quarta-feira, 20 de agosto de 2014

DE JÔ SOARES, DO FILHO AUTISTA, DO HOMEM SÓ.

Capturaro
Foto do site Turismo Adaptado.


SEGUNDA-FEIRA, 7 DE JUNHO DE 2010
JÔ SOARES FALA DE SEU FILHO AUTISTA NA MATÉRIA: DECIFRA-ME OU TE DEVORO
Alecsandra Zapparoli

Descontração no apartamento de Higienópolis.
Ele ri com a mesma fluência com que fala seis idiomas. É inteligente, galanteador e muito perfumado. Quando passa de entrevistador a entrevistado, fica com a leveza do craque santista Robinho – nessa hora é possível jurar que ele não pesa 116 quilos. Adora falar dele, mas não sobre ele. Tem duas geladeiras na cozinha, 58 fotos e caricaturas suas no corredor do apartamento, não usa cueca e é capaz de, durante uma viagem ao exterior, comprar luvinhas para proteger as mãos de uma funcionária do programa que manipula diariamente pilhas de jornais. Bem-vindos ao show de José Eugênio Soares, humorista, ator, comediante, diretor, escritor, produtor, artista plástico – essas habilidades encabeçam seu curriculum vitae desta reportagem.
A rotina tem sido dura para o multimídia Jô Soares. Aos 65 anos, divide os ensaios da nova apresentação com três gravações semanais do talk-show global, com seis entrevistas em cada uma. Consegue ainda ler um livro por semana e assistir a um filme por dia, uma de suas grandes paixões. Solteiro atualmente (atenção, paparazzi, esta é quente: ele terminou o namoro com a atriz Mika Lins!), anda engavetando os mais de vinte convites para baladas que recebe por semana. Na verdade, menos por falta de companhia e mais por opção.
- "Não sou um recluso, mas adoro ficar em casa. Tenho um projetor com quadruplicador de linhas, duas bibliotecas..."
 Em breve, a necessidade de sair do apartamento de 600 metros quadrados no bairro de Higienópolis será ainda menor. O apresentador comprou o imóvel do andar de baixo e derrubou as paredes para transformá-lo no Espaço Cultural Jô Soares. Lá, pretende expor seus quadros (sim, ele também pinta) e convidar os amigos para jam sessions.
- "A ideia é um lugar para pequenos ensaios."
A amplitude e a iluminação do imóvel são fantásticas, com tubulação elétrica e de ar condicionado aparentes. Como está em obras, obviamente não tem o mesmo aconchego do apartamento do andar de cima, decorado logo no hall de entrada com a estátua de um músico negro – ela foi despachada em Paris, perdeu-se na Colômbia e chegou a São Paulo depois de um ano e meio. Na casa do apresentador tudo é assim, tem história. Do chapéu de bombeiro de uma vítima do World Trade Center (exposto no escritório) a uma tela do cultuado artista pop americano Roy Lichtenstein (exposta na sala). Os livros são um capítulo à parte. Ao todo, 3.600 exemplares. As obras de Fernando Pessoa, Gore Vidal, Dostoievski, Eça de Queiroz e outras tantas ficam ao lado das de sua autoria – O Xangô de Baker Street (incríveis 600.000 cópias vendidas no Brasil) e O Homem que Matou Getúlio Vargas (385.000). Seria criminoso terminar o parágrafo apartamento turbinado sem falar do invejável ofurô com televisão acoplada que ele tem no quarto, a menos de dez passos da cama.
Jô garante que usufruir todo esse conforto sozinho não chega a ser um problema. 
- "Tem uma diferença entre estar em casa só e estar em casa em solidão", afirma ele. "Você também pode estar em solidão acompanhado." 
Ex-consorte de belas mulheres, o apresentador volta a encarnar o driblador Robinho no campo amoroso. 
Discretíssimo, limita-se a dizer que foi casado duas vezes no papel. Por vinte anos com a atriz Theresa Austregésilo e outros catorze com a designer gráfica Flávia Soares. 
- "Como marido, ele é infantil, feminino, doce e delicado", derrete-se Flávia, na intimidade "Bitika". Começaram a sair quando ela tinha 20 anos e ele, 46. Romperam em 1998, mas ainda se falam diariamente. 
- "Fisicamente Jô nunca foi o protótipo dos namorados que eu tive. Ele subverte a gordura com muita sedução, sensualidade e... é muito bom de cama." 
Nesse quesito, Theresa, na intimidade "Nenê", concorda. "Ele sempre foi o máximo." 
Theresa só conquistou essa serenidade para falar do ex algum tempo após a separação. 
- "Eu não precisava nem preencher um cheque porque o Jô imitava minha assinatura", conta ela. "Do dia para a noite fiquei sem aquele homem genial, delicado, lindo, e só sobrou um medo enorme de viver." 
Desse casamento nasceu Rafael, 38 anos. Quando fala das habilidades do filho, Jô se emociona. Theresa também. Ele toca piano, faz programa de rádio em casa, fala inglês, aprendeu a ler sozinho aos 4 anos de idade. Tem o jeito de andar de bonequinho, o humor e a musicalidade do pai. Sofre do chamado autismo "de alto nível", como o personagem vivido por Dustin Hoffman em Rain Man. 
Rafael possui uma boa capacidade de comunicação e inteligência, mas tem dificuldades motoras e vive em uma espécie de mundo particular. 
- "Estávamos em uma loja de livros e o Rafinha separou vinte para levar", conta Jô. "Pedi que escolhesse alguns e ele me respondeu: 'Não quero nenhum. Escolher é perder sempre'." 
Jô lembra-se com desvelo de outras boas sacadas do filho, como quando disse durante uma partida do Fluminense que o grito de guerra das torcidas estava desafinado. 
- "Ele é genial." 
Outros filhos não aconteceram na vida do apresentador. Theresa chegou a engravidar de gêmeos depois de Rafael, mas a gestação não vingou. "O Rafinha é diferente. Mas hoje eu não queria ter um filho diferente dele."
A fala do apresentador também fica mais pausada quando se lembra dos pais, o corretor da bolsa de valores Orlando Heitor Soares e a dona-de-casa Mercedes. 
Filho único, estudou nos Estados Unidos e na Europa dos 12 aos 18 anos. Com uma reviravolta nos negócios do pai, voltou ao Brasil. "Do anexo do Copacabana Palace mudei para um quarto alugado na Prado Júnior e meus pais foram morar num apartamento emprestado", conta. A família superou bem a falência. "Meu pai brincava: 'Bom, meus credores já não me procuram mais porque quando eles me procuram eu peço mais dinheiro emprestado'." 
Foi nesse momento de crise, em 1958, que começou, praticamente por acaso, a carreira de Jô. Ele estudava para prestar Itamaraty e ainda freqüentava a piscina do Copa. Atraído pelas brincadeiras e pelos números inventados pelo menino rechonchudo, o dramaturgo Silveira Sampaio, já falecido, acabou apresentando-o a Adolfo Celi, na época marido de Tônia Carrero. 
Em seu primeiro programa, na TV Rio, contracenou com Paulo Autran. Daí para a frente, todo mundo conhece.
Jô diz que herdou da mãe o senso de humor extrovertido e do pai o senso de humor introvertido. 
O casal faleceu quando o apresentador tinha 30 anos. Primeiro a mãe, atropelada no Rio de Janeiro. Orlando morreu um ano depois. 
Uma história muito curiosa marca essa passagem. "Dez anos após a morte da mamãe, peguei um táxi no aeroporto. O motorista parou no meio do trajeto e começou a chorar", lembra. "Disse que ele era o taxista que a havia atropelado e que não conseguia dormir fazia dez anos, precisava do meu perdão. Ele não teve culpa de nada, e é claro que perdoei."
Generosidade, diga-se, é uma das qualidades mais marcantes de Jô. Uma fratura instável no braço esquerdo e uma prótese no direito, ele aponta como seus "defeitos". 
Com um ar meio reflexivo, enumera suas qualidades, que, segundo ele, equivalem aos defeitos. Ei-las:

• Generosidade: adora agradar aos conhecidos e não mede esforços para isso. Certa vez, deu a Willem van Weerelt, diretor de seu programa, um Rolex Submariner. Pouco tempo depois, o relógio foi roubado. Ao ver a frustração do amigo, não titubeou: presenteou-o com outro igual. Quando namorava sua segunda mulher, Flávia, resolveu fazer uma surpresa de aniversário. Embrulhou um Escort novinho e, quando ela apareceu na garagem, pôs Parabéns pra Você no rádio do carro e ainda levou seu copeiro para servir champanhe. "Generosidade talvez seja a descrição mais sintética quando se fala do Jô", diz Flávia. "Mimar as pessoas faz parte de sua personalidade." Em outra ocasião, durante uma viagem a Nova York em que compromissos fizeram os dois se desencontrarem várias vezes, ele encheu o apartamento com livros e catálogos, duas paixões da ex-mulher. "Pela sala, havia caminhos feitos de catálogos, que levavam a fotos, bilhetinhos e outras gracinhas", lembra.

• Preguiça: nada de falar com Jô antes do meio-dia. Ele detesta acordar cedo e, mesmo com tantas atividades na agenda lotada, confessa que às vezes é tomado por uma preguiça brutal. "Mas ela tem seu lado positivo", diz. "Impulsiona-me a fazer coisas, a produzir."

• Gula: "Vício é diferente de hábito", costuma dizer. "Tenho o hábito de fumar charutos, mas sou viciado em comida." Principalmente em churrasquinho grego, maionese, bolacha e uma receita aprendida nos tempos de criança na Suíça: pão quentinho recheado com muita manteiga e uma barrona de chocolate no meio.

• Vaidade: incomodado com uma "saia" de gordura instalada abaixo do umbigo, decidiu recentemente fazer plástica. Retirou 7 quilos no total, eliminando também uma parte da papada. "Digamos que Jô tem uma auto-estima magnífica", brinca Flávia. "E não aceita críticas muito bem. Várias vezes brigamos porque eu, em nosso relacionamento, assumi o papel de regularizar o ego dele – que é, aliás, proporcional a seu tamanho."

• Perfeccionismo: nada tira mais Jô Soares do sério do que descaso e falta de profissionalismo e de pontualidade. Por mais atarefado que esteja, dificilmente se esquece de um assunto a ser resolvido. Em seu novo show, por exemplo, usa no palco apenas uma cadeira com rodinhas. Mandou fazer outras três extras por precaução. Se precisa resolver algum problema, não hesita em ligar às 3 da manhã para sua empresária, Claudia Colossi. Fiel escudeira há dezesseis anos (e filha do antigo empresário de Jô, Roberto Colossi), ela mantém em casa uma linha telefônica apenas para receber chamadas do patrão. "Ele não deixa nada para depois", diz. "É difícil se atrasar para um compromisso. Pode até ficar calado no meio de uma reunião, mas com certeza está prestando atenção aos mínimos detalhes."


Da sala especialmente separada para guardar os presentes que ganha dos convidados às piadas que contará na TV, nada escapa ao olhar de Jô também em seu talk-show na Globo. 
O apresentador é uma das personalidades mais paparicadas da emissora, que lhe paga por mês um salário em torno de 800.000 reais. 
Só a equipe do Programa do Jô conta com cinquenta pessoas, entre as quais 33 técnicos para controlar do telão à afinação do piano. Responsável por atrair grandes anunciantes, o talk-show recebeu elogios até do The New York Times. 
Segundo uma reportagem do jornal americano, ele é "o apresentador do programa de entrevistas mais importante do Brasil, mas esse formato jamais foi o suficiente para conter um talento tão grande quanto seu tamanho". 
São 8.453 entrevistas no currículo. 
"Como ator comediante, Jô foi uma das figuras mais geniais da história da televisão brasileira", afirma o crítico Gabriel Priolli. "Mas vira e mexe expõe o público ao constrangimento quando quer mostrar mais conhecimento que seus entrevistados, transformando o bate-papo num duelo ridículo." Seja lá como for, o fato é que o apresentador consegue, mesmo depois de mais de uma década, atrair diariamente 1,2 milhão de telespectadores só na Grande São Paulo.
O chavão de que humorista é sisudo na vida pessoal desaba no caso de Jô Soares. Como se disse no começo, ele ri com a mesma fluência com que fala seis idiomas. É divertido, goza a si mesmo, tem ótimas tiradas – e o melhor: sem querer fazer graça o tempo todo. 
O sorriso fácil, no entanto, disfarça o olhar enigmático. "Ele se escondeu demais. O Zezinho foi encolhendo e o artista Jô, cheio de expectativas, tomando conta dele", diz Theresa. "Eu costumava brincar que não é à toa que ele tem tantas camadas de gordura." 
O que ele respondia nessas horas? "Decifra-me que eu te devoro."

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