quinta-feira, 3 de outubro de 2019

UM PRESIDENTE POLITICAMENTE INCORRETO




Da longa galeria dos presidentes brasileiros, poucos foram os que deixaram uma biografia livre de máculas. Paulo Schmidt, no livro "Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes da República" (Leya, 2016) conta casos pitorescos dos mandatários que (des)governaram o País.
A República nasceu como farsa que se transformou em tragédia. A começar pelo “generalíssimo” Deodoro da Fonseca, monarquista amigo do Imperador D. Pedro II, que se tornou republicano de última hora. Deodoro convalescia de uma crise aguda de dispneia e foi tirado às pressas da cama. Ao chegar ao Campo de Santana, mal conseguia se equilibrar em sua montaria. Mesmo assim, derrubou o gabinete do visconde de Ouro Preto, mas nada falou de república.
Instalado o governo provisório, um dos primeiros atos do Generalíssimo foi instituir a censura aos jornais. É de se lembrar que durante todo o Segundo Império a imprensa funcionou livremente. O grande Rui Barbosa, convidado para ser ministro da Fazenda, saudou Deodoro como um George Washington.
O Generalíssimo, que não teve filhos, nomeou muitos de seus sobrinhos e outros parentes a cargos públicos, despertando a ira do monarquista Eduardo Prado, que escreveu: “O regime republicano, que depôs uma dinastia, vai insensivelmente criando outra. O senhor Deodoro tem muita família, sobretudo muitos sobrinhos.”
O mais escandaloso desses sobrinhos, segundo Paulo Schmidt, foi Fonseca Hermes (não confundir com Hermes da Fonseca, também sobrinho de Deodoro), para o qual o Generalíssimo criou o cargo de secretário-geral do Conselho de Ministros e que, durante o governo do tio, traficou influência, falsificou documentos, fez grande fortuna à custa dos cofres públicos e nem sequer chegou a ser investigado. O interessante é que Fonseca Hermes voltaria a ter poder e influência vinte anos depois, durante o governo de seu primo, o marechal Hermes da Fonseca.
Paulo Schmidt faz lúcido comentário sobre Deodoro como administrador: “Como todos os militares que já governaram o Brasil, Deodoro não sabia administrar nem ser contrariado. Seu gênio difícil e autoritário conseguiu indispô-lo não somente com a imprensa e o parlamento, mas também com seu próprio ministério.”
Descontentes com os desmandos de Deodoro, Benjamin Constant e Quintino Bocaiúva se demitiram. Considerado o “fundador da República”, Constant, que também conseguira empregar no governo muitos familiares, criticava Deodoro por valorizar somente os seus apaniguados políticos. A saída de Constant, considerado por Eduardo Prado como um “general de tribuna”, foi das mais ruidosas. Num bate-boca entre ele e o Generalíssimo, Constant (baixinho de 1,55m de altura, “cavanhaque nervoso”), julgou-se “traído”. Deodoro, entediado, acusou-o de promover “patriotas de ruas e botequins”. Ao que o “baixinho” respondeu: “Não seja tolo! Não sou mais seu ministro! Monarca de papelão!”
Deodoro ficou furioso e intimou Constant a um duelo, que não chegou a ocorrer. Talvez pelo nervosismo acumulado pelo arranca-rabo com o Generalíssimo, Constant, que nos últimos dias de vida cedera à loucura, faleceu três meses depois.
Em 1891, era promulgada a primeira Constituição republicana, redigida por Rui Barbosa. Tinha fim o governo provisório, com a eleição indireta, pelo Congresso, de um presidente constitucional, o Generalíssimo, naturalmente. A vitória foi fácil: os partidários de Deodoro intimidaram os parlamentares e o Congresso foi ocupado por soldados e policiais. Porém, o vice-presidente eleito, Floriano Peixoto, não era da chapa de Deodoro. Os inimigos do Generalíssimo, que não eram poucos, depositaram em Floriano as suas esperanças.
Esse segundo governo de Deodoro não foi muito longe: durou apenas nove meses, devido ao autoritarismo do Generalíssimo e à desastrosa política econômica (o “Encilhamento”) promovida pelo ministro Rui Barbosa. Segundo Paulo Schimid, Rui Barbosa foi “um jurista brilhante, dono da maior biblioteca do Brasil e um dos autores da nova constituição, mas não entendia patavina de economia”. O plano econômico de Rui Barbosa consistia “basicamente em emitir papel-moeda sem lastro e liberar o crédito”, resultando “na criação de milhares de empresas fantasmas, febre especulativa, inflação e aumento do custo de vida”.
No dia 3 novembro de 1891, Generalíssimo disse ao Barão de Lucena: “Não posso por mais tempo suportar esse Congresso; é de mister que ele desapareça para a felicidade do Brasil. Prepare o decreto de dissolução.” Deodoro impôs estado de sítio e suprimiu todas as liberdades individuais. O almirante Custódio de Melo, com prisão decretada, refugiou-se no encouraçado Riachuelo e mirou os canhões para a cidade do Rio de Janeiro, exigindo a renúncia do Generalíssimo.
Doente, na cama, Deodoro rubricou o documento de renúncia, em 22 de novembro de 1891, dizendo: “Assino o decreto de alforria do derradeiro escravo do Brasil.”

(Publicado no JORNAL REGIONAL, nº 1.363, de 27-9-2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário