domingo, 19 de março de 2023

"O GRUPO SHINDO REIMEI"

 

A misteriosa organização que matava japoneses no Brasil após a Segunda Guerra.

Aos 98 anos, Aiko Higuchi falou pela primeira vez sobre a morte do pai pelo Shindo Reimei – grupo extremista que negava que o Japão tinha perdido a guerra e matava quem falava a verdade.


Por BBC
26/11/2018 08h15 Atualizado há 4 anos.



A família Mizobe chegou ao Brasil em 1927 — Foto: Arquivo pessoal.
Notícias falsas, as chamadas fake news, estão em evidência nos últimos tempos, mas não são uma invenção moderna. Em 1946 elas já existiam – e já faziam vítimas no Brasil.
Após o fim da Segunda Guerra, um grupo extremista de imigrantes japoneses começou a espalhar o boato de que o Japão não havia perdido a guerra. Segundo eles, as notícias da rendição do imperador japonês em 1945 eram mentiras espalhadas pelos Aliados para minar o moral dos nipônicos.
A crença dos membros do grupo nacionalista, chamado Shindo Reimei, em sua própria versão da realidade eram tão fortes que eles assassinavam quem dissesse a verdade. As vítimas eram outros imigrantes que aceitavam o fato de que o Japão tinha perdido a guerra. Os extremistas os chamavam de "corações sujos" e acreditavam que eles deveriam ser eliminados em prol do amor à pátria.
Entre 1946 a 1947, pelo menos 23 membros da comunidade japonesa no Brasil foram assassinados por causa de seu compromisso com a verdade. E ao menos 147 foram feridos.



Aiko Higuchi, de 98 anos, é filha do primeiro imigrante morto pelo grupo Shindo Reimei — Foto: BBC

O pai de Aiko Higuchi foi um deles. Hoje, aos 98 anos, Aiko conversou com a BBC News Brasil sobre a morte de seu pai, o sofrimento da família e como, só 62 anos depois, ela finalmente ficou em paz em relação ao seu passado.

A vida na guerra
Em agosto de 1942, o Brasil entrou na Segunda Guerra ao lados dos Aliados – EUA, Reino Unido, França, União Soviética e China, entre outros – declarando guerra aos países do eixo: Alemanha, Itália e Japão.
Imigrantes desses países eram vistos com desconfiança. Foi uma época difícil para os 160 mil imigrantes japoneses – a maioria dos quais trabalhava na roça.
Aiko Higuchi, na época, uma agricultora de 23 anos, vivia em Bastos, no interior de São Paulo. Assim como muitas famílias de imigrantes, a sua tinha vindo para o Brasil em busca de uma vida melhor. Ela tinha sete anos.
"Papai deixou o filho mais velho no Japão porque achava que ia ficar 5, 6, 7 anos no Brasil e depois voltaria. A propaganda no Japão era a de que, no Brasil, você ganhava dinheiro fácil."
A realidade, no entanto, era bem diferente – e a situação da comunidade piorou muito após a entrada do Brasil na guerra.



Aiko estudou em escola só para imigrantes em Bastos, no interior de SP — Foto: Arquivo pessoal.
"Não vinham cartas (do Japão), né? Não pode ouvir rádio. Jornal japonês era proibido. A gente ficava no escuro, não sabia nada do que estava acontecendo", conta Aiko no sobradinho onde mora hoje no bairro de Santana, em São Paulo.
"Não pode falar japonês na rua. Se fala japonês, entra na cadeia"
Sentada no sofá da sala, ela relembra de detalhes do passado como se tivessem acontecido na semana passada.
Imigrantes não podiam dirigir e não podiam viajar. Escolas foram fechadas e empresas japoneses tiveram o capital confiscado.
As condições levaram ao surgimento de grupos que proviam apoio para a comunidade. Um deles, no entanto, acabou seguindo um caminho sombrio: o Shindo Reimei, fundado por Junji Kikawa, um ex-oficial do exército japonês.
Durante a guerra, Kikawa tentou ajudar os esforços de guerra japoneses pressionando os fazendeiros imigrantes para que parassem de produzir seda, que era usada para fazer paraquedas para os Aliados.
Ikuta Mizobe era gerente de uma cooperativa de agricultores e foi morto por falar a verdade.
Sua organização teve um papel central nos eventos trágicos dentro da comunidade após 15 de agosto de 1945, quando o imperador Hiroito anunciou a rendição do Japão.
A Segunda Guerra havia acabado, e o Japão perdido. Mas o Shindo Reimei começou a espalhar rumores na comunidade japonesa de que isso era uma grande mentira, inventada pelos Aliados para minar o ânimo dos japoneses.
"Mandavam mensagens falando que Japão tinha ganhado guerra e ia mandar navio para levar japonês de volta", conta Aiko.
"Eles eram, como diz? Fanáticos, né? Maioria eram pessoas com pouca educação em cidades com muitos japoneses: Bastos, Pompeia, Tupã."
"Aí que Shindo Reimei começou a fazer isso: falava que quem falasse que o Japão perdeu a guerra não era japonês. Era traidor."

Compromisso com a verdade
O Shindo Reimei tinha como alvo os membros mais proeminentes da comunidades, que eram mais integrados com os brasileiros e tinham mais acesso à informação.
O pai de Aiko, Ikuta Mizobe, era o gerente de uma cooperativa de agricultores em Bastos, onde a maioria da população era de imigrantes japoneses.
"Papai tinha que falar com os cooperados, ele era gerente de cooperativa. Tem que falar a verdade, né?", relembra Aiko.
"As pessoas vinham perguntar sobre a guerra, e ele falava o que sabia: que o Japão tenha perdido."
"Meu pai recebeu carta com duas palavras: pessoa e coração, cortado com uma faca. Minha mãe queimou a carta. Desde aquele dia eu não consegui mais dormir, toda noite ia pra cama pensando", diz ela.
Em 1946, Aiko estava casada, vivendo na cidade de Pompeia, com o marido e seu filho recém-nascido, Katsuo Higuchi.
Em 7 de março, uma caminhonete chegou a sua casa com uma mensagem. "Meu sogro escreveu bilhete falando que papai tinha machucado pé e mandaram me buscar."
"Mas quando eu cheguei na casa da minha mãe, o caixão estava em cima da mesa", diz dona Aiko, com a voz embargada.
Quando se emociona, dona Aiko mistura palavras em português com frases em japonês, sua língua materna.

Sangue e lágrimas
"Na noite anterior meu pai tinha saído para dar uma olhada nas orquídeas e fechar o portão, que meu irmão mais novo sempre deixava aberto", conta Aiko.
"Então ele foi ao banheiro, atrás da casa. Dois homens estavam escondidos. Quando ele tava fechando a porta, eles atiraram. Minha mãe ouviu os tiros e saiu, e viu dois homens fugindo no cavalo."
"Mamãe falou depois: nunca imaginou que tinha tanto sangue no corpo", diz Aiko, misturando japonês e português. "Ela limpou meio balde de sangue."
"Meu pai nunca fez nada de mal para ninguém, porque Deus não ajuda? Mas a gente sofreu por causa disso, viu?"
O pai de de Aiko foi a primeira vítima do terrorismo do Shindo Reimei. Eles usavam armas e, às vezes, katanas – as espadas tradicionais japonesas.
Membros do Shindo Reimei espalhavam que o Japão não havia perdido a guerra.
Anos depois, cerca de 380 imigrantes foram investigados por participarem do Shindo Reimei. Muitos foram condenados a penas entre 1 e 30 anos na prisão. Quatorze jovens foram condenados por homicídio. Mas, no fim dos anos 1950, muitos já estavam livres.
Alguns deles chegaram a ser entrevistados para um documentário. Tokuichi Hitaka, que matou um ex-coronel do exército japonês na cidade de São Paulo, explicou porque confessaram quando foram presos.
"Depois do assassinato, eu joguei a arma fora. Na delegacia, o delegado não acreditava que a gente estava confessando. Do ponto de vista dos brasileiros, nós éramos um bando de idiotas. Mas nós acreditávamos que estávamos fazendo nosso dever pela pátria. Nós assumimos o que fizemos, como verdadeiros japoneses", disse ele, no filme.
"Não teria tido nenhum propósito, o que fizemos, se tivéssemos negado."
Os dois homens que mataram o pai de Aiko também foram presos e condenados.

Ligação
Em 1957, Aiko mudou pra São Paulo, onde vive até hoje.
"Minha mãe guardou muita mágoa no coração a vida inteira, nunca falou muito sobre isso", conta Katsuo Higuchi, de 72 anos, filho mais velho de Aiko e o único que chegou a ser carregado pelo avô antes de seu assassinato.
A família Mizobe cultivava alimentos em Bastos, no interior de SP.
A paz só veio em 2008, quando, aos 88 anos, ela recebeu um telefonema de uma mulher que queria conversar sobre o assassinato de seu pai.
"Era filha do criminoso, que chamava Yamamamoto. Ela queria encontrar. Quando ela veio, num domingo, disse que o irmão dela não quis vir porque ficou com medo, achava que eu ia matar ele", conta Aiko, rindo. "Eu não tinha coragem de matar galinha! Jamais faria isso."
"Ela veio pedir desculpas, pelo que o pai dela tinha feito. Eu disse para ela: você tem não culpa. Eu não tenho raiva de você. Mas tenho muita raiva do seu pai."
"Eu só tinha um pai. E minha mãe ficou sozinha, sofrendo."
O reencontro foi bom para as duas mulheres. Depois de 62 anos, Aiko finalmente conseguiu falar abertamente sobre o que aconteceu e ficar em paz com o seu passado.

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