quarta-feira, 17 de julho de 2013

"CULTUCANDO"

Assim se chamava a coluna do professor José Renato Terra França no jornal "A Hora de São Miguel Arcanjo.
Nela, ele fazia adaptações personalizadas sobre crônicas de escritores famosos.
Aqui, uma delas.

ATITUDE SUSPEITA  

Sempre me intriga a notícia de que alguém foi preso "em atitude suspeita".
É uma frase cheia de significados.
Existiriam atitudes inocentes e duvidosas diante da vida e das coisas e qualquer um de nós estaria sujeito a, distraidamente, assumir uma atitude que dá cadeia?!

POLICIAL: - Delegado, prendi esta cidadã em atitude suspeita.
DELEGADO: - Ah, uma daquelas, é? O que estava fazendo? Como era a atitude?
POLICIAL: - Suspeita.
DELEGADO: - Compreendo. Bom trabalho, rapaz. E o que é que ela alega?
POLICIAL: - Diz que não estava fazendo nada e protestou contra a prisão. Uma petulante! Quer desafiar a polícia!
DELEGADO: - Hmm. Suspeitíssima! Se fosse inocente, não teria medo de vir dar explicações.
CIDADÃ: - Mas eu não tenho o que explicar! Sou inocente! Eu juro!
DELEGADO: - É o que todos dizem, minha camarada. A sua situação é preta. Temos ordem de limpar a cidade de pessoas em atitudes suspeitas.
CIDADÃ: - Mas eu só estava esperando o ônibus! Não pode esperar o ônibus?
POLICIAL: - Ela fingia estar esperando um ônibus, delegado. Foi o que despertou minha suspeita. Eu sou esperto.
DELEGADO: - Ah! Aposto que não havia nenhuma parada de ônibus por perto. Como é que ela explica isso?
POLICIAL: - Havia uma parada, sim, delegado. O que confirmou a minha suspeita. Ela obviamente escolheu uma parada de ônibus para fingir que esperava o ônibus sem despertar suspeita.
DELEGADO: - E a cara de pau ainda se declara inocente! Quer dizer que passava ônibus, passava ônibus... e ela ali, fingindo que o próximo era o dela? A gente vê cada uma...
POLICIAL: - Não, senhor delegado. No primeiro ônibus que apareceu, ela ia subir, mas eu a agarrei primeiro.
CIDADÃ: - Era o meu ônibus, o ônibus que eu pego todos os dias para ir pra casa! Sou inocente!
DELEGADO: - É a segunda vez que a senhora se declara inocente, o que é muito suspeito. Se é mesmo inocente, por que insistir tanto que é?
CIDADÃ: - E se eu me declarar culpada, o senhor vai me considerar inocente?
DELEGADO: - Claro que não. Nenhum inocente se declara culpado, mas todo culpado se declara inocente. Se a senhora é tão inocente assim, por que estava tentando fugir?
CIDADÃ: - Fugir como? Era segunda-feira, tarde da noite e eu estava indo embora.
DELEGADO: - Você ia fugir no ônibus, quando foi presa.  
CIDADÃ: - Mas eu não tentava fugir. Era o meu ônibus, o que eu tomo sempre! Todos os dias! Era o último ônibus! Eu tenho medo de andar a pé à noite. É muito perigoso!
DELEGADO: - Ora, minha amiga. A senhora pensa que alguém aqui é criança? A senhora estava fingindo que esperava um ônibus, em atitude suspeita, quando suspeitou deste agente da lei a seu lado, tentou fugir e...
CIDADÃ: -  Foi isso mesmo. Isso mesmo. Tentei fugir dele.
DELEGADO: - Ah, uma confissão!
CIDADÃ: - Porque ele estava em atitude suspeita, como o delegado acaba de dizer.
DELEGADO: - O que! Pense bem no que a senhora está dizendo. A senhora acusa este agente da lei de estar em atitude suspeita?
CIDADÃ: - Acuso. Estava fingindo que esperava um ônibus e na verdade estava me vigiando. Suspeitei da atitude dele e tentei fugir.
POLICIAL: - Delegado...
DELEGADO: - Cale-se! A conversa agora é outra. Como é que você quer que o público nos respeite, se nós também andamos por aí em atitude suspeita? Como você pode acusar, se você também é suspeito? Temos que dar o exemplo! A cidadã pode ir embora. Está solta. Quanto a você...
POLICIAL: - Delegado, com todo o respeito, esta atitude mandando soltar um suspeito que confessou estar em atitude suspeita, é um tanto quanto...
DELEGADO: - Um tanto quanto?
POLICIAL: - Suspeita!

Autor: Luis Fernando Veríssimo
Adaptado por José Renato Terra França, de São Miguel Arcanjo. 
Publicado no jornal A Hora de 19.06. 2.004.

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