sábado, 25 de maio de 2013

O TAL DE BICHO DE PÉ

UM EXÉRCITO INVENCÍVEL
Inimigos liliputianos.

Depois da descoberta, o reconhecimento e ocupação do território brasileiro pelos europeus foi duro combate contra forças desconhecidas. 
Apesar do recém-chegado ter conhecimento técnico e científico superior ao do nativo e de possuir melhores armas e ferramentas, não estava preparado para enfrentar todas as surpresas do mundo novo. 
A colaboração da mão-de-obra escrava foi de fundamental importância. 
Consideradas meras máquinas humanas, os cativos padeceram das piores condições de vida: precária habitação, alimentação pobre e falta de cuidados com a higiene. 
Era gente forte, mas milhares de negros não conseguiram sobreviver a tanta adversidade. 
Enfrentar a natureza selvagem não foi fácil para ninguém, branco ou negro, na conquista do país continental.
Não eram só onças, cobras e demais feras que assustavam os forasteiros que chegavam ao Brasil. 
Durante o período colonial, principalmente os viajantes europeus, depararam-se com alguns pequenos diabos que os aterrorizaram. 
Na aventura de investigar o país desconhecido, enfrentaram mosquitos, pulgas, piolhos, aranhas, formigas, marimbondos, carrapatos, também outros tantos, mais corpulentos, como baratas, escorpiões, lacraias. 
Nesta lista não poderiam faltar os “barbeiros”, transmissores do “trypanosoma cruzi”, que foram apresentados a Carlos Chagas, em 1908. 
Enfim, um enorme contingente de guerrilheiros, atacando por terra e ar.
Já por volta da metade do século XVI, o aventureiro Hans Staden, que foi capturado por canibais, no seu relato em “Viagem ao Brasil” (1.557), fez a apresentação dos vários inimigos, entre eles os piolhos. 
No capítulo XVI há uma referência, dizendo que entre as indígenas, “…quando uma cata os piolhos de outra os vai comendo. Eu lhes perguntei muitas vezes por que fazem isso; me responderam: ‘São nossos inimigos que comem as nossas cabeças e por isso queremos vingar deles’.
Depois, no capítulo XXXII, trata do incrível exército dos bichos-de-pé, que dominava o país de ponta a ponta: 
- “…uns insetosinhos que são como pulgas, mas menores, que se chamam ‘attun’ (3) na língua dos selvagens. Criam-se nas cabanas, da sujeira da gente. Estes entram nos pés; só fazem uma cocegazinha quando entram, e vão entrando na carne de modo a quase não se perceber. Não se reparando e não tirando-os logo, põem eles um saco de ovos, redondo como uma ervilha. Quando então os percebem e os tiram, fica na carne um buraco do tamanho de um grão de ervilha. Eu vi quando cheguei a este país, pela primeira vez, os espanhóis e alguns dos nossos ficarem com os pés estragados por não terem reparado isso.”
O alemão Hans Staden livrou-se dos canibais, mas não escapou dos bichos-de-pé.
Realmente os bichinhos já assombravam os estrangeiros desde priscas eras. 
Gabriel Soares de Souza, um colono português, radicado na Bahia, deixou um texto riquíssimo em informações sobre a terra. 
Trata-se de uma obra que foi publicada na Europa, em 1.587, à qual dão o título de “Notícias do Brasil” , onde os bichos-de-pé tiveram a glória de merecer preciosas linhas. 
Vale a pena conhecer um trecho: 
- " são estes bichos, tão temidos em Portugal, que se metem nos pés da gente, a que os índios chamam tungas, os quais são pretinhos, pouco maiores que ouções. [...] mormente se estão em terra solta e de muito pó, em quais lugares estes bichos saltam como pulgas nas pernas descalças; mas nos pés é a morada a que eles são mais inclinados, mormente junto das unhas; e, como estes bichos entram na carne, logo se sentem como picadas de agulha. Há alguns que doem ao entrar na carne e outros que fazem comichão como frieiras.”
E mais adiante: 
- “… e os que estão entre as unhas, doem muito ao tirar; porque estão metidos pela carne; os quaes se tiram em menos espaço de uma Ave Maria; e donde saem fica uma covinha, em que poem-lhe uns pós de cinza ou nada e não se sente mais dor nenhuma; mas os preguiçosos e sujos que nunca lavam os pés, deixam estar os bichos neles, onde vêm a crescer e fazerem-se tamanhos como camarinhas e daquela cor; porque estão por dentro todos cheios de lêndeas e, como arrebentam, vão estas lêndeas lavrando os pés, do que vêm a fazer grandes chagas. No princípio da povoação do Brasil, vieram alguns homens a perder os pés e outros a encherem-se de boubas…”
Para Gabriel Soares tirar um bichinho é fácil, gasta menos tempo que uma Ave Maria.

MONSTRINHOS RENITENTES

Muito tempo depois, essa vasta bicharada ainda continuava deixando os forasteiros em pânico, como aconteceu com o botânico, professor Auguste de Saint-Hilaire. 
Seu primeiro susto, foi logo que chegou ao Rio de Janeiro, em 1.816, e passeava pelos arredores da cidade. 
O encontro teve alta dose de suspense e assim foi descrito: 
- “… avistei no solo um disco luminoso de mais de um pé de diâmetro. À medida que avançava, a luz fugia de mim; pus-me a correr, ela redobrou a velocidade; consegui todavia, aproximar-me para descobrir no centro do disco um ponto mais brilhante, e me convencer de que essa luz era devida a um pequeníssimo inseto que, após perseguido por muito tempo, enfiou-se por debaixo da porta de um jardim e me escapou.”
O valente professor depois descobriu que se tratava de um membro da vasta família dos coleópteros, parente desses vaga-lumes que pirilampeiam nas noites brasileiras. 
Mas, o pior estava por vir e assim aconteceu, ao se deparar com os tradicionais e mal-afamados bichos-de-pé, que assim retratou:
“Todavia, entre esses insetos, há uns que são para o homem larga fonte de aborrecimentos. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, fiquei com os pés escalavrados pelas pulgas penetrantes(bichos-de-pé), que, como todos os outros insetos maléficos, atacam de preferência os europeus recentemente desembarcados. [...] Frequentemente entranhavam-me alguns desses insetos; e, certa vez, extraíram-se dezessete num só pé.”
Logo aprendeu a lidar com os miudinhos e, com espírito científico, ensinou a arte de identificar o inimigo e de combatê-lo:
“Uma ligeira comichão revela a presença do inseto; a carne se inflama um pouco ao redor do ponto em que o inseto penetrou; este poderia causar acidentes, se o deixasse ficar na pele por muito tempo. Os negros e os mulatos têm uma habilidade particular para retirar os bichos-de-pé, [...] servem-se para isto de um alfinete ou, mais comumente, da ponta de uma faca, e muitas vezes não causam a menor dor.”
Coitado do Saint-Hilaire! 
Tempos depois, viajando pelo sertão de Minas Gerais, à beira do Rio São Francisco, os miudinhos atacaram-no de novo, pois assim deixou escrito:
- “Havendo escrito o diário, quis herborizar em torno da choupana, e fui com os companheiros a um lugar onde se explorara salitre. Em um instante, ficamos cobertos de pulgas, bichos-de-pé e carrapatos de todos os tamanhos; é que a poeira da terra estava coberta dessas diversas espécies de insetos, cada qual mais maligna que as outras”.
Os negros descalços foram as maiores vítimas dos bichos-de-pé.
Também a dupla de naturalistas Johann Baptist von Spix e Carl Frieddrich Philipp von Martius, que viajou pelo país entre 1.817 e 1.820, fez um alerta sobre os malditos:
- “O próprio lavrador, sobretudo o recém-vindo da Europa e não conhecedor da natureza aqui, tem de sustentar muito duras provações com a importuna bicharia. Se lhe não tiver a sua habitação bem fechada, especialmente pela manhã, à tarde e à noite, entram nuvens de mosquitos grandes e pequenos, que, com os seus ferrões, picam mesmo através da roupa grossa e só cortinados de seda ou gaza os podem livrar desses hostis zunidores. Os bichos-de-pé (Pulex penetrans), abundantes [...] aninham-se debaixo das unhas da mão e do pé e, ao mesmo tempo que criam uma bolsa cheia de pequeninos ovos, ocasionam as mais dolorosas sensações, às quais se associa, quando há negligência, inchação das glândulas inguinais e até, muitas vezes, a gangrena.”
E também recomendaram quanto à prudência em desalojar bichinho do seu habitat, bem como às medidas pós-operatórias:
- “Crescendo a bolsinha, deve ser com cuidado extirpada logo que começa a doer e o lugar deve ser esfregado com rapé.”
São hilárias as palavras do francês L. F . de Tollenare, que esteve no país de 1.816 a 1.818:
- “Os insetos pululam [...] O mais incômodo desses insetos é o bicho-de-pé [...] As negras os extirpam muito destramente sem dor. [...] Por não ter feito extrair um a tempo, levei dois dias sem poder andar. [...] Esses animais por vezes me dispensaram uma preferência de que não lhes posso ser grato.”
Não pode ser esquecido o relato do viajante suíço-alemão Carl Seidler, publicado na Europa, em 1.835, batendo na mesma tecla:
- “Uma dessas pragas da terra é em todo o Brasil, inclusive na ‘divina capital’ – Rio de janeiro – , a pulga [...] que os naturais do país chamam de bicho-de-pé.”
Embora os estrangeiros fossem vítimas desprevenidas nesses ataques, ainda levavam vantagem, por serem conhecedores dos melhores preceitos de higiene, daí, com engenho e arte, conseguiam sobreviver. 
Mas nem todos saiam incólumes dessa guerra, como o frade que morreu de uma infecção, provavelmente com um bicho-de-pé incrustado no dedão. 
É o caso relatado pelo explorador Ferdinand Denis, em 1.888:
- “Fala-se ainda hoje no Brasil de um frade, que pretendeu transportar vivo para a Europa um daqueles insetos, e que morreu na travessia. É este, sem dúvida, um dos insetos que mais incomodam os europeus à sua chegada ao Brasil, e ainda que sua introdução nos dedos dos pés, ou em qualquer outra parte dos pés, só resulte em uma comichão, ou um calor forte, se for tirado com mau jeito, as reações consequentes podem causar algum terror.”

   
À esquerda, a pulga do bicho-de-pé; à
 direita, o parasita já alojado nos tecidos.

TERROR DO SERTÃO

A mesma história foi contada pelo explorador Richard Burton, em seu “Viagem de canoa de Sabará ao oceano Atlântico”, dando ao frade o título de naturalista “que sofreu todas as consequências e tornou-se um mártir da ciência.” 
Aliás, Burton era um especialista em bichos-de-pé, pois discorre longamente e com muita propriedade sobre as malsinadas criaturas. 
Quando adentrou o sertão mineiro, em 1.867, navegando pelo rio das Velhas, ao aportar em Vila do Guaicuí (MG), hospedou-se numa casa abandonada, no porto da Manga. 
Ninguém pense que sua estada no lugar foi apenas de sorrisos, pois compartilhou seu abrigo com o tal exército de bichos-de-pé:
- “… dois deles resolveram morar comigo. É um bichinho que tem muitos nomes científicos: Pulex penetrans, P. Subitrans ou P. Minus. [...] Vi, muitas vezes, meninos com os dedos dos pés pintados como tivessem sido salpicados de pimenta, mas nunca ocorreu morte em consequência disso, e já ouvi de negros descuidados, cujos pés tiveram de ser amputados. Visto em um microscópio, o bicho-de-pé tem a aparência de uma pulga, com o corpo bem desenvolvido e de cor um pouco mais clara. [...] já extraí seis até seis no mesmo dia, [...] A sola dos pés é também um lugar favorito; na verdade, o bicho monta residência onde a pele é bastante dura – daí a sua preferência pelos negros.”
O viajado Burton, homem de “sete instrumentos”, amigo da arte e da poesia, chegou a descobrir graça no bichinho, relembrando um menestrel negro de outras terras que lhe dedicara um canto:
Rose, Rose, lubly Rose,
I wish I may be jiggered if I dont’lub Rose.
Rosa, Rosa, querida Rosa,
Quero ficar coberto de bichos-de-pé, se não tiver Rosa.

Deixando de lado a poesia, para os escravos a convivência com os bichos-de-pé não era fácil, pois padeciam de terríveis consequências pelos seus ataques. 
No desamparo em que viviam, eram levados a graves problemas de saúde e acometidos de várias doenças, que se agravavam pelas infestações não só desses insetos, mas também dos bernes, provocados pela mosca varejeira, que deposita seus ovos sobre a pele sã, preferencialmente, onde houver ferida aberta.
Documentação de óbitos nos registros paroquiais e, em datas mais recentes, relações publicadas em jornais, sugerem sobre as doenças que acometiam os negros. 
Embora a maioria dos diagnósticos fossem equivocados, eram percebidas as intercorrências nefastas produzidas por esses parasitas. Um exemplo é o que acontece na conhecida erisipela, provocada pelos estreptococus, comum entre os escravos, que complica-se com os bichos-de-pé.

PALAVRA DO CIRURGIÃO

No século XVIII, o cirurgião português, Luís Gomes Ferreyra, radicou-se no Brasil, tendo passado por Sabará, Vila Rica e província de São Paulo. 
No ano de 1.735, publicou um dos primeiros tratados brasileiros de medicina popular, o “Erário Mineral”. 
Uma grande preocupação sua, como se percebe no seu livro, foi ensinar como tratar o que chamou de “formigueiros”, na verdade mais que uma doença uma consequência de várias, agravadas pelos ataques dos bichos-de-pé, é o que se depreende de muitos relatos. 
O autor dedicou inúmeras páginas a esses formigueiros, como consta do “Tratado VII – Dos Formygueiros, e outras doenças communs nestas Minas”, distribuídas em dezessete capítulos.
Começa assim:
“Capítulo I: 
1 – Esta doença de formigueiros é muito ordinária (comum) nestas Minas, assim em pretos como em brancos e como tem suas diferenças os quero distinguir na forma seguinte. 
2 – Destes há uns, que nascem nas solas dos pés dos pretos mineiros, que facilmente se conhecem, porque lhes fazem buracos do mesmo modo que as formigas os fazem na terra, quando fazem suas casas, solapando as solas dos pés e fazendo nelas buracos redondos e fundos, com comichão e dores grandes que não os deixam andar sem grande moléstia…”
O cirurgião denominou tantas patologias como sendo “formigueiros” que se torna difícil, mesmo ao especialista identificá-las separadamente, mas é muito sugestiva associação de algumas delas às façanhas dos bichos-de-pé. 
Isto fica mais claro quando prossegue, escrevendo:
“ Capítulo II: 
2 – Sobre quantas doenças perseguem os pobres pretos nestas Minas, esta não é de menos moléstia e difícil de curar; porque, pela maior parte, os senhores os não aliviam do trabalho por causa dela e andam com muito grande moléstia, sem se poderem ter em pé, como quem os tem visto e os tem possuído com esta enfermidade, a qual é terrível, porque lhes faz nas solas dos pés grandes buracos e bronqueamentos fundos, corroendo para o interno e, para uma e outra banda, que andando eles sempre a cortar naquelas solas, sempre crescem e os buracos sempre fundos, de modo que não podem pisar no chão e, por esta causa, andam pela maior parte nas pontas dos pés.”
Uma pista para entender o que pretendia dizer o autor está no famoso “Vocabulário português e latino” do padre Raphael Bluteau, publicado em 1.713, no qual revela as acepções de “Formigueiro”:
“A cova das formigas. Formicarum cubile, is. Neut. // Formigueiro. Fervedouro. Muyto bichinho junto. Nas chagas, que se não tem cuidado de pensar, de ordinario se vê hum formigueiro de bichos. Solent neglecta ulcera sacatete vermibus…”
Com muita propriedade, Joaquim José da Costa e Sá, no “Dicionário Português, Francês e Latino” (1.784), escreve “fervedouro de bichos juntos nas borbulhas” e, se referindo ao “ladrão de pequenas cousas, ‘petit vouleur‘, remete aos termos latinos “furunculus, latrunculus”.
Também, em edição de 1.831, do “Dicionário da língua portuguesa”, de Antônio de Morais e Silva, há o verbete: “Formigueiro, s. m. Cova de formigas. Fervedouro de bichos na chaga corruta…”
Ora, não é preciso ser médico para deduzir que estavam presentes nos denominados “formigueiros” várias patologias, muitas associadas à tão frequente proliferação de vermes, como os produzidos pela pequena ladra das carnes, a pulga “tunga penetrans”.
Sem dúvida, o “Erário Mineral” se tornou um curioso documento médico e histórico, que apesar de trazer informações às vezes equivocadas, revela os sofrimentos por que passaram esses pioneiros. 
Provavelmente, o ato de curar muita vez resultava em mais sofrimento, mas a intenção era nobre. Contudo, já no prólogo o autor justifica-se humildemente, admitindo que não se sentia dono da verdade:
“… ninguém, por bem que escreva, se livra de censuras; porque [...] as coisas não se julgam pelo que são, mas pelo afeto de quem as ajuiza: da mesma flor tira a vespa o amargoso, e a abelha o suave. [...] Tudo o que escrevo é para a honra e glória de Deus, e para proveito do próximo; e nem espero teu agradecimento, nem temo a tua calúnia; e, se como diz S. Jerônimo, no tabernáculo de Deus cada um oferece o que tem; no teatro do mundo cada um diz o que sabe ou o que pode.”
O cirurgião Gomes Ferreyra, ainda recomenda uma receita que aplicou em si próprio, ensinando como manter boa saúde:
“… eu em mim experimentei no princípio, que cheguei à Vila Real do Sabará destas Minas,[...] por me sobrevir uma surdez, que quase de todo perdi o ouvir [...] me resolvi a comer alguma coisa de manhã, e a beber-lhe em cima um copinho da dita água ardente, [...] por ter zunidos nos ouvidos e na cabeça; e, sem embargo, [...] me fuy acostumando e, com efeito, não me enganei; porque em poucos dias experimentei muita melhora, e no decurso de pouco tempo fiquei são, [...] O mais que agora podia dizer, para o bom regime e conservação da saúde, acharão os curiosos em seu capítulo separado.”
Pronto, santo remédio! 
Receita antiga, muito difundida nessas paragens de Minas Gerais. 
Deve também funcionar contra bichos-de-pé…
Por Eduardo de Paula
Do Sumidoiro`s Blog.

EXCELENTE APRENDIZADO SOBRE ESSES BICHINHOS QUE AINDA NÃO SE ACABARAM NO BRASIL.

Nenhum comentário: