domingo, 11 de janeiro de 2015

"O RETRATO DA AVÓ"

Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida nasceu em 24/09/1862 no Rio de Janeiro e aí mesmo morreu em 30/05/1934.
Passou parte da infância em Campinas; casou-se com o poeta português Felinto de Almeida e seus três filhos Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida também se tornaram escritores.
Antes de publicar seus livros, foi uma das primeiras mulheres a escrever para jornais, tais como: Tribuna Liberal, A Semana, O País, Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, entre outros.
Para o extinto periódico literário A Família, de propriedade de Josephina Álvares de Azevedo, ela escreveu um texto cheio de ternura intitulado "O Retrato da Avó".
Encontrei esse exemplar no Arquivo Público do Estado de São Paulo, edição de 25 de maio de 1889.
Vamos a ele!

O Retrato da Avó
O pequeno Heitor, lindo como os amores, alegre como um gorjeio, lembrou-se um dia de uma aventura galante.
Tinha ele então três anos. 
Estava só, completamente só; a mãe, no interior, dava ordens a uma criada nova.
Em fraldinhas de camisa, com os mimosos pés acetinados, nus, e os cabelos soltos, viu pela fresta da porta do quarto o violoncelo encostado numa parede da sala.
Que tentação!
Poderia livremente tocar, tanger aquelas cordas, tirando uns sons melodiosos que fariam chorar de comoção a mãe e receber por isso beijos, aplausos e doces.
Feita esta hipótese, não hesitou mais o meu querido Heitor.
Viu-se no grande espelho do guarda-vestido, que era indecente o ir tocar descalço... lá isso era.
Oh! mas ali estavam as botas do papai. Excelente, e o Heitor calçou-as.
Depois pensou, e bem, que não estava completo, pôs então no narizinho uns óculos escuros e na cabeça, deitado para trás, um grande chapéu alto.
Lá se foi o nosso herói aos trambolhões até ao instrumento, que, impassível, mudo, parecia esperá-lo. 
Esfinge curiosa.
Heitor estendeu a mãozinha, gorda e branca, para o arco, olhou triunfante para o retrato da avó, única espectadora.
Principiou mansamente, depois foi num crescendo orquestral, wagneriano, atordoador, impossível.
Com os olhos fechados, apertadamente, movia o corpo, entusiasmado, gritando na sua meia língua:
- Muito bem!
Alvoroçada com a bulha, a mãe correu à sala, e ao ver aquele figurão gracioso só se lembrou de uma coisa - da zanga do marido ao encontrar desafinado o violoncelo.
Cega pelo desespero, correu para o filho, tencionando puni-lo.
Vendo-a, a criança, assustada, apontou para o retrato da avó, desculpando-se assim:
- Vovó pediu!
A boa senhora então comovida, contemplou o retrato da mãe e achou-o tão meigo, tão cheio de cândida expressão, que parecia mesmo dizer-lhe: - "Perdoa-lhe. Eu estava a gostar de ouvi-lo..." 

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