terça-feira, 18 de agosto de 2020

MUITO CEDO PRA LIMPAR BOSTA, LAVAR FRALDAS, DAR DE MAMAR...

Menina estuprada sofreu acosso de ultraconservadores até dentro de hospital. Rede de apoio de mulheres se montou para proteger criança violentada pelo tio. Aos 10 anos, ela fez aborto após ter seus dados expostos por extremistas da direita e enfrentar a pressão de ministra Damares, de pastores e até de médicos.
 
 
Os brinquedos de pelúcia que acompanharam a menina de dez anos na viagem até o Recife para a realização do aborto.
Marina Rossi/17 ago 2020.

Um sapo e uma girafa de pelúcia. Ao lado da avó e de uma assistente social, essas foram as companhias da garota de dez anos, que denunciou ser estuprada desde os seis por um tio, no voo que a levou de Vitória até o Recife no último domingo. De vestido estampado com flores e formas geométricas azuis, chinelo cor-de-rosa e bolsa a tiracolo da mesma cor, a criança, grávida em decorrência de mais um estupro cometido pelo tio, chegou ao aeroporto da capital pernambucana por volta das 15h. Ali, uma força-tarefa de apoio, formada majoritariamente por mulheres, havia sido montada e já estava de prontidão para auxiliar na peregrinação da menina para garantir a realização do aborto, que, no caso dela, está assegurado pela legislação.
 
 
 
Menina de 10 anos violentada fará aborto legal, sob alarde de conservadores à porta do hospital.
 
 
Estuprada desde os 6, grávida aos 10 anos e num limbo inexplicável à espera por um aborto legal.
  
A regra da Anvisa que prolonga o sofrimento de mulheres.
A peregrinação da criança em busca de atendimento médico não se limitou a uma distância física entre Estados. A garota sofreu pressões de grupos e médicos ultraconservadores até mesmo depois de o procedimento já ter sido feito. Já na cama do hospital do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, referência no atendimento de vítimas de abuso sexual, a garota foi assediada por um obstetra e uma pediatra. Eles entraram no hospital, se valendo da identidade profissional, para assediá-la. Mas tanto a garota, quanto sua responsável, a avó, estavam seguras da decisão de interromper aquela gravidez.
Em 2018, data dos dados mais recentes do Ministério da Saúde, 21.172 crianças com idade entre 10 e 14 anos deram à luz. Desse total, 15.851 eram meninas negras, assim como a garota. A menina violentada já estava decidida a não fazer parte desta estatística. A Justiça já havia autorizado, na sexta-feira, a realização do procedimento, atendendo ao pedido do Ministério Público do Espírito Santo e entendendo que a vontade da menina é soberana e que a lei permite a interrupção da gravidez em casos de estupro. Ainda assim, a menina teve de enfrentar um calvário, porque nenhum hospital do Espírito Santo quis realizar o procedimento, citando questões “técnicas”.
 


A recusa em realizar a interrupção da gravidez, aliada à grita dos grupos radicais iniciada nas redes sociais, levou a uma corrida contra o relógio. Rapidamente uma rede de mulheres formou um esquema para garantir que a criança chegasse com segurança no Recife. Na chegada ao aeroporto, um carro já esperava por ela, para levá-la diretamente ao Cisam, onde o procedimento seria realizado. O trajeto de cerca de meia hora foi feito com uma espécie de escolta por um segundo carro, devido ao temor de que grupos radicais também estivessem no aeroporto. Não foi o caso. Conseguiram chegar ao hospital, onde entraram pelos fundos. O medo de que houvesse alguém no aeroporto se concretizou na chegada ao Cisam, cuja porta da frente reunia algumas dúzias de militantes contrários ao aborto e incendiados pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
Os militantes e grupos religiosos chegaram até lá depois que a extremista de direita Sara Giromini havia divulgado não só o endereço do local para onde a garota seria levada, como também sua identidade, ferindo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O caso corre em sigilo judicial e nesta segunda a Justiça determinou que redes sociais apaguem publicações com os dados da garota.
Mas a menina conseguiu passar despercebida e foi recebida pela equipe médica do Cisam já no estacionamento. Foi levada para uma sala de espera onde uma TV transmitia a partida entre Vasco e São Paulo pelo Campeonato Brasileiro. A garota é apaixonada por futebol. Flamenguista, dividiu os comentários do jogo com a avó vascaína e a assistente social são-paulina. Do lado de fora, ativistas radicais contrários ao aborto gritavam “assassino” para o médico Olímpio Moraes Filho, diretor do Cisam. A instituição, mantida pela Universidade de Pernambuco (UPE), é referência estadual nesse tipo de procedimento e de acolhimento às vítimas de violência sexual.
A viagem não deve ter durado menos que seis horas, já que não há voo direto de Vitória para o Recife. A garota teve que sair do seu Estado depois de passar 36 horas no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), na capital capixaba, até que a instituição enfim anunciasse a recusa em realizar o procedimento. Rita Elizabeth Checon de Freitas Silva, superintendente do Hucam, disse nesta segunda-feira em entrevista coletiva que “foi uma decisão absolutamente técnica” e que “não teve viés ideológico, religioso e nenhuma interferência externa”.
 
EL PAÍS.

Um comentário:

Nacionalista disse...

Só abaixo do quinto mês de gravidez o aborto legal é cabível, mas neste caso específico devido ao fato de que já tinha pouco mais de cinco meses de gestação, não tinha mais a proteção da lei para ocorrer, portanto houve sim uma ilegalidade independentemente da questão moral e religiosa do fato.