quinta-feira, 28 de novembro de 2019

AH, O RACISMO!



A Velha Maurícia: meio negra, meio índia. 
Uma antepassada fascinante, um antigo retrato de família e uma reflexão sobre o racismo no Brasil.

Em A Poética do Espaço, Gaston Bachelard descreve a polaridade vertical de uma casa, entre sótão e porão.
Na solidão do primeiro, habitam os sonhos, a memória, a imaginação. 
Na profundeza do segundo, a noite é permanente. 
Na casa da minha família, para onde me levaram depois que a maternidade me liberou e vivi até os 24 anos, não havia sótão, mas, nos fundos, restava um velho casebre de madeira. Chamávamos de quartinho. 
Provavelmente, deduzo, porque foi construído para servir de dormitório para a tia Nena - que era tia, na verdade, da minha avó materna.
Neste sótão deslocado, erguido sobre pedras enfiadas na terra, em tardes alongadas nos anos 1970, montei a árvore genealógica de parte da minha família. 
Contribuíram bastante as expedições arqueológicas rumo às caixas de madeira que abrigavam a memória ancestral. Louças intactas que minha mãe ganhou no casamento, partituras da escola de música da minha avó e fotografias. Uma infinidade delas, miscelânea de flagrantes sépia ou preto e branco.
Durante uma destas incursões, encontrei um retrato da Velha Maurícia - sim, velha com maiúscula porque, na minha cabeça, esse é o nome dela. 
Mais do que uma matriarca, trata-se de uma lenda na família. Meio negra, meio índia - uma híbrida, como todos somos. Forte e destemida, viveu na região do município de Bagé, fronteira com o Uruguai, na virada do século 19 para o 20. Cresci ouvindo que era mensageira em conflitos que ocorriam nas cercanias. 
Analfabeta, antes de partir para entregar os textos, mandava os filhos lerem. 
Vai que, na frase final, constasse ordem para matá-la. 
Usava longos vestidos e saias que arrastavam no chão. Na hora das refeições, servia os filhos à mesa. Depois, pegava sua comida e acomodava-se próxima à parede, onde comia agachada, como seus antepassados faziam.
Aos poucos, fui juntando as fotos e os fios da urdidura familiar e entendi por que me achavam branquinho demais. Descendo de um pai português cuja mãe tinha olhos azuis. Uma empregada de ascendência alemã dizia que eu era filho dela - na brincadeira, tentava explicar tanta brancura em casa de morenos. 
Na farmácia, meus cabelos claros - que depois escureceram - motivavam comparações ao risonho e loiro bebê que estampava o cartaz da Johnson. 
E bem depois, quando comecei a pendurar nas paredes do meu quarto as fotos dos ancestrais, alguém questionou se eu não me incomodaria de colocar o retrato da Velha Maurícia. Por quê? 
"Porque ela é bem escura", responderam.

***
Negros costumam se organizar para discutir temas relativos à própria condição. Mulheres estão à frente do movimento feminista. Gays e lésbicas estruturam grupos para combater a homofobia e a lesbofobia. Transexuais percebem que parte do movimento LGBT não prioriza suas questões, por isso, assumem as rédeas de sua luta. E esta lista, infelizmente, poderia aumentar. 
Não há estranhamento em verificar o papel em que se encontram os sujeitos apontados nesses processos. 
É do oprimido, discriminado, agredido, desprezado, segregado, enfim, é da pessoa desrespeitada que deve partir a indignação, a conscientização, a luta. 
Por outro lado, o reconhecimento de que determinados grupos são desrespeitados e vitimados não deve partir apenas de quem sofre a violência. 
Para que os direitos humanos deixem de inspirar chacota ou menosprezo, para que qualquer pessoa tenha reconhecido o direito a uma vida digna, é indispensável que mais sujeitos se envolvam no processo de combate ao ódio, e não apenas as vítimas.
Vejamos a questão dos negros, em particular. 
Embora diariamente ocorram casos de racismo - afinal, o Brasil é um país racista -, predomina o entendimento de que não se deve proferir ofensas motivadas pela cor da pele de uma pessoa. Tanto que, se ocorre, na sequência surge repúdio. 
Uma pessoa sabe que não pode ser racista, no entanto, este conhecimento não garante mudança de condutas, e o racismo segue uma chaga nacional.
Não tenham dúvida: uma criança negra, nascida na periferia e que cumpre sua trajetória formativa em instituição pública terá menos oportunidades do que outra criança branca, nascida na mesma periferia, com trajetória similar - neste exemplo, não precisamos nem deslocar a criança branca para região central ou escola privada, pois o privilégio decorre da cor. 
Mais importante: não tenham nenhuma dúvida, de que ambas podem ser excelentes universitários e profissionais - e minha experiência como professor corrobora esta certeza. Claro que há diferenças. De repertório, por exemplo, de experiências. Mas ser negro, branco ou qualquer outra denominação arbitrada não é premissa para talento, inteligência, capacidade e caráter. Muito do que uma pessoa é e tem acesso, muito do que alguém passa na vida resulta das condições sociais e das oportunidades. Resulta também dos silenciamentos, das recusas, das interdições, do ódio.
O discurso da meritocracia é uma falácia preconceituosa. Deixar de reconhecer que negros têm menos possibilidades formais de ingressar na universidade, por exemplo, ou de receber melhores salários, revela um embrutecimento do olhar que beira à intransigência. E evocar a meritocracia, que se os negros estudassem mais ou se fossem esforçados teriam acesso, soa desrespeitoso. E por mais que seja urgente e fundamental que ocorra uma profunda qualificação do ensino desde os níveis iniciais, pregar isso e excluir a possibilidade de cotas é o mesmo que dizer a um jovem negro que ele seguirá tendo menos chances. Não se transforma a educação de um país de uma hora para outra. Portanto, enquanto isso se processa, o que resta às crianças e aos jovens negros? Eles seguirão sua trajetória distinta ao caminho dos brancos, até que os problemas estruturais do país, como a precariedade da educação, seja resolvido.
É preciso entender que o sistema de cotas é medida urgente, necessária e fundamental em um país onde o fim da escravidão acabou dando lastro ao racismo. Antes da abolição, tal pensamento era desnecessário, pois vigia a perspectiva da inferioridade dos negros. A iminência de rompimento dos grilhões deflagrou a importação de doutrinas racistas.
Quase 130 anos depois da Lei Áurea, há uma dívida histórica dos brasileiros em relação aos brasileiros negros, e a dívida é tão grande e complexa que se impõe a necessidade de medidas de exceção para estancar a perpetuação da desigualdade motivada por preconceito.

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Eu sou homem e branco. Não há como me sentir uma mulher negra, mas posso estar atento e sensível ao que ela diz sobre a própria condição e me solidarizar. É importante entender o lugar de fala alheio. O exercício de ver o outro, de perceber o diferente e de respeitar a diversidade é premissa fundamental para erradicar o preconceito.
A experiência humana é infinita. As possibilidades da existência não podem ser reduzidas a denominações e lógicas restritivas que contemplem poucos. 
Se houvesse condições iguais para negros e brancos, a política de cotas seria dispensável. Se não houvesse racismo, a capacidade de universitários cotistas não seria questionada. As ações afirmativas existem para enfrentar privilégios de determinado grupo, buscam transformar a realidade, mesmo que em escala reduzida. A escala, no entanto, não invalida a iniciativa, pois o ingresso e o acesso de pessoas excluídas evidenciam a possibilidade de outros arranjos que contrariem o histórico de segregação.
E, cada vez mais, me orgulharei de colocar na parede a fotografia da minha trisavó, a Velha Maurícia, meio negra, meio índia, em um país onde muitos brancos ainda se julgam melhores.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018, in @minhapelenegra.

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