domingo, 30 de janeiro de 2022

AH, CHICO!



Um texto longo que vale a leitura à quem interessa o saber.
"COM AÇÚCAR E COM AFETO"

"O DIA EM QUE QUISERAM ACABAR COM A UNANIMIDADE DE CHICO BUARQUE

Nos últimos dias tenho lido no Facebook as mais diveras opiniões sobre a declaração de Chico Buarque de que deixará de cantar sua canção “Com açúcar e com afeto”, atendendo a críticas feministas. Diz ele, textualmente: “Elas têm razão. Eu não vou mais cantar ‘Com açúcar com afeto’ e, se Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente.” As opiniões se bifurcam em duas direções: na primeira discute-se se a canção é ou não machista, se defende ou não a submissão da mulher; na segunda, se Chico agiu certo ou errado tomando a decisão de não mais a cantar.
No que diz respeito à primeira linha de abordagem, sou de opinião de que não existe na obra de Chico nenhuma canção discriminatória ou depreciativa da mulher. Antes de qualquer coisa há que esclarecer que Chico não é um autor conceitual. Ele não defende, em suas canções, nenhuma posição contrária ou a favor da mulher e ou da condição feminina. Ele é um contador de histórias. Que cada um tire a conclusão que achar pertinente sobre o seu significado. Qualquer pessoa tem o direito de achar que essa ou aquela história defende a submissão da mulher. Ou, ao contrário, exalta o gênero feminino e o glorifica. Mas o que todos têm de se perguntar é se a história contada é verdadeira ou não, se se passam coisas parecidas ou não na realidade social concreta. E também, se a história é bem contada ou não, isto é, se ela é fiel ou contém falsidades e invencionices fora de contexto. O fato de Chico ser tão amado a ponto de ter se tornado uma unanimidade nacional advém exatamente do fato de que suas histórias, além de verdadeiras são deslumbrantes. Por isso, querer acusar Chico de defender uma realidade pré-existente pelo simples fato de descrevê-la não me parece uma atitude coerente.
No que diz respeito à decisão que Chico acabou de adotar, há que se considerar dois aspectos importantes. Primeiro, dizer que não vai mais cantar a canção não significa que ele dê razão às pessoas que o criticam. Ele simplesmente atende a um pedido delas. Não cantará mais, e pronto. Não interessa aqui se elas têm ou não razão. E pelo que me parece, Chico sabe que elas não têm. O que não quer dizer que ele não possa fazer uma concessão. Cantando ou não, a canção continuará sendo cantada por milhares de pessoas, particularmente mulheres, que são as que mais a adoram. Chico não está renegando nada. Não se trata de “anular” a canção, como tem sido insinuado. Se assim fosse ele não diria apenas que não mais a cantaria, mas procuraria tirá-la do mercado, impedindo sua regravação e difusão por qualquer meio, utilizando-se de seus direitos autorais. Por outro lado, é preciso observar o contexto em que Chico se manifestou. Rosa Freire de Aguiar foi muito feliz num comentário que fez numa publicação de Cid Benjamim (que dizia “não entender o que deu no Chico pra resolver não cantar mais ‘Com açúcar e com afeto’): “…mas não foi o comentário dele no filme de Nara?” – pergunta ela – “Que se fosse hoje ele talvez não cantasse porque talvez ela achasse machista? Acho que foi só isso. A coisa virou uma bola de neve.” Enfim, existe na atitude de Chico uma deferência especial a Nara Leão, que, segundo ele, não a cantaria hoje. Chico e Nara são duas pessoas sem nenhuma arrogância, pessoas doces, ternas, respeitosas para com a opinião alheia. Por essa razão, não se pode querer que Chico deva comprar uma briga e enfrentar suas oponentes. Mesmo porque ele sabe que elas sabem que ele não quis ofender ninguém, ao contrário, somente retratou uma realidade quotidiana que ele próprio rejeita. Enfim, contou uma história, como tantas outras de sua lavra, sobre a condição da mulher. Ainda bem que uma enxurrada de protestos e opiniões em sua defesa está impedindo que sua imagem seja depreciada.
Em meu livro ‘As Diabruras de Orfeu’ (Editora Lacre, 2020) há um capítulo dedicado à visão da mulher em Vinicius de Morais, Chico Buarque e Jacques Brel. Na introdução digo que que o mito grego de Orfeu e Eurídice na verdade engloba três mitos distintos e interligados: do amor, da mulher e da música. É por isso que a vertente principal da canção popular é a imagem da mulher e, em consequência, do amor. Tudo está entrelaçado numa infinitude de situações:
“Numa abordagem en passant ─ um alinhamento de dados que se destacam por si mesmos ─ é fácil chegar a um resumo do que, praticamente, já se transformou em consenso: (…) estes três compositores são os representantes das principais tendências da canção no que diz respeito ao imaginário sobre a mulher: Vinicius está relacionado ao canto da beleza da mulher; Chico ao canto da condição da mulher (social, cultural, sexual) ou da sua invenção; e Brel à crítica da mulher (seu papel construtor e desagregador da felicidade).”
Por oportuno, quem estiver interessado em ler o trecho dedicado a Chico, o reproduzo abaixo.
A MULHER EM CHICO BUARQUE DE HOLANDA
Em Chico Buarque a visão da mulher é (…) complexa. A diversidade de posturas que ele adota em relação à figura feminina exige estudos mais aprofundados, o que vários ensaístas no Brasil já fizeram. Em sua obra, é possível identificar vários “eus líricos”, alguns dos quais verdadeiros fenômenos de alteridade, a exigir não apenas o exame acurado do ensaísta, mas a introspecção meticulosa do analista. Não é à-toa que a obra de Chico tem sido estudada muitas vezes sob o ângulo da psicanálise. Somente uma de suas canções, Terezinha, mereceu doze páginas de análise em Figuras do feminino na Canção de Chico Buarque de Adélia Bezerra de Menezes (ABM), a obra mais importante já publicada no Brasil sobre esta temática. Em sua abordagem a ensaísta examina não apenas o percurso da afetividade feminina implícita nessa canção buarqueana (espécie de “pedagogia sexual e afetiva da mulher”) como faz uma leitura psicanalítica, suscitando seus traços edipianos tão cuidadosamente despistados. Vários outros autores seguem esse mesmo caminho. O que se pode constatar é que existe certa fartura de análises da visão de Chico Buarque sobre a mulher. E a leitura desses ensaios sempre me emociona.
Para os que quiserem aprofundar o tema é recomendável ler ao menos quatro obras, algumas já citadas neste livro: as duas primeiras são de Adélia Bezerra de Menezes, Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque e Balão Mágico; a terceira é a de Alberto Lima, Quem é essa mulher? – A Alteridade do Feminino na Obra Musical de Chico Buarque de Holanda; e a quarta é Chico Buarque – Recortes e Passagens, de Ana Maria Clark Peres, um estudo mais direcionado à psicanálise, concentrado na questão da “extimidade” em Chico. Não toco aqui em obras biográficas e com outros enfoques analíticos, por não ser o caso.
Nas minhas vivências e nas longas audições de Chico Buarque, fui estabelecendo para mim uma linha geral em torno do conjunto de sua obra musical, que reproduzo aqui e em outros capítulos deste livro. O enfoque particular de suas letras pode até parecer a intenção principal do texto que se segue, mas para mim o que está em jogo é sempre suas canções como um todo, e não apenas suas letras. Aliás, tanto ABM como outros estudiosos da obra de Chico, deixam claro que estão analisando textos, versos ou poemas de Chico, e não especificamente suas construções musicais, apesar de que seja problemático hoje fazer tal separação, uma vez que a penetração da obra buarqueana na população de certo modo esconde tal unilateralidade. Quando se fala de Chico todos sabem do que se trata e logo se associa qualquer verso a uma melodia. Por isso, é oportuno frisar que nosso enfoque tem rumo próprio. Com isso, queremos dizer que muitas ideias de Chico seriam completamente incompreensíveis fora do contexto musical; ou, pelo menos, não teriam eficácia distante dele. Como linguagem própria, a canção é formalmente independente. Determinadas palavras e versos, isolados de uma frase musical, tendem a perder sua substância, ou ao menos sua beleza, porque a música tem uma gama de sugestões formais e sensoriais sem as quais é impossível fazer a imagem pretendida ultrapassar o que seu simples esqueleto sugere. A palavra cantada é a palavra com um significado mais amplo. Esta será a diferença desta pequena abordagem, em que nos restringimos a um item específico de sua multifacética temática.
É impossível não identificar na obra de Chico a existência de um verdadeiro monumento “música/mulher”, cuja descrição não é nada fácil, pois ficamos sujeitos a tantos enganos e interpretações que chegamos a nos perder. Enxergar esse edifício de arte e fantasia, que não se sabe exatamente o que é e o que pretende, não deixa, no entanto, de ser um delicioso ato de prazer e deslumbramento. Em última instância, o que importa são suas luzes, suas cores, seus traços multifacéticos, seus desenhos caleidoscópicos, suas sonoridades, e não o seu entendimento racional. Aliás, pouca gente se encantaria com Chico Buarque se, antes de qualquer coisa, não percebesse o lado fascinante e meio misterioso desta Babilônia emocional, sensorial e sociológica que é a sua obra. O que nele cativa, de saída, é a canção como estrutura integral: letra, música, poesia, ritmo, interpretação e até visão teatral.
A interdependência entre música, amor e mulher já aparece nítida no início da carreira buarqueana. Daí para frente ela vai tomando diversas variantes, de acordo com o amadurecimento do compositor. Mas o primeiro aspecto a se notar é a inseparabilidade entre mulher e música. Em algumas delas, a intenção prévia de fundir os dois elementos se estabelece como ponto de partida da história. Numa delas, particularmente, o tema é tratado com tal clarividência que sugere mesmo uma simbiose entre os dois componentes: um não pode existir sem o outro. Trata-se de Samba e amor de 1970. Por ser uma espécie de modelo do que estamos falando, vale a pena começar transcrevendo alguns trechos desta canção:
Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
Escuto a correria da cidade, que arde
E apressa o dia de amanhã
(...)
No colo da bem-vinda companheira
No corpo do bendito violão
Eu faço samba e amor a noite inteira
Não tenho a quem prestar satisfação
(...)
Não sei se preguiçoso ou se covarde
Debaixo do meu cobertor de lã
Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
O violão aparece aqui como um instrumento cheio de erotismo, a ponto de o poeta fazer amor abraçado a seu corpo. Essa imagem carregada de libido evoca exatamente a ideia geral de que fazer música e fazer amor são duas coisas muito parecidas, e que, eventualmente, uma substitui a outra, atrai a outra e inspira a outra, mútua e constantemente. A sexualidade da música, como atesta David Attenborough, transborda aqui. Talvez esta seja a chave para se compreender a beleza da obra musical do compositor.
A primeira canção de Chico abordando o tema da mulher, se bem me recordo, é A Rita, e já começa falando do fracasso da relação amorosa e de sua implicação na canção. No momento em que o samba é lançado, Rita é a mesma mulher fatal que aparece com frequência impressionante no cancioneiro popular de todo o período anterior, isto é, a mulher que abandona o artista à sua própria sorte. Nessa canção, ela deixa o poeta, levando embora tudo o que lhe é importante: sorriso, amor, coração, objetos preciosos, planos de vida e até seus vinte anos. O maior dano que provoca, no entanto, é ter deixado mudo o seu violão. Porque perdendo o amor, o poeta perde também a inspiração, e não poderá mais compor. Esta é a síndrome da qual já me referi no começo deste livro:
Levou os meus planos
Meus pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu coração
E além de tudo
Me deixou mudo
O violão
Ou seja, sem a mulher a música deixa de ser viável. E o ideal do compositor é “fazer samba e amor a noite inteira”, o que pode ser traduzido por “a vida inteira”.
Vê-se, portanto, que fazer uma canção é, primordialmente, falar da mulher e do amor. Na sequência, virão histórias mais complexas e emblemáticas: conquistas, perdas, brigas, solidão, desencontros, arrependimento, perdão, dores, sexo, lágrimas. Algumas vestirão roupagens românticas, outras realistas, outras marcadamente trágicas. Mas a mulher e o amor ocuparão sempre o centro das preocupações de Chico.
Como não existem relações amorosas independentes da vida social e de suas contradições, as histórias de Chico tenderão inevitavelmente a refletir realidades meticulosamente pensadas, primeiro a partir de sua experiência pessoal (sexual, intelectual, literária etc.), e depois através da observação minuciosa e crítica do espaço social. Os dilemas, exigências e fraquezas do relacionamento amoroso, assim como os dramas do afeto serão vistos em situações concretas, em que o homem e a mulher estão obrigados a expor francamente as suas condições humanas. Numa sociedade de classes, cheia de diferenças, injustiças, desigualdades e preconceitos, a mulher, particularmente, pagará caro por sua condição. E para Chico isto é o que importa observar. Não tem sentido ficar falando da mulher como princesa de reinos imaginários, ente sublime ou ser perfeito e inalcançável, acima da sociedade de seu tempo. Sua canção vai assumir então o compromisso de falar da condição da mulher no seu mundo real, da qual aflorará a própria condição do homem.
Talvez por isso Alberto Lima tenha dedicado um dos capítulos iniciais de seu livro a examinar o fato, aliás, inegável, de que Chico é o verdadeiro iniciador da valorização da mulher na canção brasileira. Se a bossa nova transforma a mulher em musa, Chico a alça a personagem nodal a partir de valores que lhe são próprios. O estigma da coisificação da mulher é abolido do cancioneiro popular brasileiro através de decreto musical de Chico Buarque. Suas canções acabam criando uma linha divisória no campo da literatura brasileira. Doravante a mulher será vista dentro de sua realidade, com todos os valores, conflitos e sentimentos que lhe são inerentes.
Todavia, falar da condição da mulher através da canção não é tarefa fácil. Este foi o maior desafio a que se propôs Chico Buarque, segundo todos os seus estudiosos. Muitas vezes versos tão simples e aparentemente corriqueiros trazem embutidos elementos de uma densidade social e psíquica tal que somos levados a admitir que eles sejam frutos de verdadeiros estratagemas visando dizer coisas profundas sem explicitá-las. É como um belo jardim que, de repente, desaba e se transforma em abismo. Não é à toa que ABM, referindo-se à canção Sem Açúcar, diz que a mesma equivale a “um tratado sobre a condição feminina sob a sociedade patriarcal”. E se observarmos bem, é possível fazer paralelos parecidos com várias outras canções, pois se trata de uma técnica utilizada por Chico de inventar histórias que escondem significados não expostos. Como o concept habillé de Jacques Brel de que trataremos mais na frente.
Mas é quase impossível a um compositor, ao menos no início de sua carreira, eximir-se de dedicar uma boa parte de suas canções a glorificar a mulher e tudo o que dela decorre de ideal: beleza, amor, sonho, objetivo de vida, alegria, afeto, mistério. As posturas de Chico às vezes tendem propositalmente a cortejar esse idealismo, até pelo fato dele ser demasiadamente comum na imaginação masculina. A canção paradigmática desta vertente onírica é Beatriz, em que o poeta faz seguidas perguntas indagando de que substância ela é feita: “Será que é pintura / (...) Será que é de louça / Será que é de éter / (...) Será que é mentira”, para no final, desejar: “e se eu pudesse entrar na sua vida”; e pedir:
Sim, me leva para sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
No penúltimo verso, o herói buarqueano deseja que sua musa onírica lhe ensine a viver etereamente no espaço do céu. Chico não concebe furtar-se a essa idealização típica do homem sonhador que não consegue viver com os pés no chão. Ela é uma passagem necessária, uma fase de importância vital no desenvolvimento do eu lírico masculino, pois nela é que se revela uma das primeiras formas de amar.
Em Ciranda da bailarina, outra canção do mesmo musical, a personagem é uma estátua de perfeição física e comportamental, pois não tem nenhum defeito. Se todas as pessoas estão sujeitas a diversos tipos de doença, feridas, inchaços, dor de cabeça, etc., assim como a defeitos físicos, hábitos indesejáveis e posturas incorretas, a bailarina está isenta de tudo isso. Representa, assim, a perfeição. Depois de enumerar os defeitos que são comuns a quase todas as pessoas, o compositor nos conduz ao verso-chave:
Só a bailarina é que não tem
Paralelamente a esta postura onírica, vamos defrontando outras mais realistas, de cunho crítico e filosófico, em que a mulher passa a ser retratada na sua real situação. A experiência de vida ao lado dela e a observação crítica de toda a cadeia social aprofundará a visão feminina do artista. Os frequentes e inevitáveis fracassos das relações amorosas, de que o mundo social e até criminal dá notícias diárias ─ e cujas variantes de culpa, originárias dos dois polos, engendram o princípio da tragédia ─ obrigar-lhe-ão a compartilhar de todos os frutos nascidos da árvore do amor: a idealização e a desilusão, a felicidade e a infelicidade, o prazer e a dor. Mas a mulher estará sempre no centro do palco da vida e da música. Chico jamais a abandonará. A mulher será seu tema recorrente.
Assim é que, de tanto falar da mulher e sobre a mulher, e de tanto se posicionar no seu lugar, vivendo a sua condição ou as situações mais marcantes de sua condição, Chico tem sido identificado como o artista que até hoje mais compreendeu a alma feminina. ABM enxerga em sua produção duas posições marcantes. De um lado “uma visão muito masculina do feminino, numa lírica entranhadamente corporal”; de outro, um “eu lírico feminino”, do qual emerge, nas canções do poeta, “uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina”.
Tal visão, compartilhada também por outros estudiosos e até pelo seu público (particularmente as fãs), levou Chico a manifestar sua incredulidade: “Acho uma contradição isso de dizer que eu expresso muito bem o sentimento feminino, pois para mim, as mulheres são um enorme mistério” (grifo meu). Mas, em entrevista anterior, ele já havia deixado um caminho aberto para a identificação que vem se fazendo de seu domínio da alma feminina: “Continuo com a curiosidade intacta, com o mesmo desconhecimento e esta estranha admiração. Sempre me surpreendem, e suas opiniões me interessam mais que as dos homens”.
Ora, é fácil concluir que se a mulher não fosse um mistério, a nos exigir permanente desvendamento, não teria sentido falar dela com tanto interesse e admiração. E não precisamos ir muito longe para compreender a chave desse mistério, pois ele está nas próprias canções de Chico. A pergunta insistente de O que será? por exemplo, é exatamente a tentativa de trazê-lo à tona, ficando o ouvinte com a incumbência de se buscar uma resposta:
O que será que será
Que vive nas ideias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Está na romaria dos mutilados
Que está no dia a dia das meretrizes
Que está na fantasia dos infelizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência, nem nunca terá
O que não tem censura, nem nunca terá
O que não faz sentido
ABM enxerga nessa canção um discurso utópico, “que dá voz aos que não têm voz; que transforma os párias sociais em protagonistas da História”. A ensaísta encontrou fortes conexões entre a tradição dionisíaca grega e a obra musical de Chico; aquela influenciaria diretamente os párias da sociedade primitiva, que viviam fora da vida política, à margem da polis, como os escravos e as mulheres; esta, da mesma forma, tentaria dar voz aos excluídos, particularmente às mulheres, pois não se pode negar que elas vivam até certo ponto em estado de exclusão social. Mas a ênfase interrogativa da canção permanecerá ativa do começo ao fim, sugerindo uma força poderosa a arrastar os homens no seu enigmático caminho. Que força misteriosa será essa? A mulher com os seios de fora segurando um mosquete do famoso quadro La liberté guidant le peuple de Delacroix? Uma utópica energia feminina capaz de transformar os párias sociais em protagonistas da História? A simbologia que unifica liberdade e sexo engendra também esse mistério transcendente, se não desvendado, ao menos formulado poeticamente por Chico. Nesta canção encontramos a mais feliz convergência entre o político e o erótico em sua obra. Uma convergência que não se explica. Não à toa, a primeira estrofe da canção (À flor da pele), termina com uma afirmação peremptória, sugerindo que a pergunta não tem resposta, ou seja, que o mistério não tem fim:
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita
Aliás, Wagner Homem, em seu livro Chico Buarque, conta que, quando Chico teve acesso à sua ficha no DOPS, em 1992, “deu de cara com a interpretação que os censores fizeram da letra e achou graça, já que nem ele mesmo sabe ‘o que será’, e se soubesse não haveria sentido em explicar, uma vez que a letra em si é uma pergunta.”
O mistério de O que será? continua na canção Beatriz, da parceria de Chico com Edu Lobo, feita para o musical O Grande circo místico de 1982. Mas aqui o que se ressalta é seu lado onírico, como vimos há pouco. Não importa. Nela há, sim, uma idealização da mulher; mas há também uma inquietação quase absurda diante do mistério que ela representa:
Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
(...)
Olha
Será que é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
(...)
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se um arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida
Por mero acaso, a personagem é uma atriz; aliás, em desconformidade com o roteiro inicial do musical, o que já foi explicado por Chico. Mas deveríamos nos contentar com que seja uma mulher qualquer, para a qual, de tão linda e imaginária, se há de perguntar mesmo se ela existe. De fato, a perfeição da figura feminina, adorada pelos poetas, artistas e escritores, leva inevitavelmente a esta interrogação, de fundo ilusionário. A personagem é a mesma Beatriz da Divina Comédia de Dante, como poderia ser a Heloísa de Abelardo ou a Dulcinéia de Dom Quixote. Daí que o próprio Chico reafirma, no DVD À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira, que ele se considera “um grande desconhecedor da alma feminina, ao contrário do que se fala. Virou um lugar comum por causa das canções. Eu sou um sujeiro muito curioso exatamente por desconhecer, por querer saber, querer entender e não entender nunca.” Claro! Não é preciso entender. Ninguém precisa entender. Basta se encantar. Afinal, Chico está fazendo música e não escrevendo um tratado sociológico. O que não se pode negar é que ele sempre buscou encontrar-se com esse mistério, pois é ele que lhe fornece as mais criativas ideias para uma nova canção.
O desejo visceral de contemplar (não de desvendar) o mistério feminino leva Chico a adotar, em diversas ocasiões, este esquema de construção musical com uma sucessão de perguntas, algo mais ou menos inédito na canção popular. Uma vez que o mistério permanece, as perguntas continuam a proliferar. Mas nem sempre são formuladas em busca de uma resposta. Pode até ser o contrário, isto é, significar apenas “recusa e indignação” diante de uma situação de desamparo e de impotência em que a mulher amada parece querer escapar do herói apaixonado. É o que se pode ver em Você, Você, de 1998:
Que roupa você veste, que anéis?
Por quem você se troca?
Que bicho feroz são seus cabelos
Que à noite você solta?
De que é que você brinca?
Que horas você volta?
Seu beijo nos meus olhos, seus pés
Que o chão sequer não tocam
A seda a roçar no quarto escuro
E a réstia sob a porta
Onde é que você some?
Que horas você volta?
Trata-se de uma “pungente canção de amor e de ciúme”, em que o eu lírico “quase à beira do desespero” dirige uma queixa insofrida e passional à mulher amada, tentando “assegurar-se de que não a perderá para sempre”, como bem disse ABM. Ou seja, são os famosos “coups de pourquoi” de Ne me quitte pas de Brel. De fato o último verso das estrofes (salvo a terceira e a quarta, que derivam para “Que horas você chega?” e “Quem é que você chama?”) é uma ofegante repetição, que dilacera o coração do amante:
Que horas você volta?
A última estrofe, então, é um poço de aflição:
No sonho de quem
Você vai e vem
Com os cabelos
Que você solta?
Que horas, me diga, que horas, me diga
Que horas você volta?
A ensaísta faz uma segunda leitura. Segundo ela, o título, sozinho, não passaria de uma “reprimenda velada”, mas acompanhado do subtítulo Uma canção edipiana, sugere que os protagonistas não sejam necessariamente um homem e uma mulher adultos. Podem ser um menino pequeno e sua mãe, uma vez que alguns versos chegam a induzir este entendimento; por exemplo, na pergunta “Você, quando não dorme / Quem é que você chama?” Ou “Do que é que você brinca?” Mas tudo teria um duplo sentido, pois, lembra ela, o brincar pode ter a conotação macunaímica de jogos sexuais. Por outro lado, versos como “Me sopre novamente as canções / Com que você me engana” remeteria não só às canções de ninar da infância como ao “sussurro amoroso no ouvido dos amantes”.
Nesse ponto, diz a ensaísta que o poeta “assume o ‘eu lírico’ de uma criança pequena e lhe empresta a sua emoção (...), a emoção da criança que ele foi”. Na sua memória afetiva inconsciente ele traria “os rastros de um ciúme seguramente avassalador. E aí a gente começa a entender, (...), em que medida todo ciúme, nas relações que se vive vida afora, é reatualização dessa experiência fundante infantil, provocada por uma situação de desamparo e exigência de absoluto”, ou seja, “todo ciúme é transferencial”. Como diria Guimarães Rosa, “coração mistura amores”.
Nessa citação, vê-se perfeitamente aquilo que já mencionei: a meticulosidade espantosa de Chico Buarque, sua capacidade de miscigenar histórias inimagináveis à primeira vista, e que só estudiosos com farto conhecimento são capazes de perceber e interpretar. E como são belas essas histórias! Que situações universais impecáveis elas descrevem! Como são fáceis de agradar e de cativar o público, que fica a imaginar ter vivido experiências similares.
Mas não é só isso. É também a riqueza de hipóteses, explicações e interpretações que elas sugerem. Creio que ainda se pode pensar numa terceira leitura dessa canção, a qual a ensaísta pode não ter percebido, o que viria ressaltar ainda mais as diabruras criativas de Chico. Se a pergunta “Que horas você volta?” é repetida à exaustão, até o final da canção, e se a amada não dá sinais de retorno, como não se pensar que ela simplesmente pode não existir, que não passe da imaginação de um amante alucinado? De fato, não apenas o desfecho da canção, como muitos de seus versos intermediários alimentam a hipótese da inexistência da mulher amada.
Quem é essa voz?
Que assombração
Seu corpo carrega?
Terá um capuz?
Será o ladrão?
Que horas você chega?
Nessa estrofe a mulher não passa de uma assombração. Mesmo assim o amante continua a esperá-la, mas não sabe como é sua voz, como virá vestida, se usará um capuz nem que horas vai chegar. Poderá ser à meia-noite, no dia seguinte, no próximo mês, no ano vindouro. Ou nunca! Daí a pergunta: “Onde é que você some?” Se a amada existiu, já não existe mais. Desapareceu. Não vai voltar. Quem lhe espera se permite, no entanto, a fazer todo tipo de pergunta. Principalmente aquelas relacionadas à lógica do ciúme: se a amada não vem é porque possui outro amante. E quem é esse outro?
Para quem você tem olhos azuis
E com as manhãs remoça
E à noite, para quem
Você é uma luz
Debaixo da porta?
No sonho de quem
Você vai e vem
Com os cabelos que você solta?
Que horas, me diga, que horas, me diga
Que horas você volta?
Com efeito, o amante que espera uma mulher que nunca chega nem chegará está muito mais sujeito ao ciúme e ao sofrimento do que aquele que está separado simplesmente por causa de uma desavença casual. Mas não parece ser este o caso. Este personagem não está doente de coração e de paixão. Ele está desesperado de alma. E o mais interessante de tudo é o que se depreende da segunda leitura de ABM: ela continua a aplicar-se no lastro dessa terceira hipótese, pois o amante sonhador e solitário pode também trazer à cena, nesse caso, a criança que ele foi.
Poderíamos dizer, então, que o mistério feminino e, em consequência, o mistério do amor, é a maior fonte de inspiração de Chico Buarque. Na belíssima canção Amando sobre os Jornais de 1979, o amor se realiza como algo organigamente ligado à política, do país e do mundo. Metaforicamente, os amantes se amam sobre um monte de notícias, já que os jornais lhes servem de camas e cobertores. Mil coisas estão acontecendo lá fora e o mundo se desenrola em paralelo aos seus afagos e entregas carnais. A canção vai terminar assim:
No ardor de tantos abraços
Caíram palácios
Ruiu um império
Os nossos olhos vidrados
De mistério
Enfim, sempre o mistério a rondar os amantes e particularmente a mulher. A erotização da política (ou a politização do erótico) é um tema recorrente em Chico. Haveria algo mais misterioso do que isso?
Alberto Lima tem uma colocação bem elucidativa: o poeta percorre os caminhos do território feminino para conhecê-lo melhor, “percorrendo matas e rios” com o intuito de descobrir “em que pântanos beber” e onde, afinal, a mulher “guarda o seu prazer”. De fato, em O que será? Chico não faz outra coisa senão perguntar por essa mulher. Nessa empreitada ele é o que “não tem descanso, nem nunca terá / o que não tem cansaço, nem nunca terá / o que não tem limite”.
É para alcançar o apogeu de seu objetivo criativo que Chico se coloca na posição da mulher, tentando sentir o que ela sente, apossando-se de sua voz. Esta proeza seria impossível sem um alto grau de sensibilidade e sem a capacidade poética de incorporar personalidades externas, puramente imaginadas, como Pessoa o fez. Aliás, Pessoa é o formulador do feliz neologismo “outrar-se” do qual Chico se apossa com estupenda originalidade. Baudelaire já se referia ao privilégio do poeta ser, além dele próprio, também o outro. Talvez por ter tido um convívio muito maior com mulheres do que com homens na infância e adolescência, como nos informa Regina Zappa em sua biografia, Chico tenha adquirido uma facilidade enorme de “outrar-se” em personagens femininos. Nesse exercício de alteridade, chega a ser meticulosamente preciso: na canção Meu namorado de 1982, diz “vejo o meu bem com os seus olhos / e é com os meus olhos / que o meu bem me vê”.
Já nas chamadas manifestações líricas “entranhadamente masculinas” destaca-se Tororó, uma canção paradigmática, por suas imagens corporais cruas e cheias de sugestões visuais:
Dentro da fêmea Deus pôs
Lagos e grutas, canais
Carnes e curvas e cós
Seduções e pecados infernais
Em nome dela, depois
Criou perfumes, cristais
O campo de girassóis
E as noites de paz
O corpo feminino aparece aqui como uma paisagem paradisíaca. Seus símbolos e signos são tão possantes que criam “campo de girassóis” e “noites de paz”. Dessa visão metafórica regurgita o mistério do corpo feminno e de seus poderes. Esse mistério hipnotizará os homens, que passarão a vida tentando achar o caminho de entrada. E, ao menos na canção, ninguém foi tão longe em tal empreitada quanto Chico Buarque.
Enfim, o herói buarqueano é aquele que ama profundamente a mulher, que com ela percorre os mais intrincados caminhos do prazer, realiza as mais difíceis proezas do afeto, redescobre todos os seus percursos, entrega-se perdidamente a ela, a rejeita e a submete, e, ainda assim, com toda a sua experiência, sabe que não a conhece. Parece até que Chico sente um prazer especial ao intitular suas canções com nomes femininos como Rita, Januária, Carolina, Maria, Bárbara, Angélica, Geni, Luiza, Terezinha, Lily Braun, Joana Francesa, Ana de Amsterdam, Beatriz, Cecília, Iracema. Quando não faz isso, trata suas personagens com tal intimidade e de forma tão prosaica que sentimos vontade de lhes dar um nome, igual ou semelhante aos de nossas histórias pessoais.
Mas os nomes femininos usados por Chico não são escolhidos aleatoriamente. Eles são parte de uma pesquisa de adequação. Tudo é meticuloso. Cada nome precisa ter relação direta com a história da canção. Carolina, por exemplo, de sonoridade tão delicada, tem a cara da moça triste e acanhada que passa a vida na janela e não vê o tempo passar. Januária, mais que isso, é a própria janela. Com efeito, janela em latim é Janus, prefixo de Januária. Portanto, ela é a moça da janela:
Toda gente homenageia
Januária na janela
Até o mar faz maré cheia
Pra chegar mais perto dela
Bárbara está no nome de duas canções: na primeira, Cala a boca, Bárbara, existe uma intenção clara de explorar a sonoridade da frase para suscitar, quase que soletrar o nome Calabar, da peça Calabar: O elogio da traição, então censurada. Na segunda, a heroína é a mesma da peça e seu nome só poderia ser proparoxítono, para atender a tônica da frase musical. Não sei dizer qual das duas necessidades nasceu primeiro. Mas isso não importa. Angélica é a heroína da canção homônima dedicada a Zuzu Angel, a triste peregrina que durante anos perambulou pelo Rio em busca do corpo de seu filho Stuart Angel Jones, assassinado por algozes da Aeronáutica no período da ditadura. E não é preciso ir longe para fazer a derivação de Angel para Angélica. Além disso, tratava-se de uma pessoa que se poderia perfeitamente qualificar como angelical. A denominação é perfeita:
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar
Geni é um nome padrão, já consagrado na crônica boêmia. Chico não o escolheu por acaso. Afinal, não tinha como usar o nome Boule de Suif, personagem original de Maupassant que lhe deu inspiração. Sua canção conta a história de uma mulher marginalizada e do ódio que uma sociedade preconceituosa lhe dedica. Uma canção em cuja estrutura não caberia um nome longo ou delicado. Geni soa perfeito. Terezinha é o nome da canção de roda que inspirou a criação de Chico. Ele poderia ter mudado, mas se o fizesse a canção perderia a sua substância, como bem provou ABM ao examinar os antecedentes do nome e da história matriz. Beatriz é inspirada na grande paixão de Dante, que renasce nas páginas da Divina Comédia. Iracema é a heroína de Iracema voou, canção encomendada a Chico para o filme For all, de Luis Carlos Lacerda e Buza Ferraz. O nome foi escolhido, relembrando a personagem de José de Alencar, por ser um anagrama de América e a canção narrar as dificuldades por que passa um brasileiro nos States. E assim por diante.
Resumindo: 1) a música é um apanágio da mulher; a canção não existe sem ela; nela se funda o “eu lírico masculino” e o “eu lírico feminino”; 2) a mulher é o principal tema da canção buarqueana, abrangendo nada menos que 190 canções, conforme levantamento de Alberto Lima; 3) a mulher é um mistério permanente; todas as situações que a envolvem são misteriosas; e 4) a mulher é um ser em permanente estado de libertação (econômica, social, sexual), e sua condição, nesses planos, é a essência da canção buarqueana sobre a mulher."
Paulo Martins.
Escritor e Poeta.

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