quinta-feira, 26 de março de 2020

A CARTA DA RENÚNCIA




Por Maria Cristina Fernandes
No Valor desde a fundação, foi editora de política por 15 anos do jornal. Também foi editora de Política da “Gazeta Mercantil” e subeditora da revista “Veja”

A carta da renúncia. 
A costura de uma renúncia, como saída, passa pela anistia aos filhos. 
26/03/2020 05h00 Atualizado há 6 horas 

A tese do afastamento do presidente viralizou nas instituições. O combate à pandemia já havia unido o país, do plenário virtual do Congresso Nacional ao toque de recolher das favelas. 
Com o pronunciamento em rede nacional, o presidente conseguiu convencer os recalcitrantes de que hoje é um empecilho para a batalha pela saúde da nação. 
Se contorná-lo já não basta, ainda não se sabe como será possível tirá-lo do caminho e, mais ainda, que rumo dar ao poder em tempos de pandemia. 
A seguir a cartilha do presidiário Eduardo Cunha, seu afastamento apenas se dará quando se encontrar esta solução. E esta não se resume a Hamilton Mourão. 
Ao desafiar a unanimidade nacional, no uniforme de vítima de poderes que não lhe deixam agir para salvar a economia, Bolsonaro já sabia que não teria o endosso das Forças Armadas para uma aventura que extrapole a Constituição. Era o que precisaria fazer para flexibilizar as regras de confinamento adotadas nos Estados. 
Duas horas antes do pronunciamento presidencial, o Exército colocou em suas redes sociais o vídeo do comandante Edson Leal Pujol mostrando que a farda hoje está a serviço da mobilização nacional contra o coronavírus. 

Saída a ser costurada passa pela anistia aos filhos 
Pujol falou como comandante de uma corporação que tem a massa de seus recrutas originários das comunidades mais pobres do país, hoje o foco de disseminação mais preocupante para as autoridades sanitárias. Disse que agirá sob a coordenação do Ministério da Defesa. Em nenhum momento pronunciou o presidente. Moveu-se pela percepção de que uma tropa aquartelada hoje é mais segura que uma tropa solta. Na mão inversa do trem desgovernado do discurso presidencial daquela noite. 
Quando já estava claro que descartara o papel de guarda pretoriana, Pujol reforçou a importância do combate ao coronavírus: “Talvez seja a missão mais importante de nossa geração”. 
Vinte e quatro horas depois, o vídeo ultrapassava 500 mil visualizações, mais do que o dobro do efetivo do Exército. 
O distanciamento contaminou os ministros militares com assento no Palácio do Planalto. “Não quero ter minha digital nisso”, comentou um deles ao perceber o rumo provocativo que o pronunciamento da noite de quarta-feira teria. Deixou o Palácio antes da gravação, conduzida sob o comando dos filhos e da milícia digital do bolsonarismo. 
A insistência do presidente na tese esticou a corda com os governadores e com o Congresso, que amanheceu na quarta-feira colocando pilha na saída do ministro Luiz Henrique Mandetta. 
A pressão atingiu o pico do dia com o rompimento do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), com o presidente. 
Aliado de primeira hora de Bolsonaro, presença mais frequente, entre seus pares, nas solenidades do Palácio do Planalto, Caiado foi um dos principais padrinhos de Mandetta, um deputado do Mato Grosso do Sul que não disputou em outubro de 2018 porque temia não se reeleger. 
O ministro negaria a demissão num entrevista em que citou Caiado, mas não Bolsonaro. 
O Congresso mantinha a aposta na saída de Mandetta como mais um tapume no isolamento do presidente quando João Doria, na reunião de governadores com o presidente, partiu para o confronto. O discurso de palanque do governador de São Paulo não é unanimidade entre os envolvidos em busca de uma solução de consenso, especialmente os da farda, mas sua ação deliberada para levar os governadores a recusar interlocução com o presidente, caiu como uma luva para a estratégia de levar Bolsonaro ao limite do isolamento. 
Para viabilizar o enfrentamento dos governadores, o Congresso busca meios de manter o acesso dos Estados a recursos com os quais possam manter suas políticas de combate à doença, hoje confrontadas pelo Planalto. 
O pronunciamento acabou por frear a proposta de emenda constitucional com a qual se pretendia criar um orçamento paralelo para viabilizar as ações de Bolsonaro no combate à pandemia e calar a tecla com a qual o presidente se diz impedido de agir pelo Congresso. 
Cogitou-se até incluir nesta PEC instrumentos com os quais Bolsonaro poderia ter mais poderes sobre o confinamento e o confisco de insumos hospitalares, como meio de evitar o Estado de Sítio. 
Ainda que Bolsonaro hoje não tenha nem 10% dos votos em plenário, um processo de impeachment ainda é de difícil de viabilidade. Motivos não faltariam. Os parlamentares dizem que Bolsonaro, assim como a ex-presidente Dilma Rousseff, já não governa. Se uma caiu sob alegação de que teria infringido a Lei de Responsabilidade Fiscal, o outro teria infrações em série contra uma “lei de responsabilidade social”. Permanece sem solução, porém, o déficit de legitimidade de um impeachment em plenário virtual.
Vem daí a solução que ganha corpo, até nos meios militares, de uma saída do presidente por renúncia. 
O problema é convencê-lo. 
A troco de que entregaria um mandato conquistado nas urnas? 
O bem mais valioso que o presidente tem hoje é a liberdade dos filhos. Esta é a moeda em jogo. 
Renúncia em troca de anistia à toda tabuada: 01, 02 e 03. Foi assim que Boris Yeltsin, na Rússia, foi convencido a sair, alegam os defensores da solução.
Não faltam pedras no caminho. A primeira é que não há anistia para uma condenação inexistente. A segunda é que ao fazê-lo, a legião de condenados da Lava-Jato entraria na fila da isonomia, sob a alcunha de um “Pacto de Moncloa” tupiniquim. A terceira é que o Judiciário, agastado com o bordão que viabilizou o impeachment de Dilma (“Com Supremo com tudo”), resistiria a embarcar. E finalmente, a quarta: Quem teria hoje autoridade para convencer o presidente? Cogita-se, à sua revelia, dos generais envolvidos na intervenção do Rio, PhDs em milícia.
A única razão para se continuar nesta pedreira é que, por ora, não há outra saída. 
Na hipótese de se viabilizar, o capitão pode estar a caminho de encerrar sua carreira política como começou. 
Condenado por ter atentado contra o decoro, a disciplina e a ética da carreira militar, Bolsonaro foi absolvido em segunda instância. 
Em “O cadete e o capitão” (Todavia, 2019), Luiz Maklouff, esboça a tese de que a absolvição foi a saída encontrada para o capitão deixar a corporação. 
Em seguida, o Bolsonaro disputaria seu primeiro mandato como vereador no Rio. 
Trinta e quatro anos depois, a borracha está de volta para esfumaçar o passado. 
Desta vez, com o intuito de tirá-lo da política.


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