terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

"UMA LEMBRANÇA DE SARTRE"


MARIA DE LOURDES TEIXEIRA nasceu no dia 25 de março de 1907 na cidade de São Pedro, no estado de São Paulo.
Fiquei conhecendo um pouco de sua biografia há poucos dias. Por certo nem haveria biografia a ser publicada se ela não tivesse tomado uma atitude na vida, deixando de ser simplesmente uma dona de casa.
A atitude?
Vamos lá: quando ainda estudante, colaborava em jornais do interior e já conhecia Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade. 

Aconteceu que veio a casar-se muito cedo e o marido proibiu que ela continuasse com a publicação de seus trabalhos literários. 
Como a vocação de Maria de Lourdes era escrever, ela DESQUITOU-SE para poder dedicar-se a ela inteiramente.
Foi romancista, contista, ensaísta, tradutora e conferencista consagrada por numerosas distinções: Prêmio da Academia Brasileira de Letras, Prêmio da APL, Prêmio do Pen Clube, Prêmio da Câmara Brasileira do Livro, Prêmio da Prefeitura Municipal de São Paulo, medalha Infante Dom Henrique, medalha Dona Leopoldina, Colar de Dom Pedro I, medalha Mário de Andrade do Governo do Estado, medalha do Pen Clube, além de ter sido a PRIMEIRA MULHER A OCUPAR UMA CADEIRA NA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, evento que aconteceu em 1969, quando ela sucedeu a René Thiollier na cadeira de número 12, do fundador Alberto Seabra, cujo patrono é Paulo Egídio. 
Esta cadeira desde 2009 está sendo ocupada por Paulo Nathanael Pereira de Souza, de intelectualidade mais reduzida. 
Não fora sua atitude, também não teria conhecido pessoalmente Jean-Paul Sartre, muito menos escrito sobre ele, como se lê no texto a seguir que foi retirado de um exemplar da Revista da Academia Paulista de Letras, intitulado Uma Lembrança de Sartre:

"Ao ouvir num jornal de televisão a notícia da morte de Sartre, emoções confusas me assaltaram. Não somente o pesar pelo desaparecimento do escritor, do filósofo, de uma das mentalidades mais poderosas do nosso século, de uma consciência sempre atenta às suas responsabilidades perante o mundo, de um pensamento defensor da dignidade e dos direitos humanos, mas ao mesmo tempo me tomou uma profunda saudade de dias passados em que o conheci, em circunstâncias bem outras que as atuais - esta solitária velhice de quem vos fala e que outrora tão intensamente viveu.
Conheci pessoalmente Jean-Paul Sartre. Encontrei-o uma vez em Paris, no café de La Rotonde, e, mais tarde, aqui em São Paulo, em companhia de Simone de Beauvoir, de quem eu traduzira o romance "Les Mandarins". Mas a primeira vez que o vi foi há perto de trinta anos, em Viena, por ocasião de certo Congresso da Paz, que reuniu escritores e artistas do mundo inteiro, e ao qual compareci em minha função de jornalista.
Após escalas no Galeão, no aeroporto de Guararapes, na charneca tórrida de Dacar, em Lisboa e Paris, parti para a Áustria, via Zurique. Viena me atraía, pois era a primeira vez que a visitava e já pensava no Danúbio, em orquestras sinfônicas, no Ring, no Prater, em Graz, em Mozart, Haydn, Strauss e até mesmo em Lehar.
Era dezembro. E para quem vinha do trópico e já em Paris se defrontara com o frio e a neve, descer nos antigos campos de Vindobona ( ou Flaviana Castra), enfrentando o vento cortante, que sopra das vertentes geladas do Wienerwald, era sem dúvida uma aventura e uma provação. 
Lembro-me de que um ônibus, todo envidraçado, nos conduziu ao centro da cidade dos Habsburgos, um dédalo de palácios barrocos, de parques e jardins coroados pela monumentalidade da catedral de Santo Estêvão, e em cujo núcleo sombrio o Burgo ostenta sua catadura ainda imperial.
A velha cidade regurgitava de estrangeiros de todas as partes do mundo, com delegações de perto de oitenta países, que durante horas e horas tornavam repleto o edifício denominado Konzerthaus, sede do congresso e que - conforme o próprio nome indica - destinava-se a concertos. Diferentes raças, diferentes línguas, vestimentas as mais exóticas, cerca de duas mil pessoas ali se reuniam, instaladas confortavelmente em poltronas, e ouviam, traduzidos, os discursos  e as intervenções de oradores que debatiam os pontos da agenda.
Eram homens e mulheres, intelectuais, artistas, poetas, professores, cientistas, religiosos de todos os credos, representantes de todas as profissões, ali aglomerados com um só objetivo - a paz mundial. 
Entre os escritores lá estavam, em meio a centenas de outros, Sartre, Aragon, Alfredo Varela, Ilya Ehrenburg, Hervé Bazin, Elsa Triolet, Pablo Neruda, Rafael Arberti, Ana Seghers, Miguel Angel Asturias, José Geraldo Vieira, Jorge Amado. 
E, entre centenas de artistas, Braque e Picasso.
Sem dúvida, um dos pólos do interesse geral era Jean-Paul Sartre, cuja atitude favorável à livre discussão com caráter concreto já se tornara conhecida por seus artigos em "Temps Modernes".
Como figura humana, Sartre era por certo bem diferente do que eu imaginara. Baixo, entroncado, ruivo, sardento, mal vestido, com os dentes escuros e como que lixados ou esmerilhados, o olho direito proeminente e vesgo sob os óculos de aro grosso e grossas lentes, tinha um ar "poncif" quando falava em público e era muito categórico. Mas em conversa, nos corredores ou no café, mostrava-se acessível, apesar de sisudo. Não tinha as maneiras finas e distintas de Aragon, parecia um tanto aburguesado, ouvia sempre os discursos com os fones sobre as orelhas; mas, uma vez no bar, ia assinando autógrafos e concedendo entrevistas a jornais do mundo inteiro. 
Logo no terceiro dia tomamos juntos uma "moca" rente ao balcão, na sala repleta de fumaça dos cigarros e cachimbos (inclusive do próprio Sartre), enquanto das janelas divisávamos através das vidraças uma multidão vienense patinando na pista gelada anexa ao Konzerthaus.
Aproveitei a oportunidade e entrevistei-o rapidamente para o meu jornal, fazendo-lhe algumas perguntas.
Ele refletiu por instantes. Depois, pausadamente, como a dar tempo para que eu tomasse as minhas notas, ou como se suas palavras não passassem de um solilóquio, disse em voz baixa:
- Bem. A paz, a paz universal. Um projeto, um compromisso, uma perspectiva para muitos irrealizável. Explico: as nações e suas ideias são análogas aos homens. Têm o seu tempo, um tempo muito íntimo, que também vai da infância à juventude, da maturidade à velhice. Assim, também as nações desempenham seus papéis na perspectiva do futuro. E esses papéis, essas ações, estão ligados ao passado, pois é ele que condiciona o futuro. Daí a dificuldade de conquistar a paz. Como projetá-la no porvir se o passado sempre condicionou a sobrevivência à luta constante para escapar à destruição? Além disso, paz e liberdade nem sempre se ajustam quanto ao eu e quanto aos outros. Todos sabem o que penso da liberdade, de todas as liberdades. As nações, como os homens, estão destinadas a ser livres, porque se criaram a si mesmas. Ambos, homens e nações, lançados no mundo, são responsáveis por sua conduta. Mas os homens e as nações tendem para o mais baixo, e a moral individual em  muito se assemelha à moral coletiva. Todavia, a essência de ambas não é ditada pela natureza, não encontramos seus sinais no mundo. Livre é a escolha entre o Bem e o Mal. E quem escolhe o Mal nele encontrará um Bem, já que o sentimento é construído por nossos atos. Com então acreditar em paz, e universal?
Fez uma pausa. Seu rosto assumiu nova expressão. Talvez não tivesse respondido às minhas perguntas. Talvez estivesse apenas argumentando consigo mesmo. Depois, baixando com complacência ao ambiente real e objetivo ao qual concedia a sua presença, talvez com certo arrependimento por haver com suas palavras fechado as portas à estrita finalidade do Congresso, concluiu dizendo ser claro que a guerra fria tentava dividir o mundo e cada país em dois. Que mesmo no interior de cada nação se viam milhares de pessoas, compatriotas honestos, se desentendendo, muito embora estivessem igualmente ansiando por liberdades individuais e ansiando pela paz pessoal, coletiva e universal. Estranhava que até então a defesa da paz parecesse manobra das esquerdas a camuflar outras intenções. E terminou por afirmar que tais opiniões não passavam de uma tendência maniqueísta a exigir que o mundo, os jornais, o rádio, os espíritos lúcidos desfizessem o mal-entendido. Tinha, entretanto, esperança no futuro. Sim. Tinha esperança.
E foi mais ou menos essa tese que desenvolveu mais tarde, longamente, quando ocupou a tribuna, ouvido por milhares de pessoas às quais os tradutores ajudavam vertendo para sete idiomas as suas palavras, cuja audição os potenciômetros facilitavam através dos fones.
Esse o homem que, em meio à violência do mundo atual, às injustiças sociais, à corrida para as armas atômicas, à renascente guerra fria, pouco antes de morrer declarou em entrevista à imprensa, como há trinta anos passados, que ainda tinha esperança.
Uma firme esperança no desenvolvimento histórico que nos conduzirá a um futuro melhor, no qual os homens de todos os países, de todos os credos, de todas as raças, possam viver em paz uma existência não mistificada, em boas relações uns com os outros, alcançando afinal o ideal de fraternidade e justiça que deve ser o objetivo de quem quer que mereça o nome e a condição de criatura humana".
   

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