sábado, 18 de outubro de 2014

"NÓS, FILHOS DE NÓS MESMOS"

As sociedades ocidentais estão cheias de velhos e de velhas (já sobre isto escrevi algures e há alguns anos, mas não me importo de voltar e quase repetir). E tendem cada vez mais para o estar. E por pirueta antropológica af
irmam a juventude 
como valor primeiro. Os filhos não aparecem, as sociedades envelhecem a olhos vistos e como que para esconjurar a nuvem negra que as cobre exaltam, lançam aos quatro ventos a imagem do que é jovem. Há aqui uma síndrome de Cronos invertida. Não, não comemos os nossos filhos, primeiro porque os não há, depois o que queremos mostrar é a nossa imagem como filhos de nós mesmos. A tentativa de rejuvenescer a todo o custo mais não é do que a manifestação serôdia e hipercomplexa de nos vermos, ou de os outros nos verem, como filhos, repito, de nós mesmos, o que é, no mínimo, bizarro. Compensamos, ou julgamos compensar através da imagem plastificada e irreal de uma construção do corpo fora do seu tempo aquilo que se não quis fazer como real. Os filhos que se não quiseram espelham-se, agora, de maneira distorcida com as plásticas que reconstroem, esticando-o, um corpo velho. E vivemos essa ilusão. E vende-se essa ilusão. E o que é mais dramático é que tudo se faz, não poucas vezes, acompanhado com a fanfarra, se bem que comedida e sóbria, “comme il faut”, dos bem-pensantes.
Mas olhemos, com olhos de ver, a solidão que a velhice traz. Olhemos para a solidão que se cola, como segunda pele, à velhice. As motivações para escrever são sempre múltiplas e difíceis de descortinar. Todavia, saber porque estou, hoje, a escrever sobre a velhice e muito particularmente sobre a solidão na e da velhice tem uma explicação comezinha. Veio-me à memória a visita que há tantos anos fiz - como o tempo passa, “aihmé” - a uma pessoa que muito estimava e que tinha perto, então, de 90 anos. Vivia sozinha. E estava só. Mais do que estar só, vivia rodeada de solidão. De uma solidão densa, forte, pegajosa, que me deixou, na altura, virado do avesso. Não é de meu natural deixar-me emocionar para lá do razoável. Porém, daquela vez parece que aconteceu. Não tanto pela circunstância mas sobretudo pela condição de vergonha que senti. O que me invadiu não foi a condição de solidão da pessoa que estava ali comigo a falar lucidamente. O que me envergonhou foram as minhas omissões. As minhas não idas, as minhas ausências, quando podia e devia ter ido. Não, não vale, é batota, querer neutralizar este sentimento com as batidas e sempre “politicamente correctas” justificações: “que não há tempo”; “esta vida frenética não nos deixa fazer aquilo que devíamos fazer”; “irei lá para a semana”, etc., etc. Sejamos honestos: tudo isto são balelas, formas cínicas e para mais quase infantis de nos querermos autojustificar. O tempo, aquele pedacinho de tempo, mínimo, ridiculamente mínimo, arranja-se sempre se tivermos para isso vontade. Depois há a partilha, não de uma qualquer “bondadezinha” que se deixou escorregar ali para satisfação da nossa boa consciência, há a partilha da fala, dos vincos e das rugas do tempo, do riso, da autonomia, do saber, da graça, das estórias que quem é velho sempre nos entrega em bandeja de prata. E nós, estúpidos, crentes unicamente no universo daquilo que é jovem, não temos a grandeza nem a nobreza de percebermos, de sequer percebermos, o que perdemos. Nem sequer percebemos, mesmo egoisticamente, que a solidão de que fugimos mais cedo ou mais tarde nos vai apanhar em qualquer esquina. Como é possível não sabermos crescer, jovial e “velhamente”?
Texto escrito por José de Faria Costa, professor da Universidade de Coimbra, 
publicado em 10 de abril de 2013 no Jornal I.

SENSACIONAL.

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