sábado, 4 de julho de 2015

O CARRO DA SEMANA SANTA


Para nós, vindos de peregrinar pelas igrejas, a luz Auer que iluminava o café era talvez desagradável. Ficáramos todos lívidos, com uma face de orgia. Sob o teto baixo, entre as mesas de mármore lustroso, os criados arrastavam os passos já meio exaustos, e como a sala fosse forrada de espelhos, velhos espelhos que reproduziam apagadamente os perfis, estávamos como num aquário, esquisitos, espectadores de uma cena em que tomávamos parte, em que nos víamos a representar noutro mundo - um mundo sem data, sem tempo, sem fim. Algumas vezes dávamos com um gesto nosso a desaparecer de súbito esburado pela falta de aço num pedaço de espelho, e era desinteressante, desoladoramente desinteressante. De resto, a noite fora curiosa. Éramos um pequeno grupo: dois homens que riam de tudo e pagavam a despesa, um menino com ares de Antino viçoso, cujos princípios todos ignoravam, um poeta obrigado a ser espirituoso, dois jornalistas, eu. Havia também um homem chamado Honório. Tomávamos uma mistura repugnante de alcoóis variados e tínhamos vindo cansados de dar encontrões na última igreja. A quinta-feira santa dissolvera na cidade a impalpável essência da luxuria e dos maus instintos. Quanta coisa de profano, de sacrílego, de horrível havíamos visto no redemoinhar da turba pela nave dos templos? Fúfias dos bairros sórdidos esmolando com a opa das irmandades para o Senhor Morto, bandos de rapazes estabelecendo o arrocho junto do altar-mor para beliscar as nádegas das raparigas, adolescentes do comércio com os olhos injetados roçando-se silenciosamente entre as mulheres, e mulheres, muitas mulheres, raparigas vestidas de branco, de azul, de cores vivas, matronas de luto fechado, pretas quase apagadas em panos negros, mestiças cheirando a éter floral, com gargalhadinhas agudas, o olhar ardente, todas como que picadas pela taråntula do desejo. A dolorosa cerimônia tinha qualquer coisa de orgíaco, como em geral as cerimônias religiosas deste fim de raça, em que os instintos inconfessáveis se escancaram ao atrito dos corpos, nos grandes agrupamentos. Na Candelária, junto a uma das colunas, o rapaz que lembrava Antino tivera a lembrança de se colocar entre uma cabrocha e um alentado sujeito "para verificar o escândalo", dizia ele. Em S. Francisco, o cidadão Honório batera no ombro de uma espanhola de mantilha, apontando-lhe a porta, para dizer-nos quando já ela se sumia: "Uma nevrosada: gatuna de carteiras pela semana santa." E nós estávamos afinal, naquele café do Carceler, perto de duas igrejas a comentar a extravagåncia sensual da multidão.
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João do Rio

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