JANGADA TRISTE
Ao longe, mui longe, no horizonte,
além, muito além daquele monte,
como ave que voa desdenhada,
flutua tristemente uma jangada.
Nos zangados soluços do oceano,
quase desaparece o canto humano
de quem no mar e céu inda confia
porque em terra tudo lhe é melancolia.
Isso de terra firme e mar traiçoeiro
nem sempre é certo para o jangadeiro
mais preso ao fiel sal que à incerta areia.
Mistura ao grande azul as suas mágoas
e encontra no vaivém das verdes águas
consolo às negras dores cá da terra.
Gilberto Freyre, in
Talvez Poesia.
O VELHO
De joelhos
De partida
Carrega com certeza
Todo o peso
Da sua vida
Então eu lhe pergunto pelo amor
A vida inteira, diz que se guardou
Do carnaval, da brincadeira
Que ele não brincou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
Só a caminhada
Longa, pra nenhum lugar.
O velho de partida
Deixa a vida
Sem saudades
Sem dívidas, sem saldo
Sem rival
Ou amizade
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me diz que sempre se escondeu
Não se comprometeu
Nem nunca se entregou
E diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
E eu vejo a triste estrada
Onde um dia eu vou parar .
O velho vai-se agora
Vai-se embora
Sem bagagem
Não se sabe pra que veio
Foi passeio
Foi Passagem
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me é franco
Mostra um verso manco
De um caderno em branco
Que já se fechou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Não
Foi tudo escrito em vão
E eu lhe peço perdão
Mas não vou lastimar
Chico Buarque
LENDA DA FERRADURA
Quando ainda obscuro e desconhecido
Nosso Senhor andava na terra
e muitos discípulos o seguiam
que raras vezes o compreendiam,
amava doutrinar as massas
nas ruas amplas e nas praças,
pois à face dos céus a gente
fala melhor e mais livremente
Ali dos seus divinos lábios
fluíam os ensinamentos mais sábios;
pela parábola e pelo exemplo
faziam de cada mercado um templo.
Certa vez que, em paz e santidade,
com os seus chegava a uma cidade,
viu qualquer coisa luzir na estrada;
era um ferradura quebrada.
Disse a S.Pedro com brandura:
"Pedro, apanha essa ferradura!"
Porém S. Pedro no momento
Tinha ocupado o pensamento;
absorto em êxtase profundo,
sonhava-se o dominador do mundo,
rei, papa, ou tal que se pareça,
Aquilo enchia-lhe a cabeça!
E havia de dobrar a espinha
por uma coisa tão mesquinha!
Se fosse um cetro, uma coroa,
mas uma ferradura à-toa!...
E foi seguindo distraído ,
como se não tivesse ouvido.
Curvou-se Cristo com doçura
celeste, angélica,humilde;
ergueu do chão a ferradura.
E quando entraram na cidade
vendeu-a em casa de um ferreiro.
Comprou cerejas com o dinheiro,
guardando-as à sua maneira
na manga, à falta de algibeira.
Dali saíram por outra porta.
Fora a campanha estava morta;
nem flor nem a sombra; ao longe, ao perto,
era o silêncio, era o deserto,
era a desolação; ardia,
torrava, o sol do meio dia.
Que não valia em tal secura
um simples gole de água pura!
Nosso Senhor caminha à frente.
Deixa cair discretamente .
Furtivamente, uma cereja
que Pedro apanha, salvo seja,
com cabriolas de maluco.
A frutinha era mesmo o suco.
Outra cereja no caminho
atira o mestre de mansinho,
que Pedro apanha vorazmente.
E assim por diante, não uma vez somente
fê-lo o Senhor dobrar a espinha
mas tantas vezes quantas cerejas tinha.
Durou a cena um bom pedaço.
Por fim, disse o Senhor com ar prazenteiro:
Pedro se fosses mais ligeiro
não tinhas tido este cansaço.
Quem cedo e a tempo ao pouco não se obriga,
tarde por muito menos se afadiga.
Johann Wolfgang Von Goethe,
tradução de Alberto Ramos.



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