Em julho de 1968, Costa e Silva proibia as manifestações públicas que se tornavam bastante intensas nos protestos contra a ditadura militar que se iniciava no Brasil.
A censura às manifestações artísticas e literárias se fazia plena e mal o povo sabia do que se passava no país.
Conheci o professor nessa época, mais necessariamente no ano de 1.971, quando frequentei o Curso de Ciências Jurídicas da Fundação Karnig Bazarian, em Itapetininga, formando-me Bacharel em Direito em 1.974, época de mui gratas lembranças.
Nesse período, li todos os livros de Bazarian, meu professor de Sociologia. E aprendi a gostar da matéria, mas nem sempre ele falava sobre ela; curtia mais dissertar sobre sexologia.
E quando a aula descambava sobre esse assunto, confesso que eu não gostava, sentindo que perdia meu tempo em ouvir. Talvez porque naquela época poucas eram as meninas que frequentavam o curso de Direito e eu me envergonhava bastante.
Eu tinha 19/20 anos e nessa época lecionava numa escola municipal localizada entre São Miguel Arcanjo, onde eu morava, e o bairro de Gramadinho, divisa com Itapetininga.
Era muito sacrificante vir de ônibus de São Miguel até a entrada da Fazenda Cereser e dali percorrer à pé sete quilômetros para chegar à escola e depois fazer o caminho de volta, ainda à pé, para tomar outro ônibus para ir à Faculdade, em Itapetininga, no período noturno.
De vez em quando uma carona ofertada por um tratorista, uma plaina, uma charrete, onde eu podia descansar, mas era difícil acontecer.
E então, quando calhava ter aula com o professor Jacob Bazarian, me vinha à cabeça: hoje tem aula de Sociologia ou de Sexologia?
Mas não havia como não gostar daquele homem à frente do seu tempo muitas léguas, que gostava de estar junto de pessoas alegres e de moços, demonstrando isso no sorriso firme que sempre enfeitava seu rosto quando transpunha o beiral da porta da classe.
E a gente não sabia se vinha história sobre a vida dele ou se haveria uma piada, mas todos nós nos calávamos para escutar o que o professor tinha a dizer em cada aula, à meia boca ou com a maior clareza.
Um belo dia, ele decidiu não dar prova: passou um trabalho para que os alunos pesquisassem sobre um tema que englobasse algum problema brasileiro, ao nosso critério.
E eu resolvi dissertar sobre a fome no Nordeste que era coisa que meu pai, grande leitor e político, nos revelava com muita indignação.
Enfim, um trabalho bonito, com capa bem desenhada, escrito à mão, como o professor pedira.
Aquele montão de trabalhos sobre a mesa, foi preciso que alguns alunos ajudassem o professor levar até à Secretaria.
O tempo passou e chegou o grande dia.
Jacob Bazarian foi abrindo e lendo trechos de cada trabalho e entregando de volta ao seu autor.
A nota, é claro, não era dita em voz alta, mas estava lá no final do trabalho de cada um.
Não vi grande coisa nos trabalhos dos meus colegas; fui até ficando frustrada quando acabaram os trabalhos sobre a mesa e o meu... Nada!
Terminada a aula, ele chamou pelo meu nome:
- Venha comigo até à Secretaria!
Foi lá que ele abriu um armário, tirou uma pasta - reconheci que era o meu trabalho - e me devolveu dizendo:
- O seu foi o melhor trabalho, mas o tema, convenhamos, não dava para discutir na classe. Parabéns, menina!
Com certeza, pois estávamos na Ditadura.
Fome no Nordeste era realidade nua e crua, mas tabu.
A partir daquele momento nos tornamos cúmplices e eu passei a respeitá-lo muito mais.
Formei-me Bacharel em Direito em 1974
Depois disso, no final de 1975, a vida me levou para São Paulo, onde fui trabalhar, encontrar um relacionamento sério e ter um filho, fazer a vida, praticamente.
Nunca mais ouvi falar de Jacob Bazarian.
Na metade do ano de 1997, voltei para São Miguel Arcanjo, onde fui ajudar na criação do Museu particular da cidade; em Itapetininga, também ajudei na fundação do Jornal "CIDADE", de propriedade de Maria Aparecida Rodrigues dos Santos, irmã do saudoso Osmar Rodrigues, onde criei algumas seções no jornal, incluindo a "Big Wig", onde entrevistava pessoas proeminentes junto à sociedade.
Foi num desses trabalhos que revi meu velho professor de Sociologia Jacob Bazarian, já com problemas de saúde: o mal de Parkinson o afetara.
Sua casa era a única que ostentava uma placa dizendo ser ali "Residência de Jacob Bazarian".
Era muito chique isso, ao menos para mim!
Comigo, cerca de 40 perguntas; poucas para um homem que tinha tanta história de vida para contar e muitas para caberem num jornal que ainda era feito em linotipo.
Tornei a conhecer meu professor, claro que duas décadas mais velho, mas de uma inteligência impagável.
Ele que nascera na pequena cidade de Marach, na Turquia, e fora expulso pelos turcos, refugiando-se com a família na Síria, no Líbano, na França e no Brasil, onde esteve em São Paulo e, finalmente, em Itapetininga, onde veio a falecer; ele que fora coroinha, mascate, balconista; ele que fez Filosofia pura na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, licenciando-se em 1.945; ele que cursou Medicina por dois anos; que foi Seminarista, mas abandonou a doutrina, porque, como dizia, ela "não resolvia o problema do homem".
O homem à minha frente, naquela entrevista, nunca tivera medo de nada, mas os vícios foram muitos e dentre estes: sexo, amor, bebida, prazer, política...
Pelas idéias socialistas, sua vida foi um constante recheio de fugas, viagens, exílios, ao lado dos amigos Oswald de Andrade, Menotti Del Piccia, Caio Prado, Jorge Amado, como ele sempre afirmava com orgulho.
Num desses saraus na casa de Oswald, veio a conhecer aquela que se tornaria sua primeira esposa, a escritora Mary Apocalypse, com quem se casou apenas no civil, sem festa e sem bolo, mas o padrinho Oswald os levou para jantar num restaurante no velho centro de São Paulo.
A segunda esposa foi Zinaida Pachetkina, com quem teve dois filhos: Alexander, que se tornou decorador e Anita, economista.
Jacob Bazarian sempre lutou para implantar no mundo uma sociedade mais justa, mais democrática, mais desenvolvida espiritualmente, sem fronteiras, sem preconceitos religiosos, sem racismos...
Adorava a nova geração por ela não nutrir os mesmos preconceitos que a sua.
Afirmava sempre que "gostaria muito de ter nascido agora".
Sobre as drogas, era radicalmente contra aquelas que transformam os seres humanos em robôs, em farrapos, em bestas humanas.
Seus ídolos? Lenine, Engels, Spinoza.
Sobre as mulheres brasileiras dizia que "elas são muito materialistas" e isso torna "difícil uma convivência pacífica com elas".
Por isso mesmo Jacob dizia: "Minha amante é a Filosofia, a quem serei fiel e dedicado até à morte".
Bastante envolvido na problemática do homem como ser humano temporal, Bazarian nos deixou uma verdade: a luta principal do futuro é entre a Democracia e a Tirania, entre a Liberdade e a Servidão.
Foi através de sua iniciativa que se fundou em Itapetininga a AJORI - Associação dos Jornalistas e Radialistas de Itapetininga - no ano de 1.982, sendo seu primeiro Presidente. Um ano depois, criava também a Casa da Cultura de Itapetininga.
No ano de 1.998, patrocinou um encontro em sua residência com um grupo seleto de pessoas tais como: Alberto Isaac, Hélio Rubens de Arruda e Miranda, Silas Cardoso e Carlos José de Oliveira, daí saindo a decisão de fundar o Museu da Imagem e do Som.
Na época da entrevista, Jacob Bazarian me propôs o trabalho de organizar um grande número de pastas que ele vinha arquivando para o seu próximo livro sobre a quintessência do ser.
Para tal, era imprescindível que eu me mudasse para Itapetininga, permanecendo exclusivamente à disposição de sua inspiração que não tinha dia e nem hora para brotar.
Houve um motivo de força maior para que definitivamente eu lhe desse uma negativa: minha mãe já não estava bem de saúde e eu havia me comprometido com ela.
Se não me engano, parece que o livro foi organizado por um grande jornalista itapetiningano, o Silas Gehring Cardoso.
Marcou-me profundamente, um fato: depois da entrevista, ele me disse, olhando firmemente nos meus olhos:
- "Em 40 anos de jornalismo, você é a melhor entrevistadora que jamais conheci".
Foi a minha glória!
Hoje, ao lado de Venâncio Ayres, Fernando e Júlio Prestes, Abílio Victor, Anézia Pinheiro, Ataliba Leonel, Domingos José Vieira, Jair Barth, José Ozi, Teddy Vieira, Simão Barbosa Franco e outros, Jacob Bazarian é patrono de uma das cadeiras da Academia Itapetiningana de Letras e de outra cadeira no Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga, cadeira esta ocupada pelo atual presidente e antigo amigo, Hélio Rubens de Arruda e Miranda.
A lacuna deixada pelo poeta, professor, filósofo, sociólogo, jornalista e escritor falecido em janeiro de 2003, jamais será preenchida por nenhum outro itapetiningano.
Saudade, professor!
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