É desafiador ser jornalista em um país onde a desigualdade social é minimizada por uma elite torpe.
Por Ucho Haddad/22 de fevereiro de 2023
(*) Ucho Haddad
Há alguns anos me sinto cansado de exercer o ofício de jornalista. Externei algumas vezes o desejo de aposentar a pena, pois fiz o que me cabia em defesa do Brasil e dos brasileiros. Fiz o que entendia como certo não para conquistar prêmios e ser reconhecido, mas para mostrar à população como funciona a política nacional em seus meandros e subterrâneos. Isso custou muito caro em termos financeiros, mais ainda em relação às renúncias que fiz, às ameaças que eu e minha família sofremos.
Fazer jornalismo político no Brasil é tarefa árdua e para poucos, principalmente quando tomamos a decisão de ser imparcial, mesmo que a opinião pública pense o contrário. Quando critiquei governos de esquerda fui chamado de fascista, quando critiquei governo de direita fui chamado de comunista. Quando defendo os desassistidos também sou chamado de comunista. A turba insana foi além e acusou-me de contar com o financiamento, vejam só, do bilionário George Soros, ninguém menos. Diante de tamanho absurdo, pedi aos detratores não apenas provas, mas o telefone de Soros para que pudesse cobrar aquilo que dizem ter recebido.
Por diversas vezes afirmei, agora repito, que não faço jornalismo de encomenda, não tenho político de estimação nem tergiverso diante dos fatos. Faço jornalismo e ponto final. Pouco importa quem está no poder, muito menos as consequências daquilo que escrevo, sempre com responsabilidade e pautado pela verdade dos fatos. Se meu texto incomoda, lamento!
A tragédia que se abateu sobre a cidade de São Sebastião, no litoral paulista, e outras cidades da região durante o feriado prolongado de Carnaval mostrou mais uma vez como a grande imprensa é cheia de dedos para retratar a verdade. Notícia o fato de maneira pontual, sem ir a fundo nos motivos históricos da tragédia.
A elite brasileira é asquerosa e preconceituosa, por isso tenho sérias dificuldades de me relacionar com seus representantes. A elite dessa barafunda chamada Brasil existe na primeira pessoa do singular, eu, na primeira do plural. Ou nós, ou nada feito.
Muitas matérias publicadas nos últimos dias ressaltaram mais uma vez – e de maneira equivocada – a suposta solidariedade do brasileiro. Escrevo “suposta” porque a tal solidariedade é sempre pontual, vem à tona apenas em momentos de crise extrema, como a que acomete os moradores de São Sebastião e cidades vizinhas. Na verdade, essa lampejante e oportunista solidariedade serve para que alguns batam no peito e bradem que são política e socialmente corretos, querem sair bem na foto.
Ninguém pensou em ser solidário com os moradores dos morros de São Sebastião antes da tragédia. Na verdade, quem frequenta as praias do Litoral Norte – seja como proprietário de imóvel, seja como turista – se serve daqueles que vivem pendurados em encostas que podem desabar a qualquer momento, como aconteceu na esteira de temporal inédito. Em outras palavras, têm olhos para o mar, mas não têm olhos para a desigualdade social que marca a região. Quem conhece o Litoral Norte sabe que tenho razão.
A elite é de tal forma obtusa, que alguns chegaram a culpar os moradores das encostas pela tragédia humanitária. Por questões óbvias não deixei por menos e parti para cima, rompendo uma disciplina monástica que adotei. Será que alguém mora em morros prestes a desabar por diversão ou por gostar de viver perigosamente?
Sob Jair Bolsonaro, o fugitivo, os recursos federais para evitar tragédias como a ocorrida no litoral de São Paulo caiu de mais de R$ 3 bilhões, em 2014, para R$ 1,1 bilhão, em 2021 – menor volume de recursos em 14 anos.
E há quem defenda o delinquente intelectual que agora faz concorrência para o Pateta, em Orlando, no estado norte-americano da Flórida.
Fato é que desta vez a tragédia ultrapassou as fronteiras da pobreza e alcançou a seara dos endinheirados, que se viram acuados diante de um cenário de devastação e mortes. De início alguns fretaram helicópteros para deixar rapidamente São Sebastião, ao preço de R$ 13 mil por voo entre a cidade litorânea e a capital paulista. Em questão de horas o valor do fretamento saltou para R$ 30 mil. Nesse caso a propagada solidariedade ficou para trás, à beira do caminho tomado pela lama.
Os primeiros voos de helicóptero que rumaram para São Sebastião poderiam ter levado material para atender as necessidades das vítimas da tragédia. Foi preciso noticiar o fato para que a solidariedade despertasse.
Nos últimos 50 anos fiz várias viagens ao Litoral Norte, período em que vi avançar de forma criminosa a especulação imobiliária, ao mesmo tempo em que o turismo predatório cresceu de maneira assustadora. A ganância do mercado imobiliário resultou em condomínios de luxo construídos no pé do morro, na encosta.
No caso dos tais condomínios, a minha opinião é semelhante a que externei por ocasião da tragédia da boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria. Os donos da boate sabiam que uma catástrofe poderia ocorrer a qualquer momento, mas avançaram o sinal. Os construtores dos condomínios também. Os frequentadores da casa noturna ignoraram uma lei da Física – dois corpos não ocupam o mesmo espaço – e adentraram em recinto abarrotado de gente. Na correria muitos morreram pisoteados. Os moradores dos citados condomínios sempre souberam que sob forte chuva qualquer morro pode vir abaixo.
Dois jornalistas do Estadão – Renata Cafardo e Tiago Queiroz – foram agredidos por moradores de um condomínio na praia de Maresias apenas porque produziam matéria sobre o estragos provocados pelo forte temporal que caiu sobre São Sebastião e vizinhança. Foram agredidos porque são jornalistas e, por razões óbvias, chamados de comunistas e esquerdistas. A elite é tão delinquente e incapaz que sequer consegue mudar o disco. A cantilena é sempre marcada pelo preconceito e pela intolerância.
Alguns oportunistas estão a elogiar a postura do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, por ter chegado com rapidez ao local da tragédia e ter somados esforços com o presidente Lula. Também elogiam o prefeito de São Sebastião, como se todos estivessem a fazer algo além das respectivas obrigações. Tarcísio e o prefeito Felipe Augusto receberam com dias de antecedência alertas sobre tempestades na região e consequentes desastres naturais. O governador deveria ter fechado as estradas que dão acesso ao Litoral Norte, o que teria evitado muitas mortes. O prefeito deveria ter avisado a população das áreas de risco, mas não o fez.
Outros oportunistas, movidos pela canalhice, estão aproveitando o calvário alheio para lucrar. Um litro de água mineral chegou a ser vendido por R$ 93. O alarife precisa, no mínimo, ser denunciado por crime contra a economia popular. Houve quem fizesse churrasco nos condomínios de luxo em meio à tragédia, como se o que aconteceu em São Sebastião nada representasse. Além disso, inflacionaram os preços dos alimentos, que escassearam na cidade por conta da interrupção do tráfego de veículos nas estradas.
A pandemia do novo coronavírus revelou a essência torpe de parte da população brasileira, que se recusou a tomar vacina porque fazia eco ao negacionismo de um genocida. Outra parte esqueceu rapidamente as duras lições da pandemia e voltou a viver à sombra do próprio egoísmo. Desde quando esse comportamento é solidário? A tragédia em São Sebastião mostrou o que sempre soube: a elite causa asco, provoca engulhos. Cansei, estou enojado!
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.
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