de um dos seus poderes, ou seja, ao Estado cabe o ônus da reparação por danos causados a terceiros em razão de comportamentos adversos de agentes públicos.
Vigia a Constituição Federal de 1967 quando ocorreram os fatos aqui tratados.
No entanto, assim como aquela, a Constituição Federal de 1988, a rigor da disposição contida no artigo 37, 6º, imputa ao Estado a responsabilidade de indenizar os danos causados a terceiros por seus agentes, independentemente de comprovação de dolo ou culpa.
Dispõe o texto constitucional: Art. 37, 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Em 01/06/1970 o autor foi preso pelos militares da Polícia do Exército juntamente com três colegas recrutas e um sargento, e transportado para a cidade de Sete Barras, por ordem dos Coronéis Antonio Erasmo Dias e Leônidas Pires Gonçalves, e por este último, recepcionado e ultrajado ao chegar naquele local, seguindo, depois, para várias prisões, cujas condições aviltavam a dignidade do ser humano obrigado permanecer em celas infectas, sem direito a banho, e outras tantas formas de tormento, como se infere do conjunto probatório firmado nos autos.
De se reconhecer, portanto, a dor moral sofrida pelo autor, que deve ser ressarcida.
A despeito da deficiência de saúde física e mental alegadas pela parte autora como decorrentes do episódio vivenciado na instrução militar, a indenização devida não deve ater-se às eventuais sequelas.
Deve, antes, fundar-se no sofrimento suportado em face da barbaridade experimentada nos diversos cárceres, em condições humanas depreciativas e humilhantes.
Destarte, restou configurado nos autos o nexo de causalidade, porquanto comprovado o dano em virtude da atuação de agentes públicos.
O quantum da indenização deve ser fixado considerando os princípios da proporcionalidade e razoabilidade ao sofrimento suportado no caso concreto, de forma suficiente a reparar o dano causado, sem gerar enriquecimento ilícito, servindo de compensação à vítima.
De fato, se tratando de dano moral, o que se objetiva, além da reparação, é impingir à ré sanção.
Assim sendo, em atenção às especificidades do caso, reputo suficiente o pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 85.000,00 (oitenta e cinco mil reais).
No que tange à pensão vitalícia, não faz jus o autor na medida em que não comprovou prejuízo de ordem material a justificar o benefício.
Alude o autor a sequelas permanentes produzidas pelo tempo de cárcere, como dores de cabeça constantes e dores estomacais intensas.
Contudo, não comprova nos autos, o prejuízo material que alega, já que os pareceres carreados têm conteúdo genérico, não específico, acerca da possibilidade de marcas consecutivas de torturas como aquelas a que se submeteu o autor.
Não têm, portanto, o escopo de demonstrar danos materiais eventualmente experimentados.
Ademais, em consulta ao Cadastro Nacional de Informações Sociais - CNIS, pode-se observar que, após o sofrido período, o autor laborou por mais de 16 (dezesseis anos) e aufere, hoje, o benefício de aposentadoria na modalidade invalidez acidentária.
A jurisprudência corrobora o entendimento: CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. DITADURA MILITAR. PRISÃO POLÍTICA. ANISTIA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. RELAÇÃO DE CAUSALIDADE DEMONSTRADA. NÃO-OCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS DEVIDA.
1. É inaplicável o prazo quinquenal previsto no Decreto nº 20.910/32 nas ações em que se busca o pagamento de indenização em face de perseguição e prisão política durante o regime militar.
Nesses casos, que dizem respeito à violação a direitos fundamentais, há de se entender pela imprescritibilidade, por se tratar de ofensa a pilares da República.
Noutra perspectiva, em não se admitindo a imprescritibilidade, impõe-se considerar o prazo extintivo mais amplo possível, que, na espécie, será o de vinte anos, previsto no art. 177 do Código Civilvigente à época (CC/1916), a contar da promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconheceu a ilegalidade dos atos praticados no referido período ditatorial (ADCT, art. 8º), e restabeleceu a normalidade institucional do país.
Precedentes do STJ e desta Corte.
2. Diante do princípio da responsabilidade civil objetiva do Estado, com apoio na Teoria do Risco Administrativo, é cabível indenização por dano tanto material, como moral, a anistiado político, a quem foi infligido tratamento que atingiu as suas esferas física e psíquica, resultando, daí, na violação de direitos constitucionalmente garantidos e protegidos (CF, art. 5º, X). Assim, comprovado o nexo de causalidade entre o dano e a atuação estatal, incide a regra prevista no art. 37,6º, da CF/88. 3. No caso dos autos, ficou comprovado que o ora Apelante foi preso pelo Exército Brasileiro, por motivos de cunho político - tanto que foi posteriormente declarado como anistiado político -, ficando privado de sua liberdade no período compreendido entre 03/04/64 a 01/06/64.
Contudo, não logrou comprovar, nem por prova documental ou testemunhal, que durante o período de sua prisão foi submetido a sessões de tortura física, enfatizando na inicial, apenas, que em razão de sua detenção perdeu seu emprego devido às faltas ao serviço.
4. Não faz jus o Autor à pretendida pensão mensal vitalícia, uma vez que também não comprovou ter sofrido prejuízo de ordem material que justificasse a percepção de tal benefício, mesmo porque afirma que voltou a trabalhar no mesmo emprego depois de cerca de seis meses da sua libertação.
5. Indenização por danos morais arbitrada em R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), dada às peculiaridades da causa, tendo em vista o período em que o Autor ficou detido (quase dois meses), bem como por não ter feito prova de que foi submetido a torturas físicas por agentes militares.
6. Apelação do Autor parcialmente provida.(TRF1, QUINTA TURMA, AC 200533000254700, Rel. JUIZ FEDERAL CESAR AUGUSTO BEARSI (CONV.), DJ DATA:31/01/2008 PÁGINA:137)
Ante o exposto, julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido, com resolução do mérito, nos termos do artigo 269, I, do Código de Processo Civil, e condeno a UNIÃO a indenizar o autor MANOEL CARREIRA, identificado nos autos, por dano moral, que arbitro no valor de R$ 85.000,00 (oitenta e cinco mil reais), corrigidos e acrescidos de juros, nos termos do Provimento n. 64/2005, da Corregedoria-Geral da Justiça Federal da 3ª Região, até a data do efetivo pagamento.
Considerando a sucumbência recíproca e a gratuidade da justiça concedida ao autor, deixo de condenar em custas e honorários advocatícios.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Com o trânsito em julgado, arquive-se.
Transcrito do JUSBRASIL.
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