domingo, 6 de março de 2022

CRÔNICA DE UM FATO REAL.



Quase madrugada...
A cidade adormecida, poucos passos nas calçadas, cães uivando.
Aquele homem corria, chinelos de dedos enfiados nos dedos das mãos, ofegante.
De relance, lhe vinham à mente as crianças, tão pequenas, tão adoradas as crianças, a discussão com a mulher naquele dia, coisas de casal.
Teve remorsos.
Não era nada fácil a vida que levava trabalhando de manhã e até a noite como motorista na Cooperativa Agrícola de Cotia e de madrugada, levando a peonada para o mato, mas acreditava que deveria ter feito mais pelos filhos, pela mulher, com mais consciência.
Quantas vezes deixara a mulher ao desamparo nas horas mais necessárias quando da doença repentina de alguma das crianças, coitada, sempre à mercê dos problemas diários, segurando a barra sozinha, as crianças na escola, a falta de alimentos, a falta de carinho.
Lembrava o dia em que a conhecera e até que fugiram juntos para mostrar ao sogro que se amavam e queriam casar-se.
Credo com os ciumes dela!
Uma vida...
E passava assim na sua cabeça, aquele emaranhado de pensamentos meio desconexos, meio apressados, meio querendo guardar para sempre no mais recôndito da alma.
Afora a luta pela sobrevivência, ainda achara muito tempo para muitos deslizes, outras mulheres, gostava delas. Bebida também. Bebia sempre.
Eram ambas coisas tão fáceis, pensava. Bastava uma nota qualquer, às vezes, nem isso.
Lhe veio à tona aquele acidente com o caminhão, um corpo caído no asfalto:
- "Assassino! Assassino! Você me matou..."
De qualquer forma, fora mesmo sua culpa; quem dirigia o caminhão era ele.
De repente, achou que não aguentaria mais correr.
Aquele homem em seu encalço, quase lhe alcançando, quase lhe estrangulando, os olhos puxados; pode ver que era um japonês que suava encarniçado, querendo beber do seu sangue.
Provavelmente algum amante traído, pensara.
Foi então que caiu desfalecido.
E então aquele homem, o japonês, se apossou de sua vida como se fora Deus, abatendo-a.
Nem a Polícia e nem a Justiça do lugar se prenderam ao caso. Assassinato era coisa rara naquele fim de mundo e os policiais só deixavam seu baralhinho na mesa para atender casos banais e corriqueiros de brigas de casais, bêbados barulhentos, prostitutas fazendo farra na rua.
Ficou por assim mesmo.
Morte natural.
Apenas morte natural.
Sinal nenhum no corpo, sinal algum nos órgãos levados ao IML de São Paulo.
Nada!
Onde já se viu morte natural, sem causa, para um rapaz robusto e forte como ele, 36 anos apenas, cheio de vida e energia?
Mas a vida e a morte são dons de Deus, só a ele pertence a história de cada ser humano.
Que Deus esteja para sempre com aquelas crianças sem o pai adorado, tão desiludidas.
Que Deus jamais se desligue delas.
Que o futuro delas seja repleto de paz, conforto e felicidade, para que estes sentimentos ofusquem sempre a felicidade dos filhos daqueles que negaram ajuda a seu pai.
Que à hora da ceia, os filhos daqueles, um dia não tenham o que há muito custo o pai morto conseguira dar aos seus, com trabalho, suor e o muito de amor que lhes nutria.
Que estas crianças sejam testemunhas do mal que se há de abater sobre o lar daquele homem assassino.
Estas crianças que, de repente, se viram sem o companheirismo do pai, sem os beijos do pai, sem ouvir suas estorinhas, sem rir do seu humor ou de sua roupa suja de graxa do caminhão, sem o ídolo de todos os dias, sem poder dizer mais uma vez:
- Papai, boa noite!
- Papai, me leva junto!
- Benção, pai!
- Ah, vá se danar!
Que não haja paz nem permissão para que aquele homem viva mais, porque a mão que corta pesará, a vingança endoidará e o crime não pode ter perdão.

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