sábado, 24 de junho de 2017

BEIJINHO NO OMBRO: UMA ODE À INUTILIDADE E À CULTURA DA INVEJA FÚTIL

Texto escrito por Mário Henrique da Luz do Prado
 
Um castelo, uma roupa de grife, uma cadeira real.
E começam as estrofes, num timbre já conhecido, com a batida que hoje domina a música nacional – ao lado do sertanejo.
Fala de Deus, que lhe serve de escudo.
Pede que a inimiga lata mais alto, pois “daqui eu não escuto”.
Então vem o famoso “Beijinho no ombro”, para o “recalque passar longe”.
Em resumo, é uma mensagem às outras.
E cada um que quiser ser autor desta mensagem, é só copiar e colar num mural da rede social.
Imagine um cenário onde todos acham que são invejados, e ninguém sente inveja, e a sociedade toda passa a ser um videoclipe da Valesca Popozuda.

I. Que é inveja?
No mundo que se espelha nas redes sociais, inveja é tudo que os outros sentem.
No mundo de quem nasceu, cresceu e desenvolveu bom-senso, inveja é desgosto provocado pela felicidade ou prosperidade de outro.

II. Porque desejar que o outro tenha inveja?
A autoafirmação é natural, disso sabemos todos.
Até mesmo o excesso de fotos (um minuto de silêncio pelo mundo e seu excesso de imagens) tem uma função.
Mas desejar que todos tenham inveja, e crer que este é o único modo de alcançar a felicidade, é normal?

III. Se todos afirmam serem invejados, e ninguém afirma invejar, como dizer a todos que isto é loucura?
Immanuel Kant, filosofo prussiano, estabeleceu toda a moral em três imperativos:
Imperativo Categórico: Age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal.
Imperativo Universal: Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza.
Imperativo Prático: Age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio.¹
São resumidamente, dois imperativos:
(a) A humanidade é fim, e não meio.
(b) Age como se tua ação devesse tornar-se lei universal da natureza.
Aí está.
A minha ação, e a minha regra, para ser válida, deve ser uma lei universal.
As regras, por conceito, devem ser gerais e impessoais, e seria antinatural excluir a aplicação de uma regra para determinado indivíduo, com exceção dos casos em que esta diferenciação decorre de uma lei natural.
Mas, de tudo o que aqui até agora foi dito, talvez a maior loucura seja ter de recorrer à filosofia de Kant para explicar que a inveja não pode ser sentida por todos e por ninguém só porque eu quero.

IV. Porque a cultura da inveja é uma regra?
Falar em homogeneidade ao se referir à sociedade é um desatino, sabemos.
Mas não se pode ignorar a existência das predominâncias.
A música "beijinho no ombro" é uma representação muito fiel de uma cultura geral imediatista e visual: todo o valor está naquilo que é visível, preferencialmente de forma imediata.
Na cultura da inveja, menos é mais. Menos valor intrínseco é mais representação.
Ninguém que deseja causar inveja quer ser culto, por exemplo, pois isto não é facilmente percebível por TODOS. 
O conceito de cultura, ainda, que é relativo (aqui surge um problema, que é o enfrentamento entre o imperialismo cultural e o relativismo pós-modernista, duas formas horrorosas de se entender a cultura), não seria perceptível por todos, somente por aqueles que sejam, também, cultos.
O mesmo não ocorre, por exemplo, com a beleza física, ou com bens materiais.
O valor de um corpo bonito é expresso única, exclusiva, fácil e somente por uma fotografia nas redes sociais. 
Basta um clique.
O carro novo é visto por todos, e ninguém saberá o tamanho do endividamento que se gerou com a sua compra.
Aí nasce o imediatismo.
E quem alimenta este comportamento? 
A sociedade de consumo.
Pois tudo que é visível por imagens, é adquirível mediante pagamento pecuniário.
E tudo que é adquirível com pecúnia pode ser objeto de mercado.
Ou alguém já viu propaganda de livros no intervalo do horário nobre?
Ou seja: a idiotia e a apatia são males autótrofos – produzem seu próprio alimento, que é a cultura de massa.
A cultura de massa é a idiotia, e alimenta a idiotia.
É um ser e servir contemporâneo numa coisa só.

V. E quem poderá nos salvar?
A rebeldia punk já foi incorporada pelo mercado de consumo – já estão nas lojas de departamentos as camisas de bandas de Rock para quem tiver entre 13 e 18 anos e quer irritar seus genitores.
Logo, rebelar-se é um ato não óbvio de demonstração de indiferença com esta cultura inútil e vazia, que se materializa na voz de quem manda alguém "latir mais alto" na estrofe seguinte à que fala de Deus.
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1 Imperativo Categórico, José Roberto Goldim (clique aqui).
Mário Henrique da Luz do Prado é advogado em Bauru-SP

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