quarta-feira, 22 de maio de 2013

"O ALFAIATE, A COLCHA DE RETALHOS E O DIABO"


CAPÍTULO PRIMEIRO: 

Havia noutros tempos por estas bandas do sul do Estado, um alfaiate muito bondoso e inteligente que, por ser perito no seu ofício, gozava de uma reputação quase "universal". 
Com efeito, "seo" Jacinto - este era seu nome - costurava bem e costurava tudo: roupas de homens e de meninos, de senhoras e senhoritas, e até a pança dos fregueses, se preciso fosse, porque, de uma feita, chamado para um tal mister, houve-se nele com admirável habilidade. 
"Seo" Jacinto, no entanto, apesar de levar uma vida quase santa, confessando-se à miúdo, sem falar às missas dominicais e dias de preceito, tinha ele um "senão"! 
Dona Magnólia, sua amável esposa, tão boa e católica como ele, e como ele gozando de estima quase "universal", de quando em vez chamava-lhe a atenção: 
- Nhô Jacinto, esse defeito que mecê não deixa, não sei se no fim dá certo!... Veja bem que o pecado sempre tem castigo. 
- Qual pecado, querida: "isso" é tão insignificante que nem para o vigário eu conto. Futilidades dessa natureza, nem o diabo toma nota. 
Com efeito, "seo" Jacinto usava e abusava desse seu único "senão". 
Ele, cada vez que lhe traziam pano para coser, fosse da qualidade que fosse, antes de toda e qualquer operação da arte, suprimia bom meio côvado para si. 
É verdade que, constantemente, os fregueses reclamavam a justeza um pouco exagerada das roupas. Mas "seo" Jacinto a todos dava boas desculpas: o pano era mais estreito, o negociante errou na medida, houve um pequeno engano no corte, etc., e os fregueses ficavam a lhe restar, nunca, porém, desconfiando de sua honestidade, porque "seo" Jacinto era bom católico. 
E os retalhos transformavam-se em belíssimas colchas, artisticamente confeccionadas pelas mãos de dona Magnólia, que só ela sabia combinar-lhes as cores em quadrículos uniformes dispostos com rara maestria. 
De quando em vez o "seo" Jacinto partia para longe, levando nutrido sapiquá. 
O conteúdo, que os vizinhos desconheciam, era todo ele... de colchas! 
Vendidas, produziam boa soma que dona Magnólia, apesar das suas advertências habituais e dos escrúpulos de consciência, colocava na caixa econômica, de onde apenas retirava os parcos jurinhos, operações estas feitas sob reserva absoluta não só do vulgo como até do padre no confessionário. 
- Futilidades dessa natureza, nem o diabo toma nota, repetia "seo" Jacinto, quando sua cara metade lhe advertia que o "negócio no fim, talvez, não desse certo"... 
Os tempos iam-se, os costumes continuavam e tudo era gosto para o casal feliz que só reclamava uma coisa: a falta de "herdeiros que devorassem, mais tarde, as suas economias". 

CAPÍTULO SEGUNDO: 

Domingo de Ramos. 
A igreja da paróquia preparava-se para comemorar os martírios do Gólgota. 
As folhas de palmeiras cruzavam-se por toda parte e os fieis, sobraçando-as aos feixes, penetravam os umbrais do templo sagrado que dentro em pouco tomava o aspecto de uma vasta floresta. 
"Seo" Jacinto e dona Magnólia, na forma do antigo hábito, também fazem parte das solenidades; ele, vestindo opa e ela, envergando o hábito de irmandade feminina local. 
Inicia-se o santo sacrifício da missa, mas quando o Sacerdote pronuncia as palavras "Introibo ad altare Dei", um rebuliço geral interrompe o silêncio majestoso que reinava no recinto. 
Há gritos lancinantes e exclamações de dor: 
- Que será? - exclamava a multidão. 
- "Mortus est Jacintus", pronunciou, enfim, o oficiante. 
E de fato, "seo" Jacinto, estendido ao solo, era um cadáver perfeito, desfigurado e cataléptico. 

CAPÍTULO TERCEIRO: 

Não havia nenhum Esculápio na terra. 
Em compensação, existiam curandeiros à beça que foram sendo chamados, dando cada um opinião vária. 
Para "seo" Maneco da Viola, aquilo foi "lombriga arejada". Recitou uma oração forte sobre o corpo hirto, que, logo após deu um estremeção de arrepiar os circunstantes. 
Estava, portanto, ainda vivo, o "seo" Jacinto! 
Veio, depois, Nhá Chica da Porteira, que diagnosticou "lombriga fraca". 
O específico para esta enfermidade foi logo preparado: chifre de carneiro queimado, vinagre, açúcar mascavo, canela e hortelã. 
O abdomem do paciente cadavérico foi logo besuntado em cruz por todo o corpo, mas qual! 
Um segundo estremeção e mais nada. 
Em resumo, mais de trinta "doutores" deram mais de trinta opiniões diferentes e já se andava pelo sábado de aleluia e "seo" Jacinto continuava na mesma. 
De vez em quando um estremeção, como que a evitar-lhe o sepultamento com vida. 
Por sua vez, o depósito da caixa econômica esgotava-se rapidamente. 
- Eu bem dizia para ele - choramingava dona Magnólia - que, no fim... 
O resto da frase sumia-se no engasgo da comoção simulada, porque a ninguém queria revelar o segredo dos retalhos e da caixa, que ainda se mantinha oculto. 
Faltava, entretanto, um cirurgião que não fora consultado. 
Era o Nicola de Biase, muito entendido em operações e curas, apesar de exercer o ofício de oleiro do povoado. 
Veio logo e examinou: 
- Uno picolo escaldamento nus miólos, cagionalo dala svaporazione dus gazo sulfridico qui treparon in cópa à cabezza du poverino. Io vô a fazê uno buraco in zima co o trapano i dispoize eli vai a sará. 
Poucos momentos depois, o buraco estava aberto e o Nicola nele colocava um manômetro a título de experiência. 
O instrumento entrou a funcionar, verificando a numerosa assistência, que a pressão do gás elevou-se a 100 libras! 
Jacinto exala um profundo suspiro, torce-se todo no leito e, poucos momentos após, no meio do espanto geral, caminhava pelo aposento, como se nada lhe tivesse acontecido. 
O próprio Nicola azulou, levando apenas o "manômetro". 

CAPÍTULO QUARTO: 

Dona Magnólia guardou segredo do que aconteceu ao seu caro esposo, até que este, passados alguns anos, morria de fato, regenerado daquele "senão" que muito o fez sofrer durante os dias da morte aparente. 
É que "seo" Jacinto tivera naquela ocasião uma síncope, durante a qual sua alma, segundo me afirmou aquela senhora, perambulando pelo espaço, descera até o quinto circuito do inferno, onde o diabo havia plantado no alto de pequena colina fosforescente, uma bandeira enorme, cuja flâmula media cerca de um quilômetro de comprimento. 
- Eis aí, Jacinto amigo - disse-lhe o diabo - o fruto da tua obra sobre a terra, isto é , aquilo que julgavas coisa fútil. 
Com efeito, cheio de espanto, "seo" Jacinto reconheceu que todos os retalhos que furtara faziam parte da colossal bandeira, tendo no reverso de cada um a fotografia de seu dono, perfeitamente reconhecível. 
Muita coisa viu mais "seo" Jacinto por aquelas paragens infernais, que, se as divulgasse todas, fariam modificar a face do mundo! 
Daí por diante, quando ele preparava-se para cortar o pano, conforme suas instruções, dona Magnólia gritava-lhe: 
- Olha a bandeira! 
E "seo" Jacinto derrubava logo a tesoura, fazendo o sinal da cruz. 

* Este fato que me foi contado pela viúva do herói Jacinto não é fantasia. 
Com exceção do capítulo onde se relata a operação trepanatória do crânio, tudo o mais é verdade pura, incontestável. 
Publiquei-o agora porque há nele muito que pensar e que aprender, principalmente na época que vamos atravessando."
- Publicado no extinto jornal "O Progresso" de 29 de março de 1.931. 
Autor: Dr. Ferdinando Cipó, um dos p
seudônimos do Major Luiz Valio. A maioria dos artigos escritos por ele, assinava-os como J. SEVERO.

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