sábado, 13 de julho de 2013

QUE BAHIA É ESSA?


Gleidson e Luciano. 
Dois meninos negros que cresceram juntos em Jaguaribe, na grande área de Cajazeiras, que com mais de 700 mil habitantes de baixa renda é quase outra cidade dentro de Salvador, capital da Bahia.
Gleidson, 20 anos, queria ser torneiro mecânico, já tinha feito um curso técnico e pretendia fazer outro. Vendia TV a cabo para ganhar a vida. 
A ambição era ter um bom emprego para sustentar a família que um dia iria formar, conta a tia. 
Luciano, 21 anos, também descrito por parentes como trabalhador e disciplinado, era Ogan de Oxossi (uma espécie de sacerdote no candomblé) no terreiro conduzido pelo pai de Gleidson, ali o babalorixá.
Há dois meses, no dia 13 de maio, ironicamente a data em que se celebra oficialmente o fim da escravidão, os dois amigos e vizinhos foram sequestrados em uma rua perto de suas casas por homens encapuzados que saíram de dois carros, um preto e um prata, e jogados no porta-malas. 
Por volta de 22h30, moradores vizinhos à Estrada Velha do Aeroporto, alguns quilômetros adiante, ouviram tiros nas cercanias de um lugar de desova utilizado por grupos de extermínio. 
Foram sete disparos em cada um dos garotos, que se somaram às estatísticas de cerca de 20 jovens assassinados por final de semana em Salvador – e pouco mais de uma linha na notícia de jornal.
Os corpos de Luciano e Gleidson foram levados ao IML no início da madrugada do dia 14 de maio.
Os laudos cadavéricos demoraram quatro meses para sair.
Faltava documentação para consumar o reconhecimento dos dois e os legistas do IML trabalham só até às 16 horas. Um princípio de incêndio encerrou o expediente mais cedo e as famílias partiram sem os corpos dos meninos.
O IML Nina Rodrigues tem esse nome em homenagem a um médico adepto da teoria lombrosiana, tristemente célebre na América Latina pela famigerada afirmação de que o cérebro do negro é inferior ao do branco. 
Nina Rodrigues também defendeu a esterilização para aperfeiçoamento da espécie humana como método de prevenção do crime.
A família de Luciano teve que fazer o enterro na quinta-feira, porque não tinha vaga no Cemitério Municipal de Brotas.
Do lado de fora, policiais com fuzis paravam motos e carros para uma blitz. 
Um grupo que fumava crack nos fundos do cemitério decidiu sair dali, assim como uma senhorinha à procura de um bico para garantir o alimento do dia.
O silêncio é uma maneira de proteger a dignidade das vítimas, ameaçada pela acusação que pesa contra os que são assassinados pela polícia. 
Luciano era filho de santo e pelas leis do candomblé tem que voltar para o chão, devolver a terra emprestada por Oxalá para dar vida e forma ao homem. Não pode ser enterrado em carneiro (cemitério vertical, com gavetas). 
A história do menino Luciano acabou em um epitáfio sem nome, identificado apenas como o C 48 QE do Cemitério de Brotas.
Entre 2009 a 2012, 6.483 pessoas foram assassinadas em Salvador – a maior parte das vítimas na faixa dos 19 aos 24 anos. Cerca de 80% são afrodescendentes.
Outra pesquisa, essa realizada pelo Fórum Comunitário de Combate à Violência (FCCV) apontou que entre 1998 e 2004, das 6.308 pessoas assassinadas em Salvador, 5.852 eram negras ou pardas. 
A polícia não sabe quantificar o percentual praticado por grupos de extermínio, mas estudos realizados por organizações da sociedade civil e pesquisadores da Universidade Federal da Bahia entre 1996 e 1999 (“A Outra Face da Moeda”, 2000, CJP), quando 3.369 pessoas foram mortas em Salvador, os crimes cometidos por grupos de extermínio representavam 10,8% – e 46% dos acusados identificados eram policiais.
A existência de crimes com características de extermínio em Salvador foi admitida publicamente pelas autoridades baianas durante a greve da Polícia Militar no Estado, de 31 de janeiro a 11 de fevereiro de 2012. 
À época, o delegado Arthur Gallas, diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), declarou que 45 homicídios dos 187 ocorridos nesses doze dias tinham características de extermínio: as vítimas, a maioria delas moradores de rua, “foram algemadas ou amarradas, e atingidas na cabeça por assassinos encapuzados, que chegaram ao local em carros com placas clonadas e armados com munição de grosso calibre”.
Apenas sete assassinatos e duas tentativas de homicídio, porém, esses cometidos em duas chacinas que mataram 32 pessoas na noite de 3 de fevereiro, a mais violenta da greve, foram encaminhados para o Ministério Público. 
Os suspeitos dessas duas chacinas, os militares Donato Ribeiro Lima, Willen Carvalho Bahia, Samuel Oliveira Menezes, e Jair Alexandre dos Santos chegaram a ser presos, mas retornaram às ruas meses depois por determinação judicial sob condição de não se aproximar de parentes das vítimas e com a obrigação de comparecer trimestralmente em juízo.
Dados da Corregedoria Geral da Secretaria de Segurança Pública mostram que, entre 2011 e 2012, as mortes ocorridas nos chamados autos de resistência passaram de 97 para 151, 124 provocadas por PMs, outras 27 por policiais civis, e 22 em ações conjuntas das duas polícias.
E essa violência tem endereço, como constata o Mapa da Violência de 2012: para cada branco assassinado, 15 negros são executados na capital. 
Os bairros com maiores índices de execução dos grupos de extermínio na capital baiana, segundo diversos relatórios, dentre eles o da CPI do Extermínio do Nordeste (2003 a 2005): Boiadeiro, Lobato, Plataforma, Paripe, Periperi, Coutos (Subúrbio Ferroviário), Bairro da Paz, Itapuã, São Caetano, Pirajá, Cajazeiras XI, Patamares, Vila Canária, Sete de Abril, Liberdade, Engenho Velho da Federação, Vale das Pedrinhas, Valéria, Palestina e Nordeste de Amaralina, além de Simões Filho.
O tempo passa, mas o modo de agir desses grupos permanece inalterado. 
Homens com capuzes (chamado de brucutu) sequestram jovens durante a noite e a madrugada, usando carros com placas frias. As vítimas são eliminadas e os corpos deixados em pontos de desova próximos ao local do sequestro.
Na região metropolitana de Salvador, a cidade de Simões Filho foi classificada pelo mesmo estudo como a que mais mata negros jovens (400 por 100 mil habitantes) no país. O
 governo Jaques Wagner montou duas frentes de trabalho no município de Simões Filho para investigar homicídios e também os locais de encontro de cadáveres. 
O coordenador de ambas as frentes, porém, é o delegado titular do município, Adan Filho,, apontado pela CPI de Extermínio do Nordeste (2005) como integrante de um desses grupos. Segundo os parlamentares, 30 crimes desse tipo são atribuídos ao delegado, entre eles tortura e homicídios.
Segundo ele, até outubro do ano passado quatro corpos por semana eram desovados nesse local. Sendo assim, ao final de 12 meses, 192 pessoas teriam sido mortas por esses grupos, e não apenas as 77 contabilizadas, oito além superior do número total de homicídios anunciados por ele (184).
O Ministério Público Estadual acusa a polícia de não investigar 80% dos homicídios em Salvador e região metropolitana. Dos 1.659 assassinatos registrados em 2012, 1.340 não tiveram sequer inquérito instaurado, estima o coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas e de Investigações Criminais (Gaeco) do Ministério Público da Bahia, promotor Ariomar Figueiredo.
- “A polícia diz que faz perícia em todos os casos, mas essa documentação nunca vem anexada”, diz Figueiredo.
O promotor explica ainda que o laudo cadavérico, importante para o oferecimento da denúncia, demora muito tempo para ser emitido pelo IML – entre três a quatro meses, como no caso de Gleidson e Luciano. 
- “Seria importante termos o laudo em mãos em 48 horas no máximo, mas ele não sai porque os delegados insistem em pedir exames de alcoolemia e toxologia da vítima. Não estou dizendo que eles são desnecessários. Entendemos que são exames orbitais. O principal para nós é saber a quantidade de tiros, o tipo de arma, ter o croqui do corpo com entrada e saída dos projeteis, o resultado da perícia, as fotografias”.
Mesmo quando chegam ao júri, casos que envolvem policiais têm resultados insuficientes, diz o promotor: “Há hoje uma legislação mais rigorosa se constatado que o crime foi cometido por um grupo de extermínio, mas na hora da efetivação dessas punições há um abrandamento. Crime de policial militar, por exemplo, a gente faz uma hora e meia ou mais de sustentação oral no júri, mostrando que o cidadão responde a mais três ou quatro crimes, comprovando que as testemunhas são ameaçadas, mas os próprios jurados ficam atemorizados. Resultado: os camaradas saem sem condenação, muitas vezes reintegrados à corporação”, relata o promotor.
Segundo ele esses esquadrões da morte normalmente agem nos bairros mais pobres de Salvador, que têm população majoritariamente negra. 
- “Esses grupos surgiram como uma ação de ‘assepsia’, como justiceiros, para eliminar da área aqueles que representassem uma ameaça ao negócio local, normalmente na periferia. Agem com uma lógica própria. Bandido para essas pessoas é quem eles acham que é. O perfil das vítimas é invariavelmente jovem e negro, com passagem ou não pela polícia. A lentidão da Justiça, a sensação de impunidade e uma certa chancela da sociedade colaboram para o aumento de homicídios”, detalha a promotora Ana Rita Cerqueira Nascimento, integrante do Conselho Nacional do Ministério Público e responsável por denúncias que levaram à condenação por homicídios diversos cinco policiais militares e um civil que integravam um grupo de extermínio em Santo Antonio, a 150 Km de Salvador.
- “Hoje, vemos esses grupos com uma dinâmica de milícia, associados ao tráfico”, diz, confirmando a percepção de Figueiredo. “O extermínio é muito fluído. Temos casos de pessoas que eram ligadas ao crime e denunciaram policiais civis que iniciaram como ‘parceiros’ do tráfico e, de olho no rendimento, mataram o traficante e posteriormente começaram a eliminar os próprios colegas”, conta. 
- “Por isso, não faço muita separação se é grupo de extermínio formado por policial civil, por militar, segurança particular, se é X-9, ou traficante, o fato é que resulta sempre na mesma coisa: a morte de um ser humano”, conclui o promotor.
11.07.13/ Lena Azevedo

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