sábado, 27 de fevereiro de 2016

SENSAÇÕES IMORTAIS


TESTAMENTO

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...
 Alda Lara

AMAR COMO AS PLANTAS

Amar como amam os mamoeiros
separados de muros
mas pulsando raízes, folha e frutos
no silêncio dos quintais.

Amar como as plantas amam, ignoradas
pelos homens e os gatos.
Amor de êxtase, sem ferir
o sono dos ninhos
e o pudor dos outros animais.

Amar como os mamoeiros, angustiados
suando orvalho no amanhecer.
Fazer confidência, usando o código
fabuloso da abelha,
ou enviar convites para o sonho
no tráfego noturno das formigas.

Amar como amam as plantas, fecundar
no voo dos pássaros
e no vento cúmplice.

Amar como os mamoeiros amam
com esse amor casto e fundo,
amor de contida violência
com o silêncioso orgasmo
da criação do mundo.

Bueno de Rivera
 
  "LENDA DA FERRADURA"

Quando ainda obscuro e desconhecido
Nosso Senhor andava na terra
e muitos discípulos o seguiam
que raras vezes o compreendiam,
amava doutrinar as massas
nas ruas amplas e nas praças,
pois à face dos céus a gente
fala melhor e mais livremente
Ali dos seus divinos lábios
fluíam os ensinamentos mais sábios;
pela parábola e pelo exemplo
faziam de cada mercado um templo.

Certa vez que, em paz e santidade,
com os seus chegava a uma cidade,
viu qualquer coisa luzir na estrada;
era um ferradura quebrada.
Disse a S.Pedro com brandura:
"Pedro, apanha essa ferradura!"
Porém S. Pedro no momento
Tinha ocupado o pensamento;
absorto em êxtase profundo,
sonhava-se o dominador do mundo,
rei, papa, ou tal que se pareça,
Aquilo enchia-lhe a cabeça!
E havia de dobrar a espinha
por uma coisa tão mesquinha!
Se fosse um cetro, uma coroa,
mas uma ferradura à-toa!...
E foi seguindo distraído ,
como se não tivesse ouvido.

Curvou-se Cristo com doçura
celeste, angélica, humilde;
ergueu do chão a ferradura.
E quando entraram na cidade
vendeu-a em casa de um ferreiro.
Comprou cerejas com o dinheiro,
guardando-as à sua maneira
na manga, à falta de algibeira.

Dali saíram por outra porta.
Fora a campanha estava morta;
nem flor nem a sombra; ao longe, ao perto,
era o silêncio, era o deserto,
era a desolação; ardia,
torrava, o sol do meio dia.
Que não valia em tal secura
um simples gole de água pura!

Nosso Senhor caminha à frente.
Deixa cair discretamente,
Furtivamente, uma cereja
que Pedro apanha, salvo seja,
com cabriolas de maluco.
A frutinha era mesmo o suco.

Outra cereja no caminho
atira o mestre de mansinho,
que Pedro apanha vorazmente.
E assim por diante, não uma vez somente
fê-lo o Senhor dobrar a espinha
mas tantas vezes quantas cerejas tinha.

Durou a cena um bom pedaço.
Por fim, disse o Senhor com ar prazenteiro:
Pedro se fosses mais ligeiro
não tinhas tido este cansaço.
Quem cedo e a tempo ao pouco não se obriga,
tarde por muito menos se afadiga.

Johann Wolfgang Von Goethe
tradução de Alberto Ramos
 
"MANHÃ DE INVERNO"

Coroada de névoas, surge a aurora
Por detrás das montanhas do oriente;
Vê-se um resto de sono e de preguiça,
Nos olhos da fantástica indolente.

Névoas enchem de um lado e de outro os morros
Tristes como sinceras sepulturas,
Essas que têm por simples ornamento
Puras capelas, lágrimas mais puras.

A custo rompe o sol; a custo invade
O espaço todo branco; e a luz brilhante
Fulge através do espesso nevoeiro,
Como através de um véu fulge o diamante.

Vento frio, mas brando, agita as folhas
Das laranjeiras úmidas da chuva;
Erma de flores, curva a planta o colo,
E o chão recebe o pranto da viúva.

Gelo não cobre o dorso das montanhas,
Nem enche as folhas trêmulas a neve;
Galhardo moço, o inverno deste clima
Na verde palma a sua história escreve.

Pouco a pouco, dissipam-se no espaço
As névoas da manhã; já pelos montes
Vão subindo as que encheram todo o vale;
Já se vão descobrindo os horizontes.

Sobe de todo o pano; eis aparece
Da natureza o esplêndido cenário;
Tudo ali preparou co’os sábios olhos
A suprema ciência do empresário.

Canta a orquestra dos pássaros no mato
A sinfonia alpestre, — a voz serena
Acordo os ecos tímidos do vale;
E a divina comédia invade a cena.

Machado de Assis  
 
"CONTROLE REMOTO"

Amar o próximo
É folgado.
O difícil é se dar
Com o homem do lado.

Millôr Fernandes
 
"FOTO DE VIDA DE VIDRO"
 
Não deixes que termine o dia sem teres crescido um pouco,
sem teres sido feliz, sem teres aumentado os teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém retire o direito de te expressares,
que é quase um dever.
Não abandones as ânsias de fazer da tua vida algo extraordinário.
Não deixes de acreditar que as palavras e a poesia podem mudar o mundo.
Aconteça o que acontecer a nossa essência ficará intacta.
Somos seres cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Derruba-nos, ensina-nos, converte-nos em protagonistas de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua:
tu podes tocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque os sonhos tornam o homem livre.

Walt Whitman

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