Hoje é o aniversário do grande escritor, biógrafo, roteirista de cinema, tradutor e jornalista brasileiro, nascido em Araraquara, Ignácio de Loyola Brandão.
Aos 78 anos de idade, possui um valioso cabedal de atividades literárias, um orgulho nacional.
Um dia, ele escreveu que "a dor do outro é do outro, não pode penetrar em você, te algemar".
Embora muito triste, é uma certeza com a qual também concordo.
Veja, a seguir, uma crônica macabra escrita por ele, intitulada "O Homem que viu o Lagarto Comer Seu Filho".
É coisa de doido, arrepiante:
Era uma noite de terça-feira, e eles viam televisão deitados na cama.
Quase uma da manhã, estava quente.
Ele levantou-se para tomar água.
A casa silenciosa, moravam num bairro tranqüilo. Não havia ruídos, poucos carros.
Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu entrar.
Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino mais velho, de três anos e meio. Era semelhante a um lagarto e, na penumbra, pareceu verde.
Paralisado, não sabia se devia entrar e tentar assustar o animal, para que ele largasse a criança. Ou se devia recuar e pedir auxílio.
Ele não sabia a força do bicho, só adivinhava que devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. E meio míope, ainda por cima.
Se acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de animal era. Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar o menino.
Ele tinha a impressão de que as duas pernas já tinham sido comidas, porque os lençóis estavam empapados de sangue. E a calça do pijama estava estraçalhada sob as garras horrendas do bicho repulsivo.
Como é que uma coisa assim tinha entrado pela casa adentro? Bem que ele avisava a mulher para trancar portas. Ela esquecia, nunca usava o pega ladrão. Qualquer dia, em vez de um bicho, haveria um homem roubando tudo, a televisão colorida, o liquidificador, as coleções de livros com capas douradas, os abajures feitos com asas de borboletas, tão preciosos.
Pensou em verificar as portas, se estavam trancadas. Porém, percebeu um movimento no animal, como se ele tentasse subir para a cama. Talvez tivesse comido mais um pedaço do menino. Precisava intervir.
Como?
Dando tapinhas nas costas do lagarto — não lagarto?
Não tinha antas em casa e o cunhado sempre dizia que era coisa necessária. Nunca se sabia o que ia acontecer. Ali estava a prova.
Queria ver a cara do cunhado, quando contasse. Não ia acreditar e ainda apostaria duas cervejas como tal animal não existia.
Pode um lagartão entrar em casa através de portas fechadas e comer crianças?
Olhou bem.
Comer crianças não era normal, nem certo. Devia ser uma visão alucinada qualquer.
Não era. O bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho e o funcionário teve um instante de ternura ao pensar naqueles braços que o abraçavam tanto, quando chegava do emprego à noite.
Uma faca de cozinha poderia ser útil? Mas quanto o bicho o deixaria se aproximar, sem perigo para ele, o homem?
Tinha de impedir o lagarto de chegar à cabeça. Ao menos isso precisava salvar.
Não conseguia dar um passo, sentia-se pregado à porta. Preocupava-se. Todavia não se sentia culpado. Era uma situação nova para ele. E apavorante.
Como reagir diante de coisas novas e apavorantes?
Não sabia.
Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama vazia, as roupas manchadas de sangue. Pensaria em sequestro ou coisas assim que lia nos jornais.
Sequestro o intrigaria, uma vez que ganhava pouco mais de dois salários mínimos e não tinha acertado na loteria esportiva. Era apenas um funcionário dos correios que entregava cartas o dia todo e por isso tinha varizes nas pernas.
Se gritasse, o lagarto iria embora?
Continuou pensando nas coisas que podia fazer, até que a mulher chamou, uma, duas vezes. Depois ela gritou e ele recuou, sempre atento para saber quanto o bicho tinha comido do filho. À medida que recuou, perdeu a visão do quarto.
Sentindo-se aliviado, pelo que não via.
A mulher chamava e ele pensou: o menino não chorou, não deve ter sofrido.
Voltou ao quarto ainda com esperança de salvá-lo pela manhã e decidiu nada dizer à mulher. Apagaram a luz, ele se ajeitou, cochilou.
Acordou sentindo um cheiro ruim e quando abriu os olhos viu sobre seu peito a pata, parecida com a do lagarto.
Paralisado, não sabia se devia tentar assustar o animal, ou tentar sair da cama e pedir auxílio.
Pelo peso da pata, o bicho devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário.
Aí se lembrou que tinha dois sacos de cartas a entregar, era época de Natal e havia muitos cartões das pessoas para outras pessoas dizendo que estava tudo bem, felicidades.
Tinha que tirar este bicho de cima.
Não, hoje não haveria entregas.
Nem amanhã, por muito tempo.
O lagarto estava com metade de sua perna dentro da boca.
OBS: Parte integrante
do livro "Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão", uma seleção de Deonísio da Silva, pela Global Editora/ 1993.
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