sábado, 14 de outubro de 2017

A TPM DE CÁRMEN FORA DE ÉPOCA


Ela certamente tinha receio do alarido das redes e da patrulha da imprensa neo-sanguinolenta; ele argumentou sem os limites do pudor.
Por: Reinaldo Azevedo
Publicada: 12/10/2017 - 6:40


Cármen Lúcia estava com medo. E por que devemos ter medo de Cármen Lúcia…
A presidente do Supremo, Cármen Lúcia, viveu ontem o seu “patético momento”, mas não no sentido de um belo poema de Cecília Meireles, que afirma: “Aqui está minha dor — este coral quebrado,/ sobrevivendo ao seu patético momento.” Poucos sabem, “patético” não tem o sentido de tolo, boboca, constrangedor, como usamos habitualmente. Designa, na verdade, o que provoca piedade, dor, tristeza. Mas também expressa “tragédia” e “terror”.
Então ficamos assim: vimos uma Cármen Lúcia diante da “tragédia” e do “terror”.
Nesta quarta, o STF votou, como sabemos, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para definir se medidas cautelares impostas pelo tribunal a parlamentares têm ou não de passar pela Casa Legislativa de onde ele é originário. 
Por 6 a 5, depois dos ajustes de votos, a resposta foi “sim”. Acontece, e este é o problema mais grave, que as ditas medidas não estão previstas em lugar nenhum da Carta. Elas estão estampadas no Artigo 319 do Código de Processo Penal e só podem ser aplicadas como alternativas à prisão preventiva, definida pelo Artigo 312 do mesmo código. 
Parlamentares estão sujeitos a ambos? 
Não! 
Estão abrigados pelo Artigo 53 da Constituição, que estabelece:
– só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável, que são os hediondos (Parágrafo 2º);
– ainda assim, Senado ou Câmara podem reverter a decisão (também Parágrafo 2º);
– essas mesmas Casas podem, inclusive, suspender qualquer processo (Parágrafos 3º, 4º e 5º).
Isso significa, então, que temos cidadãos de primeira e segunda linhas, como sustentou, num rasgo detestável de demagogia, o ministro Roberto Barroso? 
Uma ova! 
Ele estava apenas fazendo embaixadinha para a torcida, como é de seu estilo. 
Os senhores parlamentares podem, desde sempre, ter cassados os seus respectivos mandatos por quebra do decoro parlamentar. E isso já aconteceu muitas vezes.
Isso à parte, será que vigora a mais desbragada impunidade, inclusive na esfera penal, e nada acontece com o deputado ou senador flagrado cometendo crime? 
Isso é igualmente mentira. 
Ao declarar que parlamentares não estariam sujeitos a nenhuma sanção, Barroso enganou aqueles que o ouviam. Diz o Artigo 55 da Constituição:
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo 54;
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
§ 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

Fazendo a exata contabilidade dos votos, tivemos o seguinte:
– cinco ministros afirmaram que, ao arrepio da Constituição, o Supremo impõe a medida cautelar que quiser ao parlamentar, incluindo o afastamento do mandato, e tal decisão é auto-aplicável. Foram eles: Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Celso de Mello.
– cinco ministros consolidaram uma posição: as medidas cautelares podem ser aplicadas, em situação excepcionalíssima, mas têm de passar pelo crivo da Casa a que pertence o parlamentar. Na verdade, Alexandre de Moraes, que abriu a divergência, Gilmar Mendes e Marco Aurélio, inicialmente, recusavam as cautelares. Acabaram aderindo ao voto de Dias Toffoli, que as admite em situação excepcional, desde que submetidas ao Parlamento. Assim também votou Ricardo Lewandowski: 5 a 5

Coube a Cármen o voto de Minerva, e ela era o sinônimo do patético como “terror” e “tragédia”. 
Ela sabia que as redes sociais queriam sangue. 
Ela sabia que o maior grupo de comunicação também queria as artérias abertas dos políticos. 
Mas tinha consciência de que, no curso de seu mandato, um choque inédito poderia se dar entre Judiciário e Legislativo.
Decidiu, então, algo exótico: o afastamento haveria de ser submetido à Câmara ou ao Senado, mas não as demais medidas. Nova confusão. 
Como resumir o que queria aquela atrapalhada senhora? 
Celso de Mello veio em seu socorro: passará pelo crivo parlamentar toda medida cautelar que interferir no exercício pleno e regular do mandato. 
E por que a confusão de Cármen? 
É que ela estava com medo.
Seu voto era mais próximo do de Alexandre de Moraes, que abriu a divergência, do que do de Fachin, o relator. Mas ela insistia que votava com Fachin — não queria ficar de mal com a galera.
Instaurou-se a confusão, e o próprio Fachin, não sei se num rasgo de bom senso ou para assustá-la ainda mais, resumiu mais ou menos com estas palavras: 
----------------“Presidente, Vossa Excelência não está alinhada com o meu voto; são seis votos a cinco em favor da submissão da decisão à Casa Legislativa. Meu voto foi vencido”.
Mas ela insistia que não! 
Tinha medo de, ao QUASE cumprir a Constituição, em vez de rasgá-la, ser considerada uma pessoa leniente com a corrupção.
Assim, meus caros, vivemos dias em que cumprir a Constituição, garantindo aos parlamentares brasileiros prerrogativas que existem em todas as democracias do mundo, se confunde com tolerância com a corrupção.
Por 6 a 5, em suma, caberá ao Congresso referendar ou não as cautelares, como já lhe cabe fazer sobre a prisão preventiva. Tempos sombrios.
Como enfrentá-los? 
Ora, com coragem! 
E esta, visivelmente, faltou a Cármen na hora do seu “patético momento”. 
Convenham, aquilo não é pra ela!

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