Bolsonaro elogia ditador paraguaio Alfredo Stroessner em público.
Presidente brasileiro tratou militar, responsável por crimes contra a humanidade, de “estadista”.
Assunção/26 FEV 2019.
Jair Bolsonaro nesta terça-feira, em Itaipu (Paraguai). NORBERTO DUARTE AFP.
O presidente Jair Bolsonaro viajou nesta terça-feira para a fronteira com o Paraguai para anunciar, ao lado de seu homólogo, Mario Abdo Benítez, a nomeação das novas autoridades de Itaipu, a hidrelétrica que os dois países compartilham no rio Paraná.
O discurso do brasileiro não foi protocolar: quando ninguém esperava, se desfez em elogios ao ditador Alfredo Stroessner, o homem que com mão de ferro controlou o Paraguai entre 1954 e 1989, responsável por milhares de prisões arbitrárias, torturas e desaparecimentos.
A hidrelétrica só foi possível, disse ele, “porque do outro lado havia um homem com visão, um estadista que sabia perfeitamente que seu país, o Paraguai, só poderia continuar progredindo se tivesse energia”.
“Então, aqui está minha homenagem ao nosso general Alfredo Stroessner”, acrescentou em português, pouco antes de ficar em silêncio para ouvir os aplausos do público e o olhar imóvel de seu colega paraguaio.
Abdo Benítez assumiu em 15 de agosto do ano passado, depois de uma campanha em que tentou se distanciar de seu passado stroessnerista.
Seu pai, Mario Abdo, foi o braço direito do ditador por mais de 30 anos.
Bolsonaro parecia confortável diante de seu interlocutor e continuou com citações da Bíblia.
“A verdade nos libertará”, disse a Abdo, que insistiu em chamar de Marito, como fazem seus correligionários do Partido Colorado, o movimento político que deu sustentação à ditadura.
Para o brasileiro, seu colega paraguaio é “um cristão, conservador, homem de família”.
E que por “esses valores” decidiu ir à fronteira para apertar sua mão.
“Será um prazer recebê-lo em Brasília nos próximos dias, onde aprofundaremos outras discussões para o bem-estar de nossos povos. Esquerda nunca mais!”, acrescentou o brasileiro.
Bolsonaro, capitão reformado, elogiou em várias circunstâncias a ditadura brasileira (1964-1985).
Por sua vez, Abdo agradeceu Bolsonaro pelo encontro e lembrou que vai visitá-lo em 12 de março para promover a construção de duas novas pontes entre os dois países. Também destacou o “importante desafio” que têm pela frente ambas as nações, que em 2023 devem renegociar o tratado bilateral que dispõe sobre a divisão de energia de Itaipu, que desde 1984 fornece 74% de toda a energia consumida pelo Paraguai e 17% da do Brasil.
“É iminente, razão pela qual é prioridade agilizar as consultas e os estudos técnicos internos necessários para alcançar resultados que satisfaçam as legítimas aspirações de ambos os países”, disse Abdo.
A agenda energética, no entanto, não foi o destaque do evento. O Paraguai vive um constante debate social pela recuperação e normalização da memória da ditadura, especialmente desde a chegada ao poder de um presidente de sangue stroessnerista.
Mário Abdo sempre afirmou que tem poucas lembranças da ditadura porque era muito jovem na época.
Mas, ao mesmo tempo, fez vários gestos polêmicos, como quando visitou o túmulo de seu pai no dia da eleição que o levou ao poder.
Um grupo de veteranos do Partido Colorado, além disso, pretende trazer dos restos do ditador de Brasília, onde jazem desde sua morte no exílio.
Para a historiadora paraguaia e professora da Universidade Católica de Assunção, Margarita Durán Estragó, cada homenagem que os políticos rendem ao ditador faz sangrar as feridas deixadas pelo stroessnerismo.
“A nós que continuamos vivos, machuca muito. Eles se aproveitam de que os jovens não se lembram mais das atrocidades da ditadura porque não viveram o que vivemos. É preciso promover a memória, mas nossos vizinhos tampouco ajudam”, disse a pesquisadora, referindo-se a Bolsonaro. “Quem diria que 30 anos depois da queda de Stroessner teríamos como presidente um rebento do stroessnerismo, o filho do próprio secretário particular do ditador”, acrescentou.
Na semana passada, em uma cerimônia oficial em uma escola por ocasião do primeiro dia de aula, a diretora homenageou o ditador diante do presidente e seus acompanhantes.
No início do mês, quando a queda do ditador completou 30 anos, Abdo escapou das perguntas da imprensa com uma gargalhada quando lhe perguntaram sobre o que faria para comemorar a chegada da democracia.
O presidente paraguaio não realizou nenhuma cerimônia de acompanhamento ou memória das vítimas e viajou para as comemorações do aniversário de Ciudad del Este, na fronteira com o Brasil.
Ciudad del Este já se chamou Puerto Stroessner, em homenagem ao ditador.
O saldo de 35 anos de ditadura foi muito duro para os paraguaios.
Quando um golpe palaciano expulsou Stroessner do poder em 1989, 336 pessoas estavam desaparecidas, 19.862 pessoas haviam sido presas e outras 20.000 haviam sido torturadas.
O Governo militar enviou 3.479 paraguaios ao exílio, segundo números da Comissão da Verdade e Justiça que investigou o passado com a chegada da democracia.
EL PAÍS
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