terça-feira, 22 de março de 2016

OS CADERNOS DE ALCINA





Algumas vidas insípidas podem até caber em uma, duas páginas. Mas a de Alcina, nascida Oliveira em Florianópolis em 1923, transborda o papel. 
Aos olhos do mundo, suas histórias podem nada ter de excepcional que a eleve sobre a bruma dos anônimos. 
Daqui a algum tempo, ela fatalmente desaparecerá sob o chão, e talvez poucos, além dos que a conheceram nos seus anos de atividade, lembrarão sua presença na terra. 
Hoje, no ostracismo imposto pelo corpo doente e senil, ela vive na cidade de Gaspar entre as lembranças turvas do passado e os desconfortos da idade avançada, longe do rio e do mar que foram testemunhas da maior parte de seus 92 anos.
Antes de perder parte da lucidez que sempre brilhou em sua expressão, Alcina encheu páginas com seus manuscritos. 
São textos confessionais que ajudam a compreender a mulher que, professora, mãe, poeta, historiadora e humanista, mostrou-se anterior ao seu tempo. 
Sua história documentada em cadernos traça um retrato de sua vida e, para o leitor atento, um vislumbre da sociedade do litoral do Estado em tempos hoje estranhos ao catarinense, urbano e modernizado.
Era 1930 e, num país de iletrados, ser mais uma menina pobre e analfabeta era o roteiro previsível para a pequena Alcina. Mas o olhar curioso exibia uma fome de vida e saber, e surpreendendo até a mãe Inês, convenceu as irmãs do Colégio São José a admiti-la na escola da elite itajaiense. 
Ir às aulas saciava sua vontade de conhecimento, mas a convivência com as meninas ricas lhe fazia mal. 
Delas ganhava vestidos e escárnio. 
-------------- “Quando saíamos das aulas, sempre íamos bem ligeiro na frente, porque eles, as ricas, vinham atrás, cantando o refrão: pobres, pobres, ô pobres”, desabafou, num de seus manuscritos.
Um dia, chegou chorando em casa. 
Avó Paula tentou consolá-la. 
---------------- “Deixa, minha filha, vais crescer, trabalhar e ter tudo o que precisas e sobretudo vais esquecer tudo isso”. 
Não esqueceu, mas a língua maldosa das colegas da sala pode ter encorpado seu sonho de ser mais gente. 
Decidiu que seria professora. E das boas. 
E se coubesse ainda na vida, ser escritora também.
Nos primeiros anos de vida, não faltaram motivos para desejar fugir dessa sina. 
Em 1933, o pai desempregado quis tentar a sorte em Blumenau, de onde vinha a notícia de que a construção da ferrovia oferecia muitas vagas de emprego. 
Deslocar-se de Itajaí até a cidade colonizada por alemães era uma aventura àquela época. 
Para piorar, a distância foi vencida a pé, mas a esperança de mudar de vida suavizou o rigor do percurso entre pastos e gado. Na casa da avó Maria, sobrou-lhes o porão, arenoso e sem assoalho. 
Não demorou para que a frustração assombrasse a expectativa de vida nova. 
------------ “Não aceitavam quem não falasse ou ao menos entendesse o alemão”, lembra. 
Eram estrangeiros no próprio país, numa cidade onde grassava o ufanismo nazista e as pessoas, sem pudor, trocavam saudações a Hitler. 
As economias foram acabando e, para não passar fome, Alcina buscava as sobras de comida de um pensionato. 
Quando soube, o pai reinou e proibiu: 
------------ “Viemos para cá para trabalhar, não para esmolar”. Pouco tempo depois, a família desiste e decide retornar a Itajaí. Mais dois dias e meio de viagem.
Na primeira parada, em Gaspar, uma vila à época, o pai se meteu a beber numa venda, enquanto uma senhora de descendência alemã, gorda e conversadeira, vizinha ao comércio, condoeu-se com a situação da “família de retirantes”. Indicou uma casa abandonada, cuja varanda podia servir de dormitório durante a noite chuvosa. 
Já passava das 22h quando a inesquecível senhora trouxe um bule de café e pão caseiro com queijinho branco. 
----------- “Foi o melhor café que tomei em toda a minha vida”, lembrou Alcina, então com o estômago vazio e alma cheia de admiração pela generosidade da benfeitora desconhecida. 
Mal tinha amanhecido, o pai levantou acampamento. A caminhada só parou na casa do tio Abílio Tavares, em Ilhota, já por volta das 16h. 
Era um engenho desativado. A cama foi um poncho estirado sobre as palhas de milho. 
O cansaço era imenso e o leito precário não atrapalhou o sono. No dia seguinte, a peregrinação só terminaria às 9h da noite, na casa de Bento Celestino, compadre de seus pais, onde ficariam por algum tempo até alugarem uma casa.
A cena daquela viagem odisseica é resumida pela própria Alcina. 
---------------- “Uma menina correndo na estrada. Um adolescente (o Tio Lilo) curvado ao peso de uma trouxa. Uma senhora pequena, magrinha, franzina, que, em cada passo que dava, as lágrimas que corriam de seus olhos deixavam um sulco no rosto. Um homem, que parecia o Senhor, caminhando de fisionomia fechada, não vendo o universo à sua volta. Para ele, todos eram culpados do seu infeliz momento. Menos ele, o pivô da questão. Por isso, não admitia nem queixas nem questionamentos”.
Experiências assim podem ter influenciado fortemente as opções políticas do pai. 
Já como trabalhador na estiva, a participação sindical o aproximaria do movimento comunista na cidade. 
Para o pai, era a utopia de ver um mundo menos injusto, de oportunidades iguais para todos. 
Para a esposa, Dona Inezinha, era mais uma fonte de aflição diante da repressão aos comunas, especialmente após o golpe de Estado liderado por Getúlio Vargas. 
Para Alcina, que fazia questão de ajudar o pai a distribuir panfletos do movimento, era sua iniciação na política. 
Já adulta, ela viria a ser secretária municipal e vereadora no município de Balneário Piçarras.
Foi justamente ali que a professorinha de 16 anos foi trabalhar em 1941. 
Em Piçarras, então um vilarejo ligado a Itajaí, não agradou apenas os alunos na localidade de Santo Antônio. 
Despertou também o interesse de Arno, filho do patriarca mais influente do lugarejo, Alexandre Guilherme Figueredo, herdeiro de uma das famílias fundadoras da comunidade, oriunda de Portugal. 
Para a comunidade provinciana acostumada ao papel recatado reservado à mulher, Alcina escandalizava: conversava com todos – homens, mulheres e pescadores – e pior, aceitava carona de Arno na garupa de sua bicicleta, um horror segundo as conversas de detrás das janelas.
O pai Alexandre não gostou da escolha do filho. 
Já havia primas na fila de espera, conforme o recurso tradicional para evitar a dispersão da riqueza familiar. 
Além disso, Alcina era pobre. E talvez, interiormente, ela tenha resistido ao namoro pelo mesmo motivo. 
Algum tempo antes, ainda na Escola Complementar, ela foi insistentemente assediada por Arnaldo Brandão, de família rica e tradicional de Itajaí (seu irmão, Dide Brandão, dá nome à Casa da Cultura da cidade), que se declarava apaixonado por ela. 
Embora secretamente desejasse, o abismo social entre os dois, adicionada à ameaça do pai e ao medo inocente do novo, fez com que Alcina recusasse o cortejo, um arrependimento que deixa escapar em suas confissões.

Usando sua influência política, o patriarca conseguiu remover Alcina para uma escola na comunidade de Gravatá, em Navegantes. 
A proibição não resolveu o caso. 
Obstinado, Arno e sua bicicleta percorriam trilhas escarpadas para chegar a Gravatá, sempre evitando o destacamento do exército brasileiro lotado em Penha. 
Eram tempos de guerra, e sua bicicleta corria o risco de ser reivindicada pelos soldados. 
A paixão dos jovens foi maior que a teimosia do grão senhor. Arno e Alcina se casaram, tiveram cinco filhos e viveram felizes. Até Alcina descobrir, anos depois, que Arno se engraçara por outra. 
Separaram-se.



Sem marido – e jamais voltaria a ter um – a prioridade foi o trabalho e os filhos. 
A menina serelepe e vivaz sempre coexistiu na personalidade da respeitada professora que Alcina se tornara. 
Num tempo em que a cidade fazia sua transição de comunidade rural para balneário urbano, Alcina se converteu numa das principais agitadoras culturais. 
Era uma acervista nata: de tudo fazia coleção, especialmente fotos e artigos de jornal. 
O interesse era antigo, nascido na adolescência. 
Antes de dar aulas em escolas, lecionava para crianças e trocava o pagamento por coisas, que aumentavam sua coleção. Seria, depois, uma das principais vozes da história local, mesmo sem jamais ter publicado um livro sobre o tema. 
Sua única obra publicada foi o título “Na Calada da Noite”, uma coletânea de poemas, financiada pelos filhos, realizando o velho sonho da menina que quisera ser escritora.
Alcina se convenceria no decorrer da vida que, mais importante do que deixar de ser pobre, era poder ser útil. 
------------ “Servir sempre foi o lema que adotei”, escreveu. Como coordenadora do Mobral na cidade, programa nacional de alfabetização de adultos entre as décadas de 60 e 80, mudou a história de centenas de pessoas. 
O reconhecimento local a levou ao governo de prefeitos de partidos diferentes, que distinguiram na professora sua qualidade e o compromisso suprapartidário com a educação, a cultura e o esporte. 
Num raro exemplo de homenagem em vida, Alcina de Oliveira Figueredo dá nome a uma escola primária municipal. 
Chegou a ser candidata à vice-prefeita, sem sucesso, mas veio a ser vereadora por alguns meses, substituindo um vereador doente. 
Sua inquietação intelectual a fez perguntar-se cada vez mais sobre os mistérios da vida e da morte. 
Desembocou nas respostas do Espiritismo e acabou ajudando a fundar o mais antigo centro espírita da cidade. 
Aposentada, não sossegou. 
Foi presidente fundadora da Associação de Aposentados e Pensionistas de Piçarras, que hoje congrega os mais animados da terceira idade.
De seus manuscritos, há ainda muito para se contar. 
De suas coleções, hoje espalhadas entre aqueles que a procuravam para fazer pesquisa, muita história a se escrever. Recolhida à discrição de seu apartamento em Gaspar, onde mora uma das filhas, Alcina se distancia do mundo, lentamente. ---------- “Envelheci. E agora? É, envelheci, que engraçado, estou só e senti que o melhor é saber envelhecer. Vive-se este fim de linha melhor. Qualquer dia, dirão: Morreu! Tão querida, tão boa, mas morreu! Ou, quem sabe, alguém dirá: “Já vai tarde…”. 
Há quem discorde. 
Alcina merece a reverência dos que ficam e seus cadernos podem, afinal, torná-la imortal.



Texto e fotos por Luiz Garcia in Revista Valeu, a revista cultural do vale europeu.
Alcina nasceu em 1923.
Ainda vive.

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