Alzira Pacheco Lomba Kotona, cidadã do Vale do Ribeira
Junho 22, 2020.
Advogada, poetisa e defensora dos menos favorecidos, Alzira Pacheco Lomba Kotona marcou época no Vale do Ribeira. Nascida em 1º de agosto de 1935 no município de Glicério (SP), foi a oitava filha do casal José Pacheco Lomba e Manoela Reche Pacheco Lomba.
Alzira Pacheco, em 2004.
Em sua autobiografia, Alzira relembrou alguns fatos marcantes de sua vida, como a infância, tendo nascido, segundo lhe contaram, “em uma casa de pau a pique, no meio do futuro cafezal da Fazenda Águas Claras, à margem da Estrada de Ferro Noroeste.”
A menina Alzira aprendeu a ler antes do quatro anos de idade. Enquanto o pai lia o jornal “Diário de São Paulo”, a filha ficava “infernizando-o”. A leitura precoce desse jornal foi para ela o “envenenamento por chumbo que me dirigiu sempre para o jornalismo”, conforme ela escreveu mais tarde.
A sua família mudou-se para São Paulo em 1940. Ao sabor de “melhores e piores tempos econômicos”, Alzira, a partir dos cinco anos, estudou no Liceu Pasteur (onde aprendeu os rudimentos do Francês, que veio somar-se ao Português natal e ao Espanhol ancestral); na Escola Nossa Senhora do Rosário (das irmãs dominicanas); no Grupo Escolar Prof. Pedro Voss; no Colégio Benjamim Constant (da colônia alemã); no Ginásio Estadual Antônio Firmino de Proença, na Mooca; no Ginásio Estadual Brasílio Machado, na Vila Mariana (um dos primeiros cursos noturnos na escola pública); no Instituto de Educação Caetano de Campos (então ainda na Praça da República); no Colégio Estadual Presidente Roosevelt (na seção autônoma da rua Gabriel dos Santos), onde terminou o curso clássico, equivalente ao atual ensino médio.
Alzira começou a trabalhar aos treze anos, dando aulas particulares de Português e Francês, geralmente para alunos de classes mais adiantadas do que a sua. Depois, fez um pouco de tudo: lavou vidros em laboratório; fez a revisão do jornal do Partido Comunista do Brasil (PCdoB); trabalhou nas rádios Gazeta e Nove de Julho; foi secretária de empresa de construção civil e de escritório de advocacia; orientadora social do SESC, que deu a ela a oportunidade de conhecer o mar, trabalhando na Colônia de Férias em Bertioga (SP); fez estágio no “Diário de São Paulo”; foi secretária de redação da Editora Banas, onde obteve o seu registro de jornalista profissional; e redatora-chefe do “Diário do Comércio”.
Alzira em 1962, aos 27 anos; em 1968, aos 33 anos; e em 2004, aos 68 anos.
A ESTUDANTE
Em 9 de outubro de 1952, Alzira, juntamente com os alunos do Colégio Estadual Presidente Roosevelt, da rua Gabriel dos Santos, visitaram a redação do jornal “A Gazeta” para divulgarem a campanha que estavam realizando afim de angariar livros para a nova biblioteca daquela escola. A campanha foi levada a efeito de 8 a 15 de outubro, com o nome de “Semana do Livro”, e contou com o apoio de editoras, doações de particulares e bibliotecas em geral. O professor Renê Oliveira Barbosa, diretor do colégio, iniciou a campanha com uma conferência na Rádio Gazeta. A estudante Alzira entregou à redação um distintivo da campanha.
Em 13 de outubro de 1953, Alzira participou, como poetisa, do programa “Enciclopédia do Ar”, transmitido às segundas, quartas e sextas-feiras, às 18h, pela Rádio Gazeta, sob a patrocínio da Antarctica. Participaram os poetas Paulo Bonfim, Saulo Ramos, Eurícledes Formiga e Pablo Cantó, da Argentina, que declamaram versos no “Momento da Poesia”. Participaram, também, do programa Américo Bologna, Correa Júnior, a declamadora Neide Rodrigues, Luiz Carlos Ramos e Fernando Soares, supervisor do programa dedicado aos estudantes de São Paulo.
Continuando os seus estudos, Alzira prestou vestibular na tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, “as sonhadas Arcadas do Largo de São Francisco, de onde se dizia que saíam políticos, escritores, artistas e até advogados”, conforme registrou. De 1955 a 1959, estudou com muita dedicação, diplomando-se em 18 de maio de 1960.
Alzira se lembrava com saudade dos tempos da faculdade, em especial os dias e noites passados na Biblioteca Municipal de São Paulo (que mais tarde seria chamada de “Mário de Andrade”), à sombra da estátua de Minerva. Ali se reuniam os jovens intelectuais da época: Bento de Almeida Prado, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Maurício Tragtemberg, Carlos Henrique Escobar, Fernando Odriozola, Raulita Odriozola, Mário Bonomi e outros.
Ainda quando estudava na Faculdade de Direito, e depois de formada, Alzira trabalhou em várias atividades. De 1958 a 1959, foi orientadora social no SESC; de 1960 a 1963, trabalhou na Editora Banas, na área de jornalismo econômico; de 1964 a 1965, na Associação Comercial de São Paulo.
OS “DESAGREGACIONISTAS”
No final dos anos 1950 e início dos 1960, surgiu em São Paulo um movimento cultural promovido por jovens que não se adequavam, tampouco aceitavam os valores então vigentes. Eram os chamados “desagregacionistas”. Nesse movimento também estavam o futuro crítico literário Roberto Schwarz e o ator e diretor de teatro Jairo Arco.
Os “desagregacionistas” recusavam a “desonestidade dos meios de criação artística, da pseudocrítica, dos soi-disant [pretensos] poetas, das camarilhas literárias, dos donos de supermercados, da politicagem das letras.” Repeliam, ainda, “a tutela de uma cultura estrangeira e os pronunciamentos paternais dos papas em relação aos jovens”, e acusavam “a pobreza de nossa história literária, a senilidade dos medalhões, a facilidade das soluções propostas, a mediocridade estéril dos apadrinhados e padrinhos.”
Para esses jovens inquietos, como definiu o poeta Joel McLean Câmara, “o capitalismo, com seu espírito egocêntrico, e o marxismo, com seu sentido materialista, não correspondem aos anseios humanos de ordem absoluta e perfeição. Capitalismo e marxismo são apenas duas teses políticas. Duas teses, nada mais. Não estão com a verdade como proclamam e cometem crime de lesa-humanidade quando seduzem o homem para morrer sob suas bandeiras.”
Bradavam: “Unilateralismos não nos convém, principalmente unilateralismos políticos. E nosso século anda saturado deles: nazismo, fascismo, integralismo, comunismo... E dizemos: chega! Desta dimensão espiritual política, nós nos desagregamos.”
A revista “Manchete” (nº 414, de 26/3/1960), publicada no Rio de Janeiro, em matéria intitulada “O lema saiu de um verso: ´Nós somos o erro derradeiro de um deus em decadência´’, fazendo o mapeamento dos jovens poetas “desagregacionistas”, além daqueles que já tinham publicado livros de poesia (como Milton Marques, Helena Calil, entre jovens que estudaram na França, alguns na Sorbonne, arquitetos, desenhistas, pintores), também incluiu, equivocadamente, na relação, o nome da jovem poetisa Alzira Pacheco Lomba, então com 24 anos, recém-formada em Direito.
Na edição nº 416, de 9/4/1960, a revista publicou, na seção “O leitor em Manchete”, carta “extensa e bem escrita” de Alzira Pacheco protestando contra a inclusão indevida de seu nome na lista dos “desagregacionistas”:
“Se cometi algumas poemas, jamais, no entanto, pertenci a qualquer grupo de ´literatos´, fossem eles desagregacionistas ou não. Não poderia esperar ver meu nome envolvido com criminosos confessos, como o tal autor de ´Desagregação´, que se declara contrabandista, traficante de entorpecentes etc. [...] Conheço-os, é certo. Muitos, além de mim, os conhecem. Até mesmo o Sr. Sérgio Milliet [escritor e crítico literário], que fez a seleção e a crítica de seus versos para uma recente exposição de poesia... E quem ousaria incluir Sérgio Milliet entre tais desagregados? [...] Não me considero o erro de um Deus em decadência. Nosso Deus, o Deus dos que crêem e lutam, não decai nem erra.”
A PROFESSORA
Em 19 de janeiro de 1965, Alzira Pacheco mudou-se para Registro (SP), com a intenção de ficar por apenas três meses, mas acabou permanecendo pelo resto da vida. Em Registro, já se encontravam os pais e a irmã Rosália Pacheco Lomba Teixeira Nogueira, advogada e professora, vulto dos mais notáveis na cidade, que ali chegara em 1955.
Alzira fez exame de proficiência em Francês em 1968 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH), e em Espanhol pela Universidade de Salamanca, Espanha.
De 1969 a 1970, fez pós-graduação em Orientação Educativa na Universidade de Mogi das Cruzes.
Lecionou Francês na Escola Estadual “Plácido de Paula e Silva”, em Sete Barras (SP), e na Escola Estadual “Fábio Barreto”, em Registro (SP). Lecionou, também, no Ginásio Estadual de Sete Barras (depois chamado de Escola Estadual “Maria Santana de Almeida”); na Escola Estadual “Francisco Manoel”, em Registro; no CENE de Jacupiranga (depois “Capitão Bernardo Ferreira Machado”); e na Scelisul (atual Unisep), em Registro.
Como educadora de primeiro de segundo graus, Alzira trabalhou, no Estado de São Paulo, de 1965 a 1973, como professora de Francês e Português.
Em 1975, lecionou na Sociedade de Cultura e Educação do Litoral Sul (Scelisul), em Registro, no Curso de Pedagogia, na disciplina Medidas Educacionais.
Lecionou espanhol na Click Idiomas, de Pariquera-Açu, nos anos de 1999 a 2001.
A POETISA
Alzira Pacheco começou a escrever poemas aos seis anos de idade. A poesia sempre foi a sua companheira, “em todos os momentos e em todos os lugares”. Era a sua amiga “de todas as horas”, a “parceira inarredável”, “quase sempre amarga”, “como a vida que contemplamos, neste período escuro em que nos foi dado viver”, conforme registrou em suas memórias.
Em 1951, quando contava apenas 15 anos de idade, Alzira, já convicta de sua vocação literária, enviou para a conceituada revista “A Cigarra”, editada no Rio de Janeiro, então a Capital Federal, os contos “O luar sobre as pedras” e “Recordação”. Talvez por causa da pouca idade da autora, ou, quem sabe, devido ao mau humor do redator da revista, ele fez uma apreciação pouco lisonjeira dos contos: “Parecem mais bilhetes do que contos. Desclassificados”. Naturalmente, essa crítica não fez Alzira desistir de seu dom inato para a escrita.
A revista “Mundo Melhor” (nº 10, outubro de 1958), dirigida por Mário Carvalho de Jesus e Nelson Coutinho e orientada por Francisco Marins, publicou colaboração de Alzira Pacheco, junto com outros conhecidos jornalistas e escritores como Carlos de Queirós Teles, Luiz Roberto Salina Fortes, Carmen Anna Dias Prudente, Fernando Lemos, Tristão de Lima e outros.
Como primeira experiência no setor de livros, o Supermercado de Arte, do Rio de Janeiro, promoveu, no dia 13 de fevereiro de 1969, uma tarde de autógrafos reunindo oito escritores e poetas radicados em São Paulo. Alzira Pacheco autografou o seu segundo livro, “Sonegação de Ternura”, lançado em 1968.
Em 1970, organizada pelo poeta siciliano Salvator d´Anna, foi publicada na Itália a antologia “Poesia del Brasili d´Oggi”, trazendo 23 autores brasileiros. Alzira Pacheco foi incluída nessa antologia, ao lado de renomados poetas nacionais como Murilo Mendes, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Ledo Ivo, Múcio Leão, Jorge Medauar, Cassiano Ricardo, Eunice Arruda, Walmir Ayala, Odilo Costa Filho e outros.
Alzira Pacheco fez parte da Academia Eldoradense de Letras, fundada em 11 de fevereiro de 1978 pelo poeta João Albano Mendes da Silva (J. Mendes), sendo uma das primeiras acadêmicas, ao lado do oftalmologista e escritor Avelino Gomes da Silva (Avelsemog). Ambos os autores lançaram livros naquele ano: “O Vale da Esperança”, de Alzira, e “Contos”, de Avelino.
A ADVOGADA
Alzira Pacheco exerceu a advocacia na região do Vale do Ribeira no período de 1973 a 2006, atuando, em especial, na área criminal e de júri, principalmente pela Assistência Judiciária. Como advogada atuante, dedicou-se inteiramente à defesa das pessoas carentes da região.
Sobre o seu trabalho no Fórum de Registro, contam que, em certa ocasião, o juiz a interrompia, a todo momento, ora dizendo que o argumento da advogada não era pertinente à causa, ora que ela extrapolava os limites da defesa. Ponderada, a doutora Alzira lembrava ao juiz que aquele momento pertencia exclusivamente à defesa. Irritado, o juiz disse que iria prendê-la por desacato, ao que a advogada, serenamente, respondeu: “Eu é que vou prender Vossa Excelência em flagrante, por abuso de autoridade!”. Diante da seriedade do promotor e dos policiais ali presentes, o juiz comprovou que Alzira era um patrimônio da cidade e baixou o tom.
Em reconhecimento por seu destaque na área do Direito, a subsecção de Registro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) leva o nome de “Doutora Alzira Pacheco Lomba Kotona”.
A JORNALISTA
Alzira Pacheco trabalhou na revista econômica “Banas”, de São Paulo. Fez estágio no “Diário de São Paulo”. Foi redatora-chefe do jornal “Diário do Comércio”. Teve passagem também pelas rádios Gazeta e Nove de Julho.
No jornalismo do Vale do Ribeira e Baixada Santista, emprestou o seu talento para a “A Tribuna”, de Santos, “A Tribuna do Ribeira”, “Correio do Vale”, “Boletim da Aciar”. Foi redatora do “Caderno C”, editado em Jacupiranga (SP) pelo jornalista Carlos Ialongo.
A FAMÍLIA
Quando ainda era solteira, Alzira adotou uma menina de um ano de idade, Elisabeth, adotando, também, posteriormente, quando já viúva, o irmão, Orestes, quando ficou órfão, dando-lhes uma educação exemplar. Anos mais tarde, adotou outro menino recém-nascido, André Victor.
Em 23 de novembro de 1970, Alzira casou-se com Carlos Ferreira Kotona, sitiante em Registro. Nascido em Juquiá (SP) a 1º de novembro de 1940, filho do casal Miguel Kotona Jr. e Aurea Ferreira Kotona, Carlos era viúvo de Ana Gonzaga Kotona, mãe biológica de Elisabeth, Orestes e Carmen Helena (que foi adotada por Rosália Pacheco Lomba Teixeira Nogueira).
Carlos Kotonsa faleceu em 23 de janeiro de 1976, sendo sepultado no Cemitério da Lapa, em São Paulo. Conforme Alzira recordou, foram “sessenta e três meses de felicidade perfeita”.
O nome do pai de Alzira, José Pacheco Lomba, foi dado à escola de primeiro grau no bairro Arapongal, em Registro, e o de sua mãe, Manoela Reche Pacheco Lomba, à rua onde Alzira residiu por muitos anos.
A sua irmã, doutora Rosália Pacheco Lomba Teixeira Nogueira, recebeu o título de “Cidadã Registrense” em 30 de novembro de 1987.
CIDADÃ DO VALE DO RIBEIRA
Na década de 1970, Alzira Pacheco trabalhou na Promoção Social do município de Registro, em consórcio municipal, dedicando-se em seu trabalho de tornar conhecido o artesanato regional, realizando o cadastramento de artesãos das mais variadas modalidades e também promovendo feiras de artesanato.
Em 1988, candidatou-se ao cargo de vice-prefeita na chapa encabeçada pelo poeta Lauriano dos Santos.
Em 1997, a Câmara Municipal de Registro agraciou Alzira Pacheco Lomba Kotona com o título de “Cidadã Registrense”, em reconhecimento ao seu trabalho na cidade e à sua importância para a comunidade registrense.
Em 2000, candidatou-se, pelo PSB, ao cargo de vereador à Câmara de Registro, ficando como suplente.
Era jurada permanente nas festas de violeiros de 1º de maio, dedicado ao Dia do Trabalhador. Por várias ocasiões foi convidada para ser paraninfa nas escolas em que lecionou.
Destacando o seu imenso amor à cidade de Registro e ao Vale do Ribeira, a poetisa escreveu em suas memórias:
“Aqui recebi meus presentes de Deus: os três filhos que Ele me deu e a Justiça dos homens confirmou, pela adoção. Aqui pretendo passar o resto das horas que me restam, para partir como cheguei: ao rumor das águas claras. Sem levar bagagem, que não a trouxe quando cheguei, naquele frio agosto de 1935. Mas talvez deixando – entre alunos, colegas ou clientes – um rastro de amor. Porque a única coisa que aprendi nesta longa passagem foi o amor.”
Alzira Pacheco Lomba Kotona faleceu em 21 de julho de 2006, aos 70 anos, sendo o seu corpo enterrado no Cemitério da Lapa, em São Paulo, ao lado do esposo, no jazigo da família Pacheco Lomba. A região perdia a “Doutora Alzira”, cidadã do Vale do Ribeira.
O seu nome foi dado ao Conjunto Habitacional “Doutora Alzira Pacheco Lomba Kotona “ (Registro D-2).
O AUTOR
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br
(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).
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