Título original: Notre-Dame-des-fleurs - Editora Nova Fronteira - 332 páginas - Tradução de Newton Goldman - Apresentação de Jean-Paul Sartre (Lançamento no Brasil: 1983, edição esgotada).
Sem dúvida o mais maldito dos autores malditos, o escritor, poeta e romancista francês Jean Genet (1910-1986) elevou os marginais à categoria de heróis e transformou a "decadência em triunfo", principalmente neste livro que é o primeiro e o mais pessimista de toda a sua obra, refletindo a sua existência polêmica (talvez um pouco mais do que polêmica; marginal seria uma expressão mais apropriada).
Sem dúvida o mais maldito dos autores malditos, o escritor, poeta e romancista francês Jean Genet (1910-1986) elevou os marginais à categoria de heróis e transformou a "decadência em triunfo", principalmente neste livro que é o primeiro e o mais pessimista de toda a sua obra, refletindo a sua existência polêmica (talvez um pouco mais do que polêmica; marginal seria uma expressão mais apropriada).
Passando sucessivamente, ao longo da vida, pelas etapas de ladrão, mendigo, prostituto e presidiário, Genet seria certamente condenado à prisão perpétua por nove processos criminais, se não fosse um movimento criado por um grupo de intelectuais franceses liderado por Jean Cocteau.
Outro ilustre defensor foi Jean-Paul Sartre que considerava "Nossa Senhora das Flores" uma das três grandes obras “medievais” do século XX, ao lado de "Ulisses", de James Joyce e de “Duas Existências”, do dramaturgo Jean Girandoux. Jean-Paul Sartre escreveu a apresentação incluída nesta edição (originalmente publicada na obra "Saint Genet, comédien et martyr" - Editora Gallimard).
"Frequentemente considerada a obra-prima de Genet, Nossa Senhora das Flores foi totalmente escrito na solidão de uma cela de prisão. O excepcional valor da obra repousa em sua ambiguidade. A princípio parece ter apenas um tema, a Fatalidade: os personagens são os joguetes do destino. Porém logo descobrimos que esta impiedosa Providência não é senão a contrapartida de uma soberana — na verdade, divina — liberdade, a liberdade do autor. Nossa Senhora das Flores é o mais pessimista dos livros. Com diabólica diligência, conduz suas criaturas à decadência e à morte. Mas, mesmo assim, nas sua estranha linguagem, apresenta a decadência como um triunfo. Os marginais e os desgraçados que apresenta parecem ser heróis e fazer parte dos eleitos, e, o que é mais surpreendente ainda, o próprio livro é um ato do mais deslavado otimismo. As autoridades penitenciárias francesas, convencidas de que 'o trabalho é a liberdade', distribuem aos prisioneiros papel para que eles confeccionem sacolas: foi neste papel marrom que Genet escreveu, a lápis, Nossa Senhora das Flores. Um dia, enquanto os presos caminhavam pelo pátio, um guarda entrou na cela e reparou no manuscrito, confiscando-o para em seguida queimá-lo. No entanto, Genet recomeçou. Por quê? Para quem? Havia pouca possibilidade de manter seu trabalho até ser solto e menos ainda de editá-lo; e caso, contra todas essas probabilidades, ele vencesse as dificuldades, certamente o livro seria banido, confiscado e rasurado. Nada mais interessava a Genet exceto aquelas folhas de papel marrom que um fósforo poderia transformar em cinzas." (Págs. 7 e 8) - Apresentação de Jean-Paul Sartre. Não é um livro fácil, principalmente porque é o resultado verdadeiro da solidão em uma cela de prisão, da masturbação e do desespero de Jean Genet que cria suas fantasias homossexuais com base em personagens originados em sua própria experiência com travestis, ladrões e assassinos. Todos eles, inclusive Genet, são transgressores em uma sociedade que os rejeita e isola, mas nem sempre é coerente com seus próprios princípios de justiça e igualdade. O livro é portanto uma espécie de salvação para esses perdedores que acabam atingindo, no inferno da prisão, um insólito status de "santidade", por outro lado, ainda segundo a análise de Sartre, o livro representa "o diário de uma desintoxicação, de uma conversão: nele, Genet desintoxica-se de si mesmo e volta-se para o mundo exterior. Na verdade este livro é a própria desintoxicação; não se contenta em ser testemunha da cura, mas concretiza-a."
"O cheiro da prisão é um cheiro de urina, formol e de pintura. Em todas as cadeias da Europa eu o reconheci e reconheci que este cheiro seria enfim o cheiro do meu destino. Em cada nova escorregada procuro nas paredes os traços das minhas prisões anteriores, isto é, dos meus desesperos anteriores, remorsos, desejos que um outro detento tenha gravado para mim. Exploro a superfície das paredes em busca do traço fraternal de um amigo. Pois se nunca soube o que poderia ser exatamente a amizade, que vibrações a amizade de dois homens constroem em seus corações e talvez nas suas peles, na prisão eu às vezes anseio por uma amizade fraternal, mas sempre com um homem — da minha idade — que seja bonito, que tivesse completa confiança em mim e que seria o cúmplice dos meus amores, dos meus roubos, dos meus desejos criminosos; embora isto não me elucide sobre tal amizade, sobre o cheiro, de um e de outro dos meus amigos, de sua intimidade secreta, porque para a ocasião eu me torno um macho que sabe que realmente não é. Espero a revelação na parede de qualquer segredo terrível: morte, sobretudo, mortes de homens, ou traição de amizade, ou profanação de Mortos e dos quais eu seria a tumba resplandecente. Porém não encontrei jamais senão algumas raras palavras gravadas sobre o gesso com um alfinete, fórmulas de amor e de ódio, geralmente de resignação: 'Jojo da Bastilha ama sua mulher até a morte.' 'A mamãe, meu coração, às putas, meu caralho, ao carrasco, minha cabeça.' (Págs. 119 e 120) Nossa Senhora das Flores, publicado pela primeira vez em 1943, pode ser entendido como uma série de estímulos para as fantasias masturbatórias de Jean Genet na prisão. De fato, a própria invenção das personagens corresponde a este propósito. Um épico da masturbação, é como o autor considerava a sua obra maldita. Divina, um travesti que morre de tuberculose é a representação do próprio Genet e de seu desejo masoquista de ser dominado. As relações de Divina com seus amantes estão sempre relacionadas com a morte e a traição em uma inversão de códigos da moralidade convencional. Desumanizar é a melhor palavra para definir este processo de subversão de valores. Mignon, um dos amantes de Divina, considerava um prazer trair e vender os amigos, pois isso o desumanizava. "Desumanizar-me a mim mesmo é a minha mais fundamental tendência." (talvez uma fala para o próprio Jean Genet).
"Embora marginal, Mignon tinha um rosto luminoso. Era o belo macho, violento e doce, nascido para ser marginal, tão nobre de porte que parecia estar sempre nu, menos num gesto ridículo e (para mim) enternecedor: as costas arqueadas, sustentando-se primeiro num pé, depois no outro, para poder tirar suas calças e cuecas. Antes de nascer, Mignon foi batizado em segredo, isto é, beatificado também, praticamente canonizado, no ventre quente da mãe. Foi feito uma espécie de batismo branco que deveria, assim que ele morresse, enviá-lo ao limbo; em suma, uma destas cerimônias breves, mas misteriosas e extremamente dramáticas em sua densidade, suntuosas também, para as quais são convocados os Anjos, e nas quais os devotos da Divindade foram mobilizados, assim como a própria Divindade. Mignon tem consciência disso, mas não muito bem, o que quer dizer que durante sua vida, antes que lhe dissessem alto e em bom som, parece que alguém lhe cochichou estes segredos. E esse batismo secreto, com o qual começou sua vida e que se alonga por ela afora, doura sua vida à medida que ela se desenrola, a envolve numa cálida, tênue e ligeiramente luminosa auréola, erigindo para esta vida de cafetão um pedestal ornado de flores, como um caixão de uma virgem é decorado de hera trançada, um pedestal maciço e entretanto leve do alto do qual, desde os quinze anos, Mignon vem mijando na seguinte posição: pernas abertas, joelhos ligeiramente encurvados, e em jatos mais rígidos desde os dezoito anos." (Pág. 95) É, portanto, surpreendente constatar como uma obra criada com uma função sórdida e em um ambiente tão hostil, fadada à destruição ou censura, possa ter sobrevivido e se tornado um clássico da literatura do século XX, além de influência no trabalho de vários artistas contemporâneos, no teatro e até mesmo na música. Posso citar uma referência recente, "Linha M" de Patti Smith, que descreve uma viagem da autora e seu marido Fred Sonic smith, no final dos anos setenta, até Saint-Laurent-du-Maroni, uma cidade fronteiriça no noroeste da Guiana Francesa, para visitar as ruínas de uma colônia penal onde ficavam os criminosos antes de serem transferidos para a famosa Ilha do Diabo que foi posteriormente desativada, por ser considerada desumana. Em "Diário de um ladrão", Genet descreve este lugar como um território sagrado e Patti Smith recolhe um pouco de pedras e terra para presentear Genet ainda vivo na época.
"Frequentemente considerada a obra-prima de Genet, Nossa Senhora das Flores foi totalmente escrito na solidão de uma cela de prisão. O excepcional valor da obra repousa em sua ambiguidade. A princípio parece ter apenas um tema, a Fatalidade: os personagens são os joguetes do destino. Porém logo descobrimos que esta impiedosa Providência não é senão a contrapartida de uma soberana — na verdade, divina — liberdade, a liberdade do autor. Nossa Senhora das Flores é o mais pessimista dos livros. Com diabólica diligência, conduz suas criaturas à decadência e à morte. Mas, mesmo assim, nas sua estranha linguagem, apresenta a decadência como um triunfo. Os marginais e os desgraçados que apresenta parecem ser heróis e fazer parte dos eleitos, e, o que é mais surpreendente ainda, o próprio livro é um ato do mais deslavado otimismo. As autoridades penitenciárias francesas, convencidas de que 'o trabalho é a liberdade', distribuem aos prisioneiros papel para que eles confeccionem sacolas: foi neste papel marrom que Genet escreveu, a lápis, Nossa Senhora das Flores. Um dia, enquanto os presos caminhavam pelo pátio, um guarda entrou na cela e reparou no manuscrito, confiscando-o para em seguida queimá-lo. No entanto, Genet recomeçou. Por quê? Para quem? Havia pouca possibilidade de manter seu trabalho até ser solto e menos ainda de editá-lo; e caso, contra todas essas probabilidades, ele vencesse as dificuldades, certamente o livro seria banido, confiscado e rasurado. Nada mais interessava a Genet exceto aquelas folhas de papel marrom que um fósforo poderia transformar em cinzas." (Págs. 7 e 8) - Apresentação de Jean-Paul Sartre. Não é um livro fácil, principalmente porque é o resultado verdadeiro da solidão em uma cela de prisão, da masturbação e do desespero de Jean Genet que cria suas fantasias homossexuais com base em personagens originados em sua própria experiência com travestis, ladrões e assassinos. Todos eles, inclusive Genet, são transgressores em uma sociedade que os rejeita e isola, mas nem sempre é coerente com seus próprios princípios de justiça e igualdade. O livro é portanto uma espécie de salvação para esses perdedores que acabam atingindo, no inferno da prisão, um insólito status de "santidade", por outro lado, ainda segundo a análise de Sartre, o livro representa "o diário de uma desintoxicação, de uma conversão: nele, Genet desintoxica-se de si mesmo e volta-se para o mundo exterior. Na verdade este livro é a própria desintoxicação; não se contenta em ser testemunha da cura, mas concretiza-a."
"O cheiro da prisão é um cheiro de urina, formol e de pintura. Em todas as cadeias da Europa eu o reconheci e reconheci que este cheiro seria enfim o cheiro do meu destino. Em cada nova escorregada procuro nas paredes os traços das minhas prisões anteriores, isto é, dos meus desesperos anteriores, remorsos, desejos que um outro detento tenha gravado para mim. Exploro a superfície das paredes em busca do traço fraternal de um amigo. Pois se nunca soube o que poderia ser exatamente a amizade, que vibrações a amizade de dois homens constroem em seus corações e talvez nas suas peles, na prisão eu às vezes anseio por uma amizade fraternal, mas sempre com um homem — da minha idade — que seja bonito, que tivesse completa confiança em mim e que seria o cúmplice dos meus amores, dos meus roubos, dos meus desejos criminosos; embora isto não me elucide sobre tal amizade, sobre o cheiro, de um e de outro dos meus amigos, de sua intimidade secreta, porque para a ocasião eu me torno um macho que sabe que realmente não é. Espero a revelação na parede de qualquer segredo terrível: morte, sobretudo, mortes de homens, ou traição de amizade, ou profanação de Mortos e dos quais eu seria a tumba resplandecente. Porém não encontrei jamais senão algumas raras palavras gravadas sobre o gesso com um alfinete, fórmulas de amor e de ódio, geralmente de resignação: 'Jojo da Bastilha ama sua mulher até a morte.' 'A mamãe, meu coração, às putas, meu caralho, ao carrasco, minha cabeça.' (Págs. 119 e 120) Nossa Senhora das Flores, publicado pela primeira vez em 1943, pode ser entendido como uma série de estímulos para as fantasias masturbatórias de Jean Genet na prisão. De fato, a própria invenção das personagens corresponde a este propósito. Um épico da masturbação, é como o autor considerava a sua obra maldita. Divina, um travesti que morre de tuberculose é a representação do próprio Genet e de seu desejo masoquista de ser dominado. As relações de Divina com seus amantes estão sempre relacionadas com a morte e a traição em uma inversão de códigos da moralidade convencional. Desumanizar é a melhor palavra para definir este processo de subversão de valores. Mignon, um dos amantes de Divina, considerava um prazer trair e vender os amigos, pois isso o desumanizava. "Desumanizar-me a mim mesmo é a minha mais fundamental tendência." (talvez uma fala para o próprio Jean Genet).
"Embora marginal, Mignon tinha um rosto luminoso. Era o belo macho, violento e doce, nascido para ser marginal, tão nobre de porte que parecia estar sempre nu, menos num gesto ridículo e (para mim) enternecedor: as costas arqueadas, sustentando-se primeiro num pé, depois no outro, para poder tirar suas calças e cuecas. Antes de nascer, Mignon foi batizado em segredo, isto é, beatificado também, praticamente canonizado, no ventre quente da mãe. Foi feito uma espécie de batismo branco que deveria, assim que ele morresse, enviá-lo ao limbo; em suma, uma destas cerimônias breves, mas misteriosas e extremamente dramáticas em sua densidade, suntuosas também, para as quais são convocados os Anjos, e nas quais os devotos da Divindade foram mobilizados, assim como a própria Divindade. Mignon tem consciência disso, mas não muito bem, o que quer dizer que durante sua vida, antes que lhe dissessem alto e em bom som, parece que alguém lhe cochichou estes segredos. E esse batismo secreto, com o qual começou sua vida e que se alonga por ela afora, doura sua vida à medida que ela se desenrola, a envolve numa cálida, tênue e ligeiramente luminosa auréola, erigindo para esta vida de cafetão um pedestal ornado de flores, como um caixão de uma virgem é decorado de hera trançada, um pedestal maciço e entretanto leve do alto do qual, desde os quinze anos, Mignon vem mijando na seguinte posição: pernas abertas, joelhos ligeiramente encurvados, e em jatos mais rígidos desde os dezoito anos." (Pág. 95) É, portanto, surpreendente constatar como uma obra criada com uma função sórdida e em um ambiente tão hostil, fadada à destruição ou censura, possa ter sobrevivido e se tornado um clássico da literatura do século XX, além de influência no trabalho de vários artistas contemporâneos, no teatro e até mesmo na música. Posso citar uma referência recente, "Linha M" de Patti Smith, que descreve uma viagem da autora e seu marido Fred Sonic smith, no final dos anos setenta, até Saint-Laurent-du-Maroni, uma cidade fronteiriça no noroeste da Guiana Francesa, para visitar as ruínas de uma colônia penal onde ficavam os criminosos antes de serem transferidos para a famosa Ilha do Diabo que foi posteriormente desativada, por ser considerada desumana. Em "Diário de um ladrão", Genet descreve este lugar como um território sagrado e Patti Smith recolhe um pouco de pedras e terra para presentear Genet ainda vivo na época.
Fotografia de Brassai ( Jean Genet em 1940) colorizada por Loredana Crupi. Fonte: Mundo de K. |
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