P/1 - O seu nome, o nome de seus pais, a data de nascimento e onde o senhor nasceu?
R - Meu nome é Paulo Reglus Neves Freire, sou filho de Joaquim Temístocles Freire, nascido no Rio Grande do Norte, e de Edeutrudes Neves Freire, nascida no Recife, Pernambuco. Ambos obviamente falecidos. Seria uma coincidência muito feliz, não? Meu nome é Paulo Freire, quer dizer, eu já disse meu nome inteiro, sou conhecido como Paulo Freire, nasci em 19 de setembro de 1921 no Recife.
P/1 - Queria primeiro que o senhor falasse sobre a sua infância? A relação com a família, o cotidiano, as brincadeiras...
R - Bem, eu nasci, como acabo de dizer, em 1921, e portanto, na década que viveu a experiência, a primeira grande experiência de quebra da economia capitalista. Quer dizer, foi exatamente na década em que começou a grande crise de 29, e isso teve uma influência grande, uma repercussão grande sobre a minha família. Minha família é uma família de classe média relativamente bem aquinhoada e que sofre um impacto grande com a grande crise capitalista. De tal maneira que meu pai... Meu pai era oficial da Polícia Militar de Pernambuco, mas um homem também de classe média, do Rio Grande do Norte. E pelo lado de minha mãe a família tinha uma situação econômica melhor. Mas a crise de 29 incide exatamente sobre o lado materno, e isso provocou, na família, a experiência de certas necessidades básicas. Quer dizer, num primeiro momento, a repercussão da crise, como era normal, afeta certos gostos supérfluos. Então, se a família de minha mãe costumava ter na velha casa grande onde eu nasci, na Estrada do Encanamento, no Recife, se a velha casa grande recebia duas vezes por mês amigos para almoço, começou a rarear isso. Eu sei que em 26, por exemplo, em 27, a coisa já não ia nada bem e a situação começou a se agravar, e a gente começou a ter cortes maiores. Depois, em 29, a partir dos primeiros anos de 30, as dificuldades eram tais que nós, eu, pelo menos, me lembro de que nós começamos a ter uma experiência, mesmo que discreta, ainda que não tão dramática, mas uma certa experiência de limitação ou de diminuição na própria comida em casa. Quer dizer, passamos a comer menos. E isso tudo era compensado pelas fruteiras, pelos frutos, pelas árvores frutíferas que nós tínhamos não apenas no quintal da nossa casa, mas também nos outros quintais. Mas em 34 a coisa se agravou de tal maneira... Não, em 32, que a gente foi obrigado, minha avó perdeu essa casa grande onde eu nascera, em Casa Amarela, um grande sítio. Não houve possibilidade de recuperá-la, e dessa maneira nós fomos obrigados, a família, eu era menino, foi obrigada a largar o Recife e a se adentrar um pouco para o interior, numa espécie assim de solução mágica que a família dava, pra ver se saindo do centro urbano, mais forte, era possível sobreviver. E aí então minha família se muda do Recife para Jaboatão, que é uma cidade a 18 quilômetros do Recife. Ela, hoje, apesar de manter sua autonomia política, ela hoje está a dez, 15 minutos do centro do Recife, é uma cidade quase que um prolongamento do Recife, mesmo que seja autônomo o seu governo municipal. Naquela época, ir a Jaboatão era uma espécie de viagem. Eu me lembro do dia da mudança: eu fui com o meu pai num caminhão, com os últimos "terens" da gente, possivelmente no segundo ou terceiro caminhão. E era um dia todo, não havia calçamento sequer. No entanto, hoje você faz isso com uma rapidez enorme. Fomos lá para Jaboatão num lugar chamado Morro da Saúde, que sempre quis ir, que sempre vou, toda a vez que posso. E lá então eu tive uma experiência, a primeira continuidade da crise, que até se agravou mais ainda. Meu pai tinha sido reformado muito jovem, por questão de saúde, não trabalhava. A sociedade brasileira é fechada demais. Na época não havia o que fazer, mesmo, e ele passava o dia em casa, ou lendo ou trabalhando numa oficinazinha que ele mesmo montou, fazendo gaiolas, fazendo isso, fazendo aquilo, e a gente ao lado dele. Então nós tivemos a vantagem de, tendo sofrido a crise, ter tido a presença paterna, numa sociedade machista como a nossa, uma cultura machista como a nossa, tivemos a chance, por acidente, de conviver diretamente com a figura paterna, que é uma coisa também fundamental, coisa importante. Mas lá, em Jaboatão, onde eu aprendi muita coisa... Em primeiro lugar, aprendi a ampliar o meu mundo, por que no Recife o meu mundo, na Estrada do Encanamento onde eu nasci, se adstringia ou se restringia ao quintal mesmo grande da casa, e em Jaboatão esse mundo cresceu um pouco. Eu era um menino que mudei também de sociologia, porque quando eu deixei o Recife fui morar em Jaboatão na beira de um rio, então aí mudando a sociologia mudei um pouco também a psicologia, mudei a ecologia, quer dizer, passei a sofrer influências que eu não sofria antes, e que foram muito interessantes para mim, muito marcantes. Quer dizer, eu ampliei o universo de amizade, passei a ter em Jaboatão meninos que ficaram meus amigos e até hoje um ou outro ainda sobrevive, e que eram meninos filhos de camponeses ou filhos de trabalhadores urbanos, por exemplo, da cidade ferroviária na época, que era Jaboatão. Mas a experiência da fome cresceu de um lado, mas era fome de mercado.(risos) De produtos do mercado. Aí a gente não tinha dinheiro pra comprar. Mas não havia a fome rigorosa porque a gente tinha as frutas em abundância e bem mais fáceis do que quando a gente morava no Recife. Naquela época, realmente, morando onde eu morei, em 1932, em Jaboatão, dificilmente uma criança podia passar um dia inteiro sem comer. Porque podia passar até um mês sem comer feijão, por exemplo, sem comer carne, mas não passava, e isso teria repercussões, claro. Mas não passava sem comer. Porque havia manga, havia jaca, havia banana, havia, ainda... Além do mais havia ovos também, de galinhas andarilhas que punham pelo quintal dos outros, no mundo. Esses terrenos eram o Mundo e, portanto, eu era um menino do mundo e achava os ovos das galinhas incautas. E então trazia os ovos pra casa e não só eu, mas meus irmãos e minha mãe comiam. Éramos quatro, hoje somos três. Morreu o mais velho. Recentemente. Mas, essa experiência, que foi uma experiência de um lado de fome, do outro uma experiência de discriminação. Eu via, por exemplo, como os meninos de classe média abastada, por exemplo, discriminavam os meus colegas, os meus amigos filhos de camponeses, por exemplo. E nos encontrávamos no sítio, num lugar, num espaço, num terreno em que, mesmo com discriminação, era possível uma convivência, que é exatamente em um campo de futebol. No bate-bola havia uma convivência que escondia as discriminações. Mas eu entrevia e percebia. Talvez percebesse mais do que entendesse a discriminação, e sempre me pus contra. Quer dizer, desde menino que eu quase que me arrepiava diante de qualquer manifestação discriminatória. Não importa de que. Discriminação... Até, já naquela época, discriminação religiosa. Me irritava, me irritava discriminação racial, me irritava discriminação contra a classe, por exemplo, o que eu não entendia como classe, mas entendia como o menino pobre, contra o menino preto, etc. Eu não... Eu ainda não me arrepiava, naquela época, na infância, era contra a discriminação que só depois de muito tempo eu percebi, que é a discriminação do sexo. A discriminação machista contra a importância e contra os direitos da mulher. Ali era meio difícil que eu percebesse porque eu era também um produto dessa cultura machista. Eu estava sendo de certa forma moldado machistamente para reproduzir exatamente a ideologia machista que eu devo ter reproduzido durante algum tempo. Mas depois me consertei. Acho que hoje sou pelo menos um pouco menos machista do que era. Agora, mas o que eu queria salientar a vocês, e a quem depois, sei lá, daqui há anos me escute, pra me estudar, era a importância de certas privações. Na época, a importância que essas privações proporcionaram. A própria experiência de uma fome não austera demais, não rigorosa demais, foi importante para mim. Foi fundamental. Porque eu era um menino que tinha uma constante que era a de ser curioso. Curioso como o menino é, e todo o ser humano é. Eu até diria que o fenômeno vital é curioso, em si. Mas eu vivia a curiosidade. Eu me indagava muito, muito mais a mim mesmo do que aos outros. E me perguntava, eu procurava. Para entender porque eu não comia e outros comiam. Quer dizer, desde tenra idade eu me preparava para me opor às injustiças sociais mais tarde, quando jovem, quando homem, quando adulto, etc. Eu comecei a me lançar no esforço político - pedagógico e então tudo isso veio à tona. Quer dizer, as memórias de mim mesmo me ajudaram, isso que eu chamo de tramas, me ajudaram a me entender nas tramas de que eu fiz parte e a descobrir a dimensão política e ideológica disso tudo, e a questão do poder. Então, em síntese, se você me pergunta: “Ô Paulo, você acha que sua infância foi trágica?” Eu digo: “Não, foi dramática”. Quer dizer, eu pude oferecer, anos depois, a meus filhos, uma infância e uma adolescência que eu não tive. Mas nem por isso me tornei um pai licencioso, e um pai que procurava oferecer, custasse o que custasse aos filhos, o que ele não tinha tido. Eu nunca achei que isso também era correto, era uma boa pedagogia. Mas eu fiz tudo o que era possível, só não fiz o impossível, o impossível que eu achava que não podia ser feito. Nem devia ser trabalhado. Mas tudo para que os meus filhos tivessem experiências um pouco melhores, mais favoráveis. Mas, se você me pergunta ainda: “Você acha que você aproveitou a tragicidade ou a problematicidade da sua infância?" eu diria que: "Acho que sim, e acho que ela, apesar de tudo, foi pra mim altamente positiva como apontamento de caminhos, como colocação de dúvidas, de incertezas, e como descoberta de certos valores que me são hoje ainda caros. Em síntese, eu acho que é isso que eu podia te dizer da infância, da adolescência. O meu gosto da vida, o meu gosto da vida vem de lá.
P/1 - Como você mudou, estudou, saiu pra trabalhar...
R - Ah, bem. Esse é um momento importante, e que tem a ver com a tua pergunta. Eu tinha, na verdade, um enorme gosto pelo estudo. Mas chegou, pra vocês terem uma ideia, eu entrei, eu fiz um exame chamado de admissão, e entrei no primeiro ano com 16 anos de idade. Quer dizer, exatamente quando colegas meus, de geração, estavam entrando na universidade. Ou na faculdade, naquela época. Quer dizer, eu fui um estudante que começou atrasado. Minha escolaridade foi uma escolaridade tardia. E você poderia então perguntar: “E você perdeu, então, muito tempo”. Não, não perdi. Eu acho que você não vive perdendo tempo à toa. Eu não estava escolarizando-me na escola, eu estava educando-me no mundo. Eu posso não ter feito a escola primária durante aquele período em que não fiz, mas eu aprendi muitas coisas fora da escola. E apesar da escola. Mas por outro lado, havia uma dificuldade para eu estudar, por exemplo. O Recife na época só tinha um grande ginásio oficial, com uma carga enorme, e o resto eram algumas escolas privadas. E eu não tinha dinheiro. Eu não tinha condição de entrar na escola oficial, que era muito exigente, tinha que entrar naquele ginásio, chamado Ginásio Pernambucano, que era uma coisa seríssima. Realmente, era como fazer certos vestibulares para certas universidades muito famosas, e o que é pior, eles reprovam. E eu não tinha dinheiro e minha família não podia pagar uma escola privada. E eu não tinha também como me preparar muito bem para enfrentar o chamado exame de admissão ao ginásio. Com muito sacrifício eu fiz um exame de admissão através de uma escola privada, que fazia provas num outro colégio, era uma complicação, até que já eu esqueço. Quando terminei o primeiro ano de ginásio, eu fiquei na iminência de não ter a continuidade. De não ter o segundo ano. Então, minha mãe procurava, quase todo o dia ela vinha ao Recife procurar, com uma grande ternura, ver se achava uma escola privada que me desse uma bolsa de estudos. Voltava, triste, que não tinha encontrado. E sempre voltava, e eu ficava em casa esperando. E ela então lá um dia, ela saiu e disse: “Paulo, hoje vai ser minha última tentativa.” E quando voltou, veio risonha e feliz e me disse que tinha encontrado. Na verdade ela passou nesse dia por uma rua do Recife, e viu lá uma grande placa escrito Ginásio Oswaldo Cruz, entrou e falou com o diretor que, por coincidência, é o pai exatamente de minha segunda mulher hoje, pai da Nita - que tinha quatro anos naquele tempo. E de quem fui professor depois. E ela falou com o Dr. Aloísio, que era o pai dela, e ele disse: “Está bem, se o seu filho for estudioso, não tem problema, eu dou o estudo a ele.” E foi aí que eu entrei, e tenho hoje uma grande dívida, eu quero um enorme bem a ele, que já morreu, em absoluto grato a ele e a mãe de Nita, que está viva, com 90 anos hoje no Recife. E eles me receberam no colégio e eu fiz lá então do segundo ano do ginásio até o último ano do curso chamado pré-jurídico, que eu terminei fazendo o curso de Direito. E lá eu me tornei professor, também. Eu tinha um gosto, que continuo, que preservo hoje, um gosto muito grande por problemas de linguagem. E estudei muito a chamada gramática, ou a sintaxe da língua portuguesa, e me tornei professor do próprio colégio, depois. E daí em diante eu nunca mais parei de gostar de estudar. Mas o meu gosto não era pela advocacia. Eu descobri isso no começo, logo, agora acabei de escrever um livro onde eu conto essa história. A minha primeira causa, ainda para me formar, foi com um jovem dentista que comprou um equipo dentário e não pôde pagar. E eu era advogado do credor dele. E chamei-o ao meu escritório, ele veio, começou a conversar comigo, era um sujeito da minha idade e disse: “É Dr. Paulo, eu não posso pagar e o Sr. não vai poder me acionar contra , não pode tomar meus instrumentos de trabalho.” A lei não permitia, realmente. “Nem tão pouco minha filhinha. Mas os meus móveis o Sr. pode tomar." E eu deixei de ser advogado naquele dia. Eu disse pra ele: “Olhe, vá para casa, passe no mínimo 15 dias em paz, com tua mulher, porque daqui a 15 dias eu vou devolver essa causa. E o teu credor vai ter mais uma semana pra arranjar outro advogado como eu, e aí é que vai te aperrear de novo, daqui uns 15 a 20 dias." E larguei. Até hoje, definitivamente. E me dediquei exclusivamente à Pedagogia. Foi daí pra cá que eu comecei e aí depois fui trabalhar no SESI, de Pernambuco, onde eu tive toda, assim, uma experiência fantástica, que me deu a possibilidade de refletir teoricamente sobre o que eu via e o que eu fazia e escutava. E isso tudo, o Paulo Freire de hoje vem não só disso, mas através disso.
P/1 - O Sr. chegou a ser professor da Universidade do Recife?
R - Sim, terminei sendo professor de História, de Filosofia da Educação, da Universidade do Recife. E foi exatamente como professor da Universidade do Recife que eu fiz, que eu defendi uma tese universitária. Que eu acho que é ainda hoje atual, profundamente atual, essa tese anunciava a Pedagogia do oprimido, como anunciava o livro que eu termino agora, que eu terminei, que vai se chamar Pedagogia da Esperança. Essa tese tinha as matrizes disso tudo, e eu defendi essa tese. E num concurso, com uma concorrente, não fui reprovado, mas tirei o segundo lugar. E foi defendendo essa tese que eu ganhei legalmente o título de Doutor em Pedagogia. Não fiquei com a chamada cátedra, antigamente, hoje você nem se sabe mais o que é isso, mas fiquei com o título de doutor, e fui confirmado como professor adjunto na Faculdade de Filosofia, em outra faculdade. Essa tese, que se chamou Educação e Atualidade Brasileira, foi ou teve núcleos centrais básicos, que se desdobraram depois no livro Educação como Prática da Liberdade. E que anunciavam também a Pedagogia do Oprimido que escrevi depois, aí já no exílio.
P/1 - E quando o Sr. começou a colocar em prática o seu trabalho? Aí já tem toda uma filosofia de educação. Como o Sr. começou a colocar em prática?
R - Antes, eu coloquei tudo em prática e aprendi a perceber a teoria dessa prática quando eu trabalhei no SESI, os dez anos. Foram dez anos de intensa pesquisa, ao lado de um estudo muito sistemático, teórico, que eu fazia constantemente comigo mesmo. Trabalhei então no Recife durante toda essa época, ora assessorando grupos que trabalhavam em escolas primárias, ora trabalhando diretamente, eu mesmo, com adultos, em educação popular. Não tenho dúvida nenhuma de que aquele período dos anos, dos fins dos anos 40 e todos os anos 50, foram profundamente fundamentais do ponto de vista da minha formação política e da minha formação científica, também ideológica, mas nos morros do Recife, nos córregos do Recife, nas áreas rurais de Pernambuco. Aí então eu criei, por exemplo, o serviço de Extensão Cultural da Universidade de Pernambuco, que existe ainda hoje, formação de quadros pra professores, pra jovens, estudantes, até chegar o governo de Goulart quando, sendo o Ministro da Educação Paulo de Tarso, aqui de São Paulo, foi secretário do Montoro, da Educação, ele me carrega pra Brasília pra eu coordenar o Plano de Alfabetização Nacional, em 1963. Antes disso, em 61, creio, em 62, nós fizemos um grande trabalho em Angicos, no Rio Grande do Norte, sob a liderança do então jovem Marcos Guerra (?) que é hoje o secretário de educação do estado do Rio Grande do Norte. Marcos era estudante universitário na época e eu fiz um trabalho em Angicos, com o secretário da Educação do Rio Grande do Norte da época, que me procurou em Recife, e me levou pra lá. Eu fiz uma série de exigências de ordem política ao então governador do RN, ele aceitou as exigências e nós fizemos um bonito trabalho em Angicos com a juventude. Se alfabetizaram 300 e tantas pessoas num período de dois meses, por aí, ou três. E o João Goulart foi ao encerramento desse trabalho e viu aquilo, ficou muito tocado por aquele trabalho que se realizou no RN. Em seguida, o ministro dele da época, que ainda era um paulista até também, saiu do ministério e ele levou o Paulo de Tarso. Quando o Paulo de Tarso chegou ao ministério, me trouxe para implantar esse plano de alfabetização, que foi abortado, precisamente, pelo golpe.
P/1 - O Sr. lembra do fechamento de Angicos, eu li isso numa reportagem no jornal, com as autoridades todas, um senhor de 70 anos que falou que "maior que a fome da barriga é a fome da cabeça"?
R - Inclusive ele fez um discurso, foi muito interessante, porque o Presidente da República já tinha encerrado a reunião, quando ele pede a palavra. Quer dizer, não tinha nada que ver com os protocolos. Ele pede a palavra pra falar e me lembro que um dos presentes da comitiva do Presidente disse assim: “Êta, quebrou o protocolo!" Ele virou-se e disse: “Quebrei o que?” E ninguém respondeu mais. E aí o João Goulart, que era um homem muito simples, o presidente Goulart, disse: “Pois não, pode falar”. Ele levantou, e disse: “Alteza...” - chamou o Presidente Goulart de Alteza. (risos) Aí, disse: “Me lembro de que, uma vez", mais ou menos assim, "houve uma fome muito grande nesse Estado, e outro Presidente, que era o Getúlio Vargas, veio aqui ao RN para ajudar a gente a sair da fome da barriga. E hoje veio Vossa Alteza pra ajudar a gente a matar outra fome, a fome da cabeça, a fome do saber.” Depois ele disse uma coisa que a imprensa, todo o mundo deu. Ele disse: “Nós aprendemos aqui, Presidente, mais do que assinar o nome, do que ler um bilhete. Nós aprendemos aqui a mudar, também.” Sim, porque o João Goulart tinha citado no discurso dele a leitura da carta do ABC do país, que era a Constituição. E ele disse: “Nós aprendemos, presidente, mais do que ler a carta do ABC do Brasil, aprendemos a mudar ela também.”. Isso é uma coisa fantástica! E esta afirmação dele não foi citada pela imprensa na época. Não foi. Mas ele disse isso. E deve ter agravado essa frase dele, ele deve ter agravado os líderes do golpe em seguida. Se deu. Se deu no ano seguinte. E eu me lembro que estava presente nessa reunião, e ouviu essas frase, o general, então general, o marechal Castelo Branco. E ele estava presente, e era na época comandante do IV Exército. E ele foi pra lá. Mas naquela altura... Ora, você imagina, isso deve ter sido junho de 63... O golpe foi em abril de 64. Quer dizer, naquela altura, o Castelo Branco tinha já o esquema todo do golpe. Não há dúvida. E ouviu essa frase desse homem. Depois ele falou comigo e disse: “Professor, eu acho que o Sr. defende uma pedagogia sem valores.” Eu nunca esqueço desse papo com o Castelo Branco. Eu disse: “Não, general, eu acho que pelo contrário, eu... Não, ele falou uma pedagogia sem hierarquia. É, parece que era isso. E eu disse: "Não, o Sr. está equivocado, eu defendo valores e os valores estabelecem hierarquias. Agora, o que eu acho é que a hierarquia que está aí montada e estabelecendo princípios, pra nós, está precisando mudar. Eu acho que está montada em bases injustas, etc.” E ele falou pra mim: “E o Sr. aceita de falar pra nós no IV Exército?”; “Falo onde o Sr. quiser.” Mas não deu mais nem tempo. E eu acho que aquele discurso acabou, né? Porque o discurso daquele homem não ajudou, de jeito nenhum, o amaciamento do golpe. Deve ter, eu não diria que o discurso do homem foi causa do golpe. Seria uma loucura da minha parte, a história não é tão simples assim. Mas o discurso do homem deve ter aguçado um pouco as preocupações conservadoras de então. Quer dizer, hoje, você vê como a história é bonita Um discurso desse, hoje, não deixaria muita gente demasiado assustada. Só um ou outro, mais conservador. Mas naquela época, um discurso desse assustaria 99% dos conservadores.
P/1 - O Sr. não estava contando outro dia a história do raio da morte?
R - O raio da morte era uma coisa... Porque a gente estava convencido, na época, já, de que era preciso usar tecnologia. Quer dizer, você não pode transformar educação, reduzir a educação à tecnologia. Precisa mais do que isso. Mas você não pode negar, primeiro, a possibilidade do uso, segundo a eficácia do uso. Só que a gente queria fazer isso de forma que não onerasse demais o próprio povo, e não era possível estar pensando na importação de projetores norte-americanos que custavam 22, 25 dólares, na época. Que era muito dinheiro pra época. E a gente vivia procurando um jeito de como é que pode projetar, quando é um dia eu recebo um telegrama do teu pai, ou uma carta, porque ele tem muito humor. E ele dizia: “Descobrimos o raio da morte.” E eu fiquei sem saber (risos) que diabo era. Imagine só que, felizmente, não encontraram esse telegrama, porque se o exército tivesse pegado esse telegrama, tinha sido uma complicação dos demônios, quando eu fui preso. E teu pai ia pra cadeia também: "Que raio da morte é esse?" O raio da morte que ia matar o exército todo. Muita coisa foi assim, que se fez. E o raio da morte era um projetor que o teu pai, o Calazans, andou inventando com não sei quem mais, por lá. Eu não sei bem descrever o raio da morte, mas sei que ele jogava com um negócio de uma lâmpada, uma lanterna, e o fato é que o raio da morte projetava. Direitinho. E o povo adorava. Mas olhe, o trabalho de Angicos, eu até disse pro Marcos, quando ele assumiu, valia a pena fazer uma pesquisa, que nunca foi feita, uma pesquisa pra levantar, não apenas do ponto de vista da alfabetização, que foi feita na época, que possivelmente se tenha acabado, não é? Mas entre os que viveram aquela experiência, ver as influências no campo da política, por exemplo. Eu estive com o homem do discurso, há 10 anos atrás, quando eu cheguei do exílio houve uma comemoração lá em Natal, eu fui e ele estava também. No almoço. E lembramos tudo, etc. Porque houve greves, durante aquele trabalho, houve a primeira grande greve de operários da indústria. Uma coisa linda! É... Eles se juntaram, se mobilizaram, em função da discussão política que eles tinham, e partiram para defender seus direitos. E fizeram a greve e foram vitoriosos. No começo, me disse o Marcos, isso até, houve uma tentativa de os municípios vizinhos a Angicos remeterem os seus empregados pra lá em caminhões pra acabar com a greve, pra fazer o fracasso da greve. E os estudantes, que eram os educadores, souberam disso e foram com os próprios operários para o meio da estrada e paravam os caminhões que vinham das outras cidades e faziam preleções aos outros operários e eles voltavam. Aí a greve vingou. Quer dizer, isso é um exemplo extraordinário! Você já imaginou se a gente pudesse hoje estudar isso com gente da época, pegar essa memória, isso, pra mostrar a importância de um trabalho feito em três meses, três meses, no sentido da cidadania? No sentido da invenção da cidadania? Quer dizer, uma educação lúcida, uma educação crítica. Mas o Marcos estava até muito animado, mas ele mesmo não pode levar...
P/1 - O Sr. trabalhou diretamente junto aos estudantes?
R - Trabalhei! Eu capacitei, eu levei a equipe minha da Universidade do Recife pra Natal, e lá nós capacitamos a equipe central dos estudantes, que por sua vez capacitou outras. E eu ia constantemente a Natal, de Natal ia a Angicos pra observar in loco o processo. Minha filha Madalena, quando tinha 15 anos, trabalhou lá, substituiu um dia um dos coordenadores que adoeceu, e ela fez um lindo trabalho. Essa foi possivelmente a primeira manifestação da Madá enquanto educadora, com 15 anos.
P/1 - Vou mudar um pouquinho de assunto, depois voltamos. Queria que o Sr. contasse sobre o seu casamento, namoro...
R - Eu estou tendo a segunda experiência de casamento. Na primeira, de que nasceram Madalena, Fátima, Cristina, Joaquim, Lurdes, eu era muito jovem, casei com 23 anos, e encontrei um dia no mundo Elza, que é a mãe dos filhos meus. E nós fizemos um bem assim enorme um ao outro. Um apaixonamento profundo. E vivemos 42 anos juntos. Elza era professora, uma educadora pra mim de um senso, uma sensibilidade prática enorme, com uma capacidade de entender sua própria prática, também, muito sensível, no gosto do seu silêncio. Quer dizer, ela falava pouco, mas observava muito, e era muito querida pelas colegas, querida pelos alunos, e fez uma carreira pedagógica bonita no Recife. Ela foi professora, depois foi diretora de grupo, mas teve aí um gesto lindo que foi, depois do golpe, a solidariedade absoluta que ela teve comigo. Elza ia me visitar na cadeia e nunca disse a mim: “Você está vendo, Paulo, se você tivesse pensado mais...” Nunca. Quer dizer, ela foi solidária, absolutamente solidária. Fui para o exílio e ela foi comigo e os filhos para o exílio, e com isso ela perdeu 27 anos de trabalho. Porque pra ir ela teve que pedir demissão, e ao pedir demissão ela perdeu 27 anos de trabalho. E quando voltou, nenhum Governo reconsiderou o seu próprio pedido. Ela morreu com essa mágoa, com essa tristeza. De ter pedido demissão porque não podia deixar de pedir. Se não tivesse pedido demissão ela teria sido demitida por abandono e ela achava horrível ser demitida por abandono. Então, pediu demissão. Quer dizer, a minha vida foi com... Com ela, nos 42 anos , uma vida de namorados, realmente. Ela me deu um apoio extraordinário, me deu sempre uma força enorme. Eu costumo sempre dizer que Elza me provocava até no silêncio dela, me desafiava até no silêncio dela. Me acompanhou durante todo o exílio, e viajou muito comigo tanto quanto ela pôde, porque eu sempre defendia essa tese de não viajar só. Eu não gosto de dormir só. E ficava com ela o tempo todo, e quando eu viajava, eu exigia que quem me convidava que pagasse as despesas dela. Agora, ela não pôde viajar tanto quanto Nita hoje viaja. Porque ela tinha filhos pequenos pra cuidar e tinha uma casa com a responsabilidade de filhos pequenos. No meu segundo casamento, nem Nita tem filhos pequenos nem eu tenho filhos pequenos. Então, somos dois adultos que podemos andar pelo mundo afora, então Nita viaja mais do que Elza viajou, mas por isso. Não é porque é a segunda, mas porque teve uma circunstância que a outra não teve. Obviamente não teria. Mas Elza morreu, quando, em certo sentido eu esperava, mas em outro eu nunca esperava. Porque no fundo você nunca espera a dor terrível que significa o corpo do outro parar. E eu tive essa experiência trágica de perder Elza no meu corpo, no meu peito. E foi uma coisa dramática. Eu senti um desgosto de viver, houve uma ruptura enorme que se pôs diante de mim, entre mim e o mundo, entre mim e a vida. E eu me desencantei. E me amofinei. E meus filhos, meus amigos mais próximos, mais íntimos, duvidavam até de se eu era capaz de dar o salto depois. É interessante. Sabe, hoje estou convencido, possivelmente até muita gente estranhou, que tendo eu vivido tão intensa e plenamente com Elza, 42 anos, que eu me casasse de novo. Possivelmente, quer dizer, todo o mundo tem direito a fazer conjecturas em torno da vida dos outros. E, possivelmente até eu, que se não fosse comigo, poderia ter feito essa conjectura, como outro qualquer. Depois de ter experimentado o que eu experimentei, nunca mais eu faço essa conjectura com outro qualquer. E eu hoje estou convencido de que quanto mais você amou, tanto mais você pode continuar a amar. E quanto menos você pôde amar, tanto menos você continua a poder amar. A minha experiência com Elza tinha sido uma experiência tão plena , tão enorme e tão fantástica, que eu não pude ficar só. Não dava. Quer dizer, eu tinha que continuar amando. Mas, pra que eu continuasse a amar era preciso que eu sepultasse Elza. E o que eu quero dizer com isso, que ela já havia sido sepultada no dia seguinte ao da sua morte.... Mas você pode sepultar uma pessoa em 1992, e manter a pessoa viva até o ano 2000, ou 2010, quer dizer, você passa a ter uma experiência necrofílica. E você deixa de amar a vida, e passa a amar a morte. Da tentativa de ressuscitar o morto, que não dá, porque o teu poder não é suficiente para plenamente ressuscitar o morto. Então, é preciso sepultar o grande amor, é preciso reconhecer ou assumir a ausência dele. No momento em que você assume a ausência, a ausência muda de qualidade. Já não é uma ausência dramática e dolorida, porque passa a começar a virar uma presença remota. A ausência se veste de uma saudade. Risonha. Em que você convive com a positividade do passado. Aí então você está disposto de novo a reabrir-se ao mundo. E é isso que tem que ser feito. E não há dúvida nenhuma que é isso que tem que ser feito. E não ficar eu dentro de casa morrendo, e morrer com a responsabilidade que eu acho que cada um de nós tem com o mundo. Em níveis diferentes, você é tão responsável pelo mundo quanto eu por você. Só que em níveis diferentes. Nós somos essa responsabilidade. Eu não tinha o direito de renunciar ou de fugir a essa responsabilidade porque Elza já não estava no mundo. Então nesse... Foi exatamente nesse clima emocional e pouco racional também, afetivo, crítico, ingênuo etc, que Nita, que tinha sido, como te contei já, aluna minha, menina, e que depois era muito amiga de mim e de Elza, nós éramos muito amigos os dois casais. Elza gostava muito de Nita. Nita enviuvou. Morreu o marido dela antes da Elza. Onze meses antes, alguns meses antes. E Nita ficou também chocadíssima, muito traumatizada e quando ainda Elza era viva, ela me procurou para eu orientar a tese dela. Elza também me pediu isso e eu aceitei. Era a tese sobre mestrado dela. E começou-se a trabalhar ainda Elza viva. Quando Elza morreu, eu largo tudo, eu só fazia chorar, ouvir música e tomar uísque. Não saía de casa, era uma coisa. Primeiro jantar que eu fui, eu fui ao restaurante, eu fiquei profundamente culpado. Como é que eu estou num restaurante, com Elza morta. Eu vivia assim, culpando-me por tudo. Quando eu retomei o trabalho com Nita e com a Universidade, lá um dia eu descubro que Nita podia ser mais do que a amiga que vinha sendo. E ela também descobriu isso, em mim. Nos descobrimos, afinal de contas, numa perspectiva até então não percebida. Éramos apenas bons amigos. E eu o orientador do trabalho dela. Então, aí nos acertamos para viver uma vida diferente. Uma coisa que até a Nita me disse nos começos de nossa aventura, ela me disse: “É correto, eu não tenho como substituir Elza, ou continuá-la, como você não tem que substituir Raul ou continuá-lo. Quer dizer, não se trata da substituição ou da continuidade. Mas se trata de começarmos juntos outro momento de nossas vidas. Porque se a gente tenta pensar que o outro está substituindo o que saiu, ou o que perdeu ou o que morreu, a gente não faz a volta." Aí o tal negócio que eu falei antes. É preciso sepultar primeiro Elza, sepultar Raul, pra que os dois que ficaram vivos pudessem, em paz, sem culpas, recriar-se, um com o outro. E essa coisa não é fácil. Essa coisa você tem que enfrentar. Análise dos demais, as críticas, restrições, eu respeito muito a opinião dos outros, mas aí é preciso ver a minha e dela, e nenhum filho meu tinha o direito de interferir nisso. Nem eu reconheceria a nenhum deles esse direito. Obviamente que comuniquei a eles, comuniquei, não pedi licença. Porque eu achava que era um absurdo que eu pedisse licença, como eles não tinham que pedir licença a mim, nem nunca pediram licença, nem pra casar. Então eu não tinha porque pedir licença a eles, mas tinha o dever de comunicar a eles, né? Creio que no começo devem ter também se chocado, uns mais do que outros, mas eu acho que... Era natural isso, mas cada um a seu jeito vem superando sua surpresa e descobrindo que era melhor o pai vivo, surpreendendo-os, do que o pai morto para ser coerente. E era isso mais ou menos o que eu tinha que dizer.
P/1 - O Sr. não vai tocar no assunto do seu exílio...
R - Mas é porque eu tenho feito muito isso em livro, ( risos) sabe? Porque se eu tocar nisso aqui agora eu acho que a gente vai passar, o tempo vai estourar, viu, da entrevista. (risos) É toda uma vida, e aliás tem coisas lindas, pra conversar sobre isso. E eu também não me furtaria a dar esta entrevista. Acho que isso é um trabalho excelente que se faz aqui. Eu acho que guardar um pouco das memórias do país é um tempero da gente, e eu acho que eu tenho alguma importância na história nossa. E é um dever meu até fazer isso. Agora, eu não posso é... Porque eu tenho agorinha um compromisso com uns professores europeus. Agora, em segundo lugar, se isso for possível, porque também depende dos critérios de vocês, em relação a tempo, se isso for possível, aí um dia você marca comigo de novo, e aí e eu venho cá, e aí a gente faz mais duas horas ( risos). Porque eu tenho muita coisa bonita pra dizer. Essas passagens todas eu tenho dito isso em livro, mas tenho a impressão que dizer com o corpo, com a imagem, é mais forte. Mais forte. Depois, o tipo de clientela que vê isso, não é necessariamente o que lê. De maneira que então é... Estou à disposição. Isso que eu quero dizer.
P/1 - Para fechar, queria que o Sr. falasse sobre um sonho...
R - Olha, puxa... Em primeiro lugar, eu, até agora, nesse livro que acabei de escrever, eu falo muito dos sonhos. E chego a dizer que o sonho não é apenas um direito e é até um dever que a gente tem, mas que o sonho faz parte da natureza do ser que nós, mulheres e homens, estamos sendo. Ou seja, em outras palavras, não era possível ser esse ser que somos, você vê até que do ponto de vista genético, nós somos seres muito especiais. Nós somos seres programados, realmente, mas não determinados. E a nossa programação é uma programação que se funda numa coisa com a qual a gente nasce, mas a gente recria, que é isso que eu chamo de a curiosidade diante do mundo. E por isso, então, nós somos também seres, e hoje estamos sendo também seres que não resistimos a continuar a viver sem estar envolvidos num pensamento permanente sobre o amanhã. É inviável o ser humano continuar se ele parar de pensar no amanhã. Não importa que seja um pensamento o mais ingênuo possível, o mais imediato, o de se a gente vai ter café amanhã, ou se a gente vai ler ou reler Hegel ou Marx. Não importa. Nós somos seres de tal maneira constituídos que o presente, o passado e o futuro nos enlaçam. A minha tese então é a seguinte: Não posso, não pode existir um ser permanentemente preocupado com o vir a ser, portanto com o amanhã, sem sonhar. É inviável. Sonhar aí não significa sonhar a impossibilidade, mas significa projetar. Significa arquiteturar, conjecturar sobre o amanhã. E quando tu me perguntas, a questão agora é saber qual é o sonho em torno desse amanhã. Segundo a questão fundamental é saber com que sonho, e contra que sonho. Porque eu não posso sonhar em favor de alguma coisa, se não sonho contra outra. Que é exatamente aquela que obstaculiza a realização do meu sonho. Eu não posso sonhar se eu não estou claro também com a favor de quem eu sonho. Daí que o ato de sonhar seja um ato político. Um ato ético, e um ato estético. Quer dizer, não é possível sonhar sem boniteza e sem moralidade e sem opção política. E eu quero saber, quando você me diz: "Paulo, eu também sonho e eu quero saber com que e a favor de quem você sonha. Qual é o sujeito beneficiário do teu sonho. É a burguesia que explora ou é a massa deserdada que sofre?" E não basta que você me diga: "Eu sonho pela humanidade", porque a humanidade é uma abstração e não existe. Entende? Então agora, quando você me pergunta: "Paulo, me diga qualquer coisa sobre seu sonho", eu diria: o meu sonho fundamental é o sonho pela liberdade que me estimula a brigar pela justiça. Pelo respeito do outro. Pelo respeito à diferença. Pelo respeito ao direito que o outro tem e a outra tem de ser ele ou ela mesma. Quer dizer, o meu sonho é que nós inventemos uma sociedade menos feia do que a nossa de hoje. Menos injusta, que tenha mais vergonha. Esse é o meu sonho. O meu sonho é um sonho da bondade e da beleza.
P/1 - Se puder deixar uma mensagem para futuras gerações...
R - Olha, seria de novo a mensagem em torno do sonho. Quer dizer, eu diria aos jovens que hoje possivelmente não me verão aqui porque não estão ainda curiosos para fazer estudos e pesquisa, porque eles estão ficando de tal maneira envolvidos com o seu sonho... A juventude brasileira, é fantástico isso. Veio pras praças e veio pras ruas. Mas veio agora de uma forma muito mais gostosa do que a minha geração, que não conseguiu vir. A tua não pôde também. Enquanto a geração de jovens, por exemplo, de quando eu era maduro vinha pras ruas brasileiras, também, pras praças públicas, defendendo teses de que era preciso que as mulheres jovens tivessem só um jeans, uma blusa só, que lavasse no sábado, de noite, em casa, porque ter duas blusas significava burguesia. Que era preciso ser feia, que não podia estar cuidado da cara, porque isso era burguês. A juventude de hoje, a meninada, vem pra rua hoje, pinta as suas caras. Inventou a geração da cara–pintada , da cara cheia de cor, da boniteza. Afinal de contas, despreocupada de se isso é ingenuidade burguesa, pré-burguesa ou revolucionária ou nada. Quer dizer, a juventude veio disponível à invenção. Disponível ao amor. Então, quando tu me pedes uma palavra, eu te diria, essa juventude é que está me mandando mensagens. Eu só gostaria agora era de dizer nos meus 71 anos a essa juventude que eu a entendo. Que eu sou também um cara-pintada.
R - Meu nome é Paulo Reglus Neves Freire, sou filho de Joaquim Temístocles Freire, nascido no Rio Grande do Norte, e de Edeutrudes Neves Freire, nascida no Recife, Pernambuco. Ambos obviamente falecidos. Seria uma coincidência muito feliz, não? Meu nome é Paulo Freire, quer dizer, eu já disse meu nome inteiro, sou conhecido como Paulo Freire, nasci em 19 de setembro de 1921 no Recife.
P/1 - Queria primeiro que o senhor falasse sobre a sua infância? A relação com a família, o cotidiano, as brincadeiras...
R - Bem, eu nasci, como acabo de dizer, em 1921, e portanto, na década que viveu a experiência, a primeira grande experiência de quebra da economia capitalista. Quer dizer, foi exatamente na década em que começou a grande crise de 29, e isso teve uma influência grande, uma repercussão grande sobre a minha família. Minha família é uma família de classe média relativamente bem aquinhoada e que sofre um impacto grande com a grande crise capitalista. De tal maneira que meu pai... Meu pai era oficial da Polícia Militar de Pernambuco, mas um homem também de classe média, do Rio Grande do Norte. E pelo lado de minha mãe a família tinha uma situação econômica melhor. Mas a crise de 29 incide exatamente sobre o lado materno, e isso provocou, na família, a experiência de certas necessidades básicas. Quer dizer, num primeiro momento, a repercussão da crise, como era normal, afeta certos gostos supérfluos. Então, se a família de minha mãe costumava ter na velha casa grande onde eu nasci, na Estrada do Encanamento, no Recife, se a velha casa grande recebia duas vezes por mês amigos para almoço, começou a rarear isso. Eu sei que em 26, por exemplo, em 27, a coisa já não ia nada bem e a situação começou a se agravar, e a gente começou a ter cortes maiores. Depois, em 29, a partir dos primeiros anos de 30, as dificuldades eram tais que nós, eu, pelo menos, me lembro de que nós começamos a ter uma experiência, mesmo que discreta, ainda que não tão dramática, mas uma certa experiência de limitação ou de diminuição na própria comida em casa. Quer dizer, passamos a comer menos. E isso tudo era compensado pelas fruteiras, pelos frutos, pelas árvores frutíferas que nós tínhamos não apenas no quintal da nossa casa, mas também nos outros quintais. Mas em 34 a coisa se agravou de tal maneira... Não, em 32, que a gente foi obrigado, minha avó perdeu essa casa grande onde eu nascera, em Casa Amarela, um grande sítio. Não houve possibilidade de recuperá-la, e dessa maneira nós fomos obrigados, a família, eu era menino, foi obrigada a largar o Recife e a se adentrar um pouco para o interior, numa espécie assim de solução mágica que a família dava, pra ver se saindo do centro urbano, mais forte, era possível sobreviver. E aí então minha família se muda do Recife para Jaboatão, que é uma cidade a 18 quilômetros do Recife. Ela, hoje, apesar de manter sua autonomia política, ela hoje está a dez, 15 minutos do centro do Recife, é uma cidade quase que um prolongamento do Recife, mesmo que seja autônomo o seu governo municipal. Naquela época, ir a Jaboatão era uma espécie de viagem. Eu me lembro do dia da mudança: eu fui com o meu pai num caminhão, com os últimos "terens" da gente, possivelmente no segundo ou terceiro caminhão. E era um dia todo, não havia calçamento sequer. No entanto, hoje você faz isso com uma rapidez enorme. Fomos lá para Jaboatão num lugar chamado Morro da Saúde, que sempre quis ir, que sempre vou, toda a vez que posso. E lá então eu tive uma experiência, a primeira continuidade da crise, que até se agravou mais ainda. Meu pai tinha sido reformado muito jovem, por questão de saúde, não trabalhava. A sociedade brasileira é fechada demais. Na época não havia o que fazer, mesmo, e ele passava o dia em casa, ou lendo ou trabalhando numa oficinazinha que ele mesmo montou, fazendo gaiolas, fazendo isso, fazendo aquilo, e a gente ao lado dele. Então nós tivemos a vantagem de, tendo sofrido a crise, ter tido a presença paterna, numa sociedade machista como a nossa, uma cultura machista como a nossa, tivemos a chance, por acidente, de conviver diretamente com a figura paterna, que é uma coisa também fundamental, coisa importante. Mas lá, em Jaboatão, onde eu aprendi muita coisa... Em primeiro lugar, aprendi a ampliar o meu mundo, por que no Recife o meu mundo, na Estrada do Encanamento onde eu nasci, se adstringia ou se restringia ao quintal mesmo grande da casa, e em Jaboatão esse mundo cresceu um pouco. Eu era um menino que mudei também de sociologia, porque quando eu deixei o Recife fui morar em Jaboatão na beira de um rio, então aí mudando a sociologia mudei um pouco também a psicologia, mudei a ecologia, quer dizer, passei a sofrer influências que eu não sofria antes, e que foram muito interessantes para mim, muito marcantes. Quer dizer, eu ampliei o universo de amizade, passei a ter em Jaboatão meninos que ficaram meus amigos e até hoje um ou outro ainda sobrevive, e que eram meninos filhos de camponeses ou filhos de trabalhadores urbanos, por exemplo, da cidade ferroviária na época, que era Jaboatão. Mas a experiência da fome cresceu de um lado, mas era fome de mercado.(risos) De produtos do mercado. Aí a gente não tinha dinheiro pra comprar. Mas não havia a fome rigorosa porque a gente tinha as frutas em abundância e bem mais fáceis do que quando a gente morava no Recife. Naquela época, realmente, morando onde eu morei, em 1932, em Jaboatão, dificilmente uma criança podia passar um dia inteiro sem comer. Porque podia passar até um mês sem comer feijão, por exemplo, sem comer carne, mas não passava, e isso teria repercussões, claro. Mas não passava sem comer. Porque havia manga, havia jaca, havia banana, havia, ainda... Além do mais havia ovos também, de galinhas andarilhas que punham pelo quintal dos outros, no mundo. Esses terrenos eram o Mundo e, portanto, eu era um menino do mundo e achava os ovos das galinhas incautas. E então trazia os ovos pra casa e não só eu, mas meus irmãos e minha mãe comiam. Éramos quatro, hoje somos três. Morreu o mais velho. Recentemente. Mas, essa experiência, que foi uma experiência de um lado de fome, do outro uma experiência de discriminação. Eu via, por exemplo, como os meninos de classe média abastada, por exemplo, discriminavam os meus colegas, os meus amigos filhos de camponeses, por exemplo. E nos encontrávamos no sítio, num lugar, num espaço, num terreno em que, mesmo com discriminação, era possível uma convivência, que é exatamente em um campo de futebol. No bate-bola havia uma convivência que escondia as discriminações. Mas eu entrevia e percebia. Talvez percebesse mais do que entendesse a discriminação, e sempre me pus contra. Quer dizer, desde menino que eu quase que me arrepiava diante de qualquer manifestação discriminatória. Não importa de que. Discriminação... Até, já naquela época, discriminação religiosa. Me irritava, me irritava discriminação racial, me irritava discriminação contra a classe, por exemplo, o que eu não entendia como classe, mas entendia como o menino pobre, contra o menino preto, etc. Eu não... Eu ainda não me arrepiava, naquela época, na infância, era contra a discriminação que só depois de muito tempo eu percebi, que é a discriminação do sexo. A discriminação machista contra a importância e contra os direitos da mulher. Ali era meio difícil que eu percebesse porque eu era também um produto dessa cultura machista. Eu estava sendo de certa forma moldado machistamente para reproduzir exatamente a ideologia machista que eu devo ter reproduzido durante algum tempo. Mas depois me consertei. Acho que hoje sou pelo menos um pouco menos machista do que era. Agora, mas o que eu queria salientar a vocês, e a quem depois, sei lá, daqui há anos me escute, pra me estudar, era a importância de certas privações. Na época, a importância que essas privações proporcionaram. A própria experiência de uma fome não austera demais, não rigorosa demais, foi importante para mim. Foi fundamental. Porque eu era um menino que tinha uma constante que era a de ser curioso. Curioso como o menino é, e todo o ser humano é. Eu até diria que o fenômeno vital é curioso, em si. Mas eu vivia a curiosidade. Eu me indagava muito, muito mais a mim mesmo do que aos outros. E me perguntava, eu procurava. Para entender porque eu não comia e outros comiam. Quer dizer, desde tenra idade eu me preparava para me opor às injustiças sociais mais tarde, quando jovem, quando homem, quando adulto, etc. Eu comecei a me lançar no esforço político - pedagógico e então tudo isso veio à tona. Quer dizer, as memórias de mim mesmo me ajudaram, isso que eu chamo de tramas, me ajudaram a me entender nas tramas de que eu fiz parte e a descobrir a dimensão política e ideológica disso tudo, e a questão do poder. Então, em síntese, se você me pergunta: “Ô Paulo, você acha que sua infância foi trágica?” Eu digo: “Não, foi dramática”. Quer dizer, eu pude oferecer, anos depois, a meus filhos, uma infância e uma adolescência que eu não tive. Mas nem por isso me tornei um pai licencioso, e um pai que procurava oferecer, custasse o que custasse aos filhos, o que ele não tinha tido. Eu nunca achei que isso também era correto, era uma boa pedagogia. Mas eu fiz tudo o que era possível, só não fiz o impossível, o impossível que eu achava que não podia ser feito. Nem devia ser trabalhado. Mas tudo para que os meus filhos tivessem experiências um pouco melhores, mais favoráveis. Mas, se você me pergunta ainda: “Você acha que você aproveitou a tragicidade ou a problematicidade da sua infância?" eu diria que: "Acho que sim, e acho que ela, apesar de tudo, foi pra mim altamente positiva como apontamento de caminhos, como colocação de dúvidas, de incertezas, e como descoberta de certos valores que me são hoje ainda caros. Em síntese, eu acho que é isso que eu podia te dizer da infância, da adolescência. O meu gosto da vida, o meu gosto da vida vem de lá.
P/1 - Como você mudou, estudou, saiu pra trabalhar...
R - Ah, bem. Esse é um momento importante, e que tem a ver com a tua pergunta. Eu tinha, na verdade, um enorme gosto pelo estudo. Mas chegou, pra vocês terem uma ideia, eu entrei, eu fiz um exame chamado de admissão, e entrei no primeiro ano com 16 anos de idade. Quer dizer, exatamente quando colegas meus, de geração, estavam entrando na universidade. Ou na faculdade, naquela época. Quer dizer, eu fui um estudante que começou atrasado. Minha escolaridade foi uma escolaridade tardia. E você poderia então perguntar: “E você perdeu, então, muito tempo”. Não, não perdi. Eu acho que você não vive perdendo tempo à toa. Eu não estava escolarizando-me na escola, eu estava educando-me no mundo. Eu posso não ter feito a escola primária durante aquele período em que não fiz, mas eu aprendi muitas coisas fora da escola. E apesar da escola. Mas por outro lado, havia uma dificuldade para eu estudar, por exemplo. O Recife na época só tinha um grande ginásio oficial, com uma carga enorme, e o resto eram algumas escolas privadas. E eu não tinha dinheiro. Eu não tinha condição de entrar na escola oficial, que era muito exigente, tinha que entrar naquele ginásio, chamado Ginásio Pernambucano, que era uma coisa seríssima. Realmente, era como fazer certos vestibulares para certas universidades muito famosas, e o que é pior, eles reprovam. E eu não tinha dinheiro e minha família não podia pagar uma escola privada. E eu não tinha também como me preparar muito bem para enfrentar o chamado exame de admissão ao ginásio. Com muito sacrifício eu fiz um exame de admissão através de uma escola privada, que fazia provas num outro colégio, era uma complicação, até que já eu esqueço. Quando terminei o primeiro ano de ginásio, eu fiquei na iminência de não ter a continuidade. De não ter o segundo ano. Então, minha mãe procurava, quase todo o dia ela vinha ao Recife procurar, com uma grande ternura, ver se achava uma escola privada que me desse uma bolsa de estudos. Voltava, triste, que não tinha encontrado. E sempre voltava, e eu ficava em casa esperando. E ela então lá um dia, ela saiu e disse: “Paulo, hoje vai ser minha última tentativa.” E quando voltou, veio risonha e feliz e me disse que tinha encontrado. Na verdade ela passou nesse dia por uma rua do Recife, e viu lá uma grande placa escrito Ginásio Oswaldo Cruz, entrou e falou com o diretor que, por coincidência, é o pai exatamente de minha segunda mulher hoje, pai da Nita - que tinha quatro anos naquele tempo. E de quem fui professor depois. E ela falou com o Dr. Aloísio, que era o pai dela, e ele disse: “Está bem, se o seu filho for estudioso, não tem problema, eu dou o estudo a ele.” E foi aí que eu entrei, e tenho hoje uma grande dívida, eu quero um enorme bem a ele, que já morreu, em absoluto grato a ele e a mãe de Nita, que está viva, com 90 anos hoje no Recife. E eles me receberam no colégio e eu fiz lá então do segundo ano do ginásio até o último ano do curso chamado pré-jurídico, que eu terminei fazendo o curso de Direito. E lá eu me tornei professor, também. Eu tinha um gosto, que continuo, que preservo hoje, um gosto muito grande por problemas de linguagem. E estudei muito a chamada gramática, ou a sintaxe da língua portuguesa, e me tornei professor do próprio colégio, depois. E daí em diante eu nunca mais parei de gostar de estudar. Mas o meu gosto não era pela advocacia. Eu descobri isso no começo, logo, agora acabei de escrever um livro onde eu conto essa história. A minha primeira causa, ainda para me formar, foi com um jovem dentista que comprou um equipo dentário e não pôde pagar. E eu era advogado do credor dele. E chamei-o ao meu escritório, ele veio, começou a conversar comigo, era um sujeito da minha idade e disse: “É Dr. Paulo, eu não posso pagar e o Sr. não vai poder me acionar contra , não pode tomar meus instrumentos de trabalho.” A lei não permitia, realmente. “Nem tão pouco minha filhinha. Mas os meus móveis o Sr. pode tomar." E eu deixei de ser advogado naquele dia. Eu disse pra ele: “Olhe, vá para casa, passe no mínimo 15 dias em paz, com tua mulher, porque daqui a 15 dias eu vou devolver essa causa. E o teu credor vai ter mais uma semana pra arranjar outro advogado como eu, e aí é que vai te aperrear de novo, daqui uns 15 a 20 dias." E larguei. Até hoje, definitivamente. E me dediquei exclusivamente à Pedagogia. Foi daí pra cá que eu comecei e aí depois fui trabalhar no SESI, de Pernambuco, onde eu tive toda, assim, uma experiência fantástica, que me deu a possibilidade de refletir teoricamente sobre o que eu via e o que eu fazia e escutava. E isso tudo, o Paulo Freire de hoje vem não só disso, mas através disso.
P/1 - O Sr. chegou a ser professor da Universidade do Recife?
R - Sim, terminei sendo professor de História, de Filosofia da Educação, da Universidade do Recife. E foi exatamente como professor da Universidade do Recife que eu fiz, que eu defendi uma tese universitária. Que eu acho que é ainda hoje atual, profundamente atual, essa tese anunciava a Pedagogia do oprimido, como anunciava o livro que eu termino agora, que eu terminei, que vai se chamar Pedagogia da Esperança. Essa tese tinha as matrizes disso tudo, e eu defendi essa tese. E num concurso, com uma concorrente, não fui reprovado, mas tirei o segundo lugar. E foi defendendo essa tese que eu ganhei legalmente o título de Doutor em Pedagogia. Não fiquei com a chamada cátedra, antigamente, hoje você nem se sabe mais o que é isso, mas fiquei com o título de doutor, e fui confirmado como professor adjunto na Faculdade de Filosofia, em outra faculdade. Essa tese, que se chamou Educação e Atualidade Brasileira, foi ou teve núcleos centrais básicos, que se desdobraram depois no livro Educação como Prática da Liberdade. E que anunciavam também a Pedagogia do Oprimido que escrevi depois, aí já no exílio.
P/1 - E quando o Sr. começou a colocar em prática o seu trabalho? Aí já tem toda uma filosofia de educação. Como o Sr. começou a colocar em prática?
R - Antes, eu coloquei tudo em prática e aprendi a perceber a teoria dessa prática quando eu trabalhei no SESI, os dez anos. Foram dez anos de intensa pesquisa, ao lado de um estudo muito sistemático, teórico, que eu fazia constantemente comigo mesmo. Trabalhei então no Recife durante toda essa época, ora assessorando grupos que trabalhavam em escolas primárias, ora trabalhando diretamente, eu mesmo, com adultos, em educação popular. Não tenho dúvida nenhuma de que aquele período dos anos, dos fins dos anos 40 e todos os anos 50, foram profundamente fundamentais do ponto de vista da minha formação política e da minha formação científica, também ideológica, mas nos morros do Recife, nos córregos do Recife, nas áreas rurais de Pernambuco. Aí então eu criei, por exemplo, o serviço de Extensão Cultural da Universidade de Pernambuco, que existe ainda hoje, formação de quadros pra professores, pra jovens, estudantes, até chegar o governo de Goulart quando, sendo o Ministro da Educação Paulo de Tarso, aqui de São Paulo, foi secretário do Montoro, da Educação, ele me carrega pra Brasília pra eu coordenar o Plano de Alfabetização Nacional, em 1963. Antes disso, em 61, creio, em 62, nós fizemos um grande trabalho em Angicos, no Rio Grande do Norte, sob a liderança do então jovem Marcos Guerra (?) que é hoje o secretário de educação do estado do Rio Grande do Norte. Marcos era estudante universitário na época e eu fiz um trabalho em Angicos, com o secretário da Educação do Rio Grande do Norte da época, que me procurou em Recife, e me levou pra lá. Eu fiz uma série de exigências de ordem política ao então governador do RN, ele aceitou as exigências e nós fizemos um bonito trabalho em Angicos com a juventude. Se alfabetizaram 300 e tantas pessoas num período de dois meses, por aí, ou três. E o João Goulart foi ao encerramento desse trabalho e viu aquilo, ficou muito tocado por aquele trabalho que se realizou no RN. Em seguida, o ministro dele da época, que ainda era um paulista até também, saiu do ministério e ele levou o Paulo de Tarso. Quando o Paulo de Tarso chegou ao ministério, me trouxe para implantar esse plano de alfabetização, que foi abortado, precisamente, pelo golpe.
P/1 - O Sr. lembra do fechamento de Angicos, eu li isso numa reportagem no jornal, com as autoridades todas, um senhor de 70 anos que falou que "maior que a fome da barriga é a fome da cabeça"?
R - Inclusive ele fez um discurso, foi muito interessante, porque o Presidente da República já tinha encerrado a reunião, quando ele pede a palavra. Quer dizer, não tinha nada que ver com os protocolos. Ele pede a palavra pra falar e me lembro que um dos presentes da comitiva do Presidente disse assim: “Êta, quebrou o protocolo!" Ele virou-se e disse: “Quebrei o que?” E ninguém respondeu mais. E aí o João Goulart, que era um homem muito simples, o presidente Goulart, disse: “Pois não, pode falar”. Ele levantou, e disse: “Alteza...” - chamou o Presidente Goulart de Alteza. (risos) Aí, disse: “Me lembro de que, uma vez", mais ou menos assim, "houve uma fome muito grande nesse Estado, e outro Presidente, que era o Getúlio Vargas, veio aqui ao RN para ajudar a gente a sair da fome da barriga. E hoje veio Vossa Alteza pra ajudar a gente a matar outra fome, a fome da cabeça, a fome do saber.” Depois ele disse uma coisa que a imprensa, todo o mundo deu. Ele disse: “Nós aprendemos aqui, Presidente, mais do que assinar o nome, do que ler um bilhete. Nós aprendemos aqui a mudar, também.” Sim, porque o João Goulart tinha citado no discurso dele a leitura da carta do ABC do país, que era a Constituição. E ele disse: “Nós aprendemos, presidente, mais do que ler a carta do ABC do Brasil, aprendemos a mudar ela também.”. Isso é uma coisa fantástica! E esta afirmação dele não foi citada pela imprensa na época. Não foi. Mas ele disse isso. E deve ter agravado essa frase dele, ele deve ter agravado os líderes do golpe em seguida. Se deu. Se deu no ano seguinte. E eu me lembro que estava presente nessa reunião, e ouviu essas frase, o general, então general, o marechal Castelo Branco. E ele estava presente, e era na época comandante do IV Exército. E ele foi pra lá. Mas naquela altura... Ora, você imagina, isso deve ter sido junho de 63... O golpe foi em abril de 64. Quer dizer, naquela altura, o Castelo Branco tinha já o esquema todo do golpe. Não há dúvida. E ouviu essa frase desse homem. Depois ele falou comigo e disse: “Professor, eu acho que o Sr. defende uma pedagogia sem valores.” Eu nunca esqueço desse papo com o Castelo Branco. Eu disse: “Não, general, eu acho que pelo contrário, eu... Não, ele falou uma pedagogia sem hierarquia. É, parece que era isso. E eu disse: "Não, o Sr. está equivocado, eu defendo valores e os valores estabelecem hierarquias. Agora, o que eu acho é que a hierarquia que está aí montada e estabelecendo princípios, pra nós, está precisando mudar. Eu acho que está montada em bases injustas, etc.” E ele falou pra mim: “E o Sr. aceita de falar pra nós no IV Exército?”; “Falo onde o Sr. quiser.” Mas não deu mais nem tempo. E eu acho que aquele discurso acabou, né? Porque o discurso daquele homem não ajudou, de jeito nenhum, o amaciamento do golpe. Deve ter, eu não diria que o discurso do homem foi causa do golpe. Seria uma loucura da minha parte, a história não é tão simples assim. Mas o discurso do homem deve ter aguçado um pouco as preocupações conservadoras de então. Quer dizer, hoje, você vê como a história é bonita Um discurso desse, hoje, não deixaria muita gente demasiado assustada. Só um ou outro, mais conservador. Mas naquela época, um discurso desse assustaria 99% dos conservadores.
P/1 - O Sr. não estava contando outro dia a história do raio da morte?
R - O raio da morte era uma coisa... Porque a gente estava convencido, na época, já, de que era preciso usar tecnologia. Quer dizer, você não pode transformar educação, reduzir a educação à tecnologia. Precisa mais do que isso. Mas você não pode negar, primeiro, a possibilidade do uso, segundo a eficácia do uso. Só que a gente queria fazer isso de forma que não onerasse demais o próprio povo, e não era possível estar pensando na importação de projetores norte-americanos que custavam 22, 25 dólares, na época. Que era muito dinheiro pra época. E a gente vivia procurando um jeito de como é que pode projetar, quando é um dia eu recebo um telegrama do teu pai, ou uma carta, porque ele tem muito humor. E ele dizia: “Descobrimos o raio da morte.” E eu fiquei sem saber (risos) que diabo era. Imagine só que, felizmente, não encontraram esse telegrama, porque se o exército tivesse pegado esse telegrama, tinha sido uma complicação dos demônios, quando eu fui preso. E teu pai ia pra cadeia também: "Que raio da morte é esse?" O raio da morte que ia matar o exército todo. Muita coisa foi assim, que se fez. E o raio da morte era um projetor que o teu pai, o Calazans, andou inventando com não sei quem mais, por lá. Eu não sei bem descrever o raio da morte, mas sei que ele jogava com um negócio de uma lâmpada, uma lanterna, e o fato é que o raio da morte projetava. Direitinho. E o povo adorava. Mas olhe, o trabalho de Angicos, eu até disse pro Marcos, quando ele assumiu, valia a pena fazer uma pesquisa, que nunca foi feita, uma pesquisa pra levantar, não apenas do ponto de vista da alfabetização, que foi feita na época, que possivelmente se tenha acabado, não é? Mas entre os que viveram aquela experiência, ver as influências no campo da política, por exemplo. Eu estive com o homem do discurso, há 10 anos atrás, quando eu cheguei do exílio houve uma comemoração lá em Natal, eu fui e ele estava também. No almoço. E lembramos tudo, etc. Porque houve greves, durante aquele trabalho, houve a primeira grande greve de operários da indústria. Uma coisa linda! É... Eles se juntaram, se mobilizaram, em função da discussão política que eles tinham, e partiram para defender seus direitos. E fizeram a greve e foram vitoriosos. No começo, me disse o Marcos, isso até, houve uma tentativa de os municípios vizinhos a Angicos remeterem os seus empregados pra lá em caminhões pra acabar com a greve, pra fazer o fracasso da greve. E os estudantes, que eram os educadores, souberam disso e foram com os próprios operários para o meio da estrada e paravam os caminhões que vinham das outras cidades e faziam preleções aos outros operários e eles voltavam. Aí a greve vingou. Quer dizer, isso é um exemplo extraordinário! Você já imaginou se a gente pudesse hoje estudar isso com gente da época, pegar essa memória, isso, pra mostrar a importância de um trabalho feito em três meses, três meses, no sentido da cidadania? No sentido da invenção da cidadania? Quer dizer, uma educação lúcida, uma educação crítica. Mas o Marcos estava até muito animado, mas ele mesmo não pode levar...
P/1 - O Sr. trabalhou diretamente junto aos estudantes?
R - Trabalhei! Eu capacitei, eu levei a equipe minha da Universidade do Recife pra Natal, e lá nós capacitamos a equipe central dos estudantes, que por sua vez capacitou outras. E eu ia constantemente a Natal, de Natal ia a Angicos pra observar in loco o processo. Minha filha Madalena, quando tinha 15 anos, trabalhou lá, substituiu um dia um dos coordenadores que adoeceu, e ela fez um lindo trabalho. Essa foi possivelmente a primeira manifestação da Madá enquanto educadora, com 15 anos.
P/1 - Vou mudar um pouquinho de assunto, depois voltamos. Queria que o Sr. contasse sobre o seu casamento, namoro...
R - Eu estou tendo a segunda experiência de casamento. Na primeira, de que nasceram Madalena, Fátima, Cristina, Joaquim, Lurdes, eu era muito jovem, casei com 23 anos, e encontrei um dia no mundo Elza, que é a mãe dos filhos meus. E nós fizemos um bem assim enorme um ao outro. Um apaixonamento profundo. E vivemos 42 anos juntos. Elza era professora, uma educadora pra mim de um senso, uma sensibilidade prática enorme, com uma capacidade de entender sua própria prática, também, muito sensível, no gosto do seu silêncio. Quer dizer, ela falava pouco, mas observava muito, e era muito querida pelas colegas, querida pelos alunos, e fez uma carreira pedagógica bonita no Recife. Ela foi professora, depois foi diretora de grupo, mas teve aí um gesto lindo que foi, depois do golpe, a solidariedade absoluta que ela teve comigo. Elza ia me visitar na cadeia e nunca disse a mim: “Você está vendo, Paulo, se você tivesse pensado mais...” Nunca. Quer dizer, ela foi solidária, absolutamente solidária. Fui para o exílio e ela foi comigo e os filhos para o exílio, e com isso ela perdeu 27 anos de trabalho. Porque pra ir ela teve que pedir demissão, e ao pedir demissão ela perdeu 27 anos de trabalho. E quando voltou, nenhum Governo reconsiderou o seu próprio pedido. Ela morreu com essa mágoa, com essa tristeza. De ter pedido demissão porque não podia deixar de pedir. Se não tivesse pedido demissão ela teria sido demitida por abandono e ela achava horrível ser demitida por abandono. Então, pediu demissão. Quer dizer, a minha vida foi com... Com ela, nos 42 anos , uma vida de namorados, realmente. Ela me deu um apoio extraordinário, me deu sempre uma força enorme. Eu costumo sempre dizer que Elza me provocava até no silêncio dela, me desafiava até no silêncio dela. Me acompanhou durante todo o exílio, e viajou muito comigo tanto quanto ela pôde, porque eu sempre defendia essa tese de não viajar só. Eu não gosto de dormir só. E ficava com ela o tempo todo, e quando eu viajava, eu exigia que quem me convidava que pagasse as despesas dela. Agora, ela não pôde viajar tanto quanto Nita hoje viaja. Porque ela tinha filhos pequenos pra cuidar e tinha uma casa com a responsabilidade de filhos pequenos. No meu segundo casamento, nem Nita tem filhos pequenos nem eu tenho filhos pequenos. Então, somos dois adultos que podemos andar pelo mundo afora, então Nita viaja mais do que Elza viajou, mas por isso. Não é porque é a segunda, mas porque teve uma circunstância que a outra não teve. Obviamente não teria. Mas Elza morreu, quando, em certo sentido eu esperava, mas em outro eu nunca esperava. Porque no fundo você nunca espera a dor terrível que significa o corpo do outro parar. E eu tive essa experiência trágica de perder Elza no meu corpo, no meu peito. E foi uma coisa dramática. Eu senti um desgosto de viver, houve uma ruptura enorme que se pôs diante de mim, entre mim e o mundo, entre mim e a vida. E eu me desencantei. E me amofinei. E meus filhos, meus amigos mais próximos, mais íntimos, duvidavam até de se eu era capaz de dar o salto depois. É interessante. Sabe, hoje estou convencido, possivelmente até muita gente estranhou, que tendo eu vivido tão intensa e plenamente com Elza, 42 anos, que eu me casasse de novo. Possivelmente, quer dizer, todo o mundo tem direito a fazer conjecturas em torno da vida dos outros. E, possivelmente até eu, que se não fosse comigo, poderia ter feito essa conjectura, como outro qualquer. Depois de ter experimentado o que eu experimentei, nunca mais eu faço essa conjectura com outro qualquer. E eu hoje estou convencido de que quanto mais você amou, tanto mais você pode continuar a amar. E quanto menos você pôde amar, tanto menos você continua a poder amar. A minha experiência com Elza tinha sido uma experiência tão plena , tão enorme e tão fantástica, que eu não pude ficar só. Não dava. Quer dizer, eu tinha que continuar amando. Mas, pra que eu continuasse a amar era preciso que eu sepultasse Elza. E o que eu quero dizer com isso, que ela já havia sido sepultada no dia seguinte ao da sua morte.... Mas você pode sepultar uma pessoa em 1992, e manter a pessoa viva até o ano 2000, ou 2010, quer dizer, você passa a ter uma experiência necrofílica. E você deixa de amar a vida, e passa a amar a morte. Da tentativa de ressuscitar o morto, que não dá, porque o teu poder não é suficiente para plenamente ressuscitar o morto. Então, é preciso sepultar o grande amor, é preciso reconhecer ou assumir a ausência dele. No momento em que você assume a ausência, a ausência muda de qualidade. Já não é uma ausência dramática e dolorida, porque passa a começar a virar uma presença remota. A ausência se veste de uma saudade. Risonha. Em que você convive com a positividade do passado. Aí então você está disposto de novo a reabrir-se ao mundo. E é isso que tem que ser feito. E não há dúvida nenhuma que é isso que tem que ser feito. E não ficar eu dentro de casa morrendo, e morrer com a responsabilidade que eu acho que cada um de nós tem com o mundo. Em níveis diferentes, você é tão responsável pelo mundo quanto eu por você. Só que em níveis diferentes. Nós somos essa responsabilidade. Eu não tinha o direito de renunciar ou de fugir a essa responsabilidade porque Elza já não estava no mundo. Então nesse... Foi exatamente nesse clima emocional e pouco racional também, afetivo, crítico, ingênuo etc, que Nita, que tinha sido, como te contei já, aluna minha, menina, e que depois era muito amiga de mim e de Elza, nós éramos muito amigos os dois casais. Elza gostava muito de Nita. Nita enviuvou. Morreu o marido dela antes da Elza. Onze meses antes, alguns meses antes. E Nita ficou também chocadíssima, muito traumatizada e quando ainda Elza era viva, ela me procurou para eu orientar a tese dela. Elza também me pediu isso e eu aceitei. Era a tese sobre mestrado dela. E começou-se a trabalhar ainda Elza viva. Quando Elza morreu, eu largo tudo, eu só fazia chorar, ouvir música e tomar uísque. Não saía de casa, era uma coisa. Primeiro jantar que eu fui, eu fui ao restaurante, eu fiquei profundamente culpado. Como é que eu estou num restaurante, com Elza morta. Eu vivia assim, culpando-me por tudo. Quando eu retomei o trabalho com Nita e com a Universidade, lá um dia eu descubro que Nita podia ser mais do que a amiga que vinha sendo. E ela também descobriu isso, em mim. Nos descobrimos, afinal de contas, numa perspectiva até então não percebida. Éramos apenas bons amigos. E eu o orientador do trabalho dela. Então, aí nos acertamos para viver uma vida diferente. Uma coisa que até a Nita me disse nos começos de nossa aventura, ela me disse: “É correto, eu não tenho como substituir Elza, ou continuá-la, como você não tem que substituir Raul ou continuá-lo. Quer dizer, não se trata da substituição ou da continuidade. Mas se trata de começarmos juntos outro momento de nossas vidas. Porque se a gente tenta pensar que o outro está substituindo o que saiu, ou o que perdeu ou o que morreu, a gente não faz a volta." Aí o tal negócio que eu falei antes. É preciso sepultar primeiro Elza, sepultar Raul, pra que os dois que ficaram vivos pudessem, em paz, sem culpas, recriar-se, um com o outro. E essa coisa não é fácil. Essa coisa você tem que enfrentar. Análise dos demais, as críticas, restrições, eu respeito muito a opinião dos outros, mas aí é preciso ver a minha e dela, e nenhum filho meu tinha o direito de interferir nisso. Nem eu reconheceria a nenhum deles esse direito. Obviamente que comuniquei a eles, comuniquei, não pedi licença. Porque eu achava que era um absurdo que eu pedisse licença, como eles não tinham que pedir licença a mim, nem nunca pediram licença, nem pra casar. Então eu não tinha porque pedir licença a eles, mas tinha o dever de comunicar a eles, né? Creio que no começo devem ter também se chocado, uns mais do que outros, mas eu acho que... Era natural isso, mas cada um a seu jeito vem superando sua surpresa e descobrindo que era melhor o pai vivo, surpreendendo-os, do que o pai morto para ser coerente. E era isso mais ou menos o que eu tinha que dizer.
P/1 - O Sr. não vai tocar no assunto do seu exílio...
R - Mas é porque eu tenho feito muito isso em livro, ( risos) sabe? Porque se eu tocar nisso aqui agora eu acho que a gente vai passar, o tempo vai estourar, viu, da entrevista. (risos) É toda uma vida, e aliás tem coisas lindas, pra conversar sobre isso. E eu também não me furtaria a dar esta entrevista. Acho que isso é um trabalho excelente que se faz aqui. Eu acho que guardar um pouco das memórias do país é um tempero da gente, e eu acho que eu tenho alguma importância na história nossa. E é um dever meu até fazer isso. Agora, eu não posso é... Porque eu tenho agorinha um compromisso com uns professores europeus. Agora, em segundo lugar, se isso for possível, porque também depende dos critérios de vocês, em relação a tempo, se isso for possível, aí um dia você marca comigo de novo, e aí e eu venho cá, e aí a gente faz mais duas horas ( risos). Porque eu tenho muita coisa bonita pra dizer. Essas passagens todas eu tenho dito isso em livro, mas tenho a impressão que dizer com o corpo, com a imagem, é mais forte. Mais forte. Depois, o tipo de clientela que vê isso, não é necessariamente o que lê. De maneira que então é... Estou à disposição. Isso que eu quero dizer.
P/1 - Para fechar, queria que o Sr. falasse sobre um sonho...
R - Olha, puxa... Em primeiro lugar, eu, até agora, nesse livro que acabei de escrever, eu falo muito dos sonhos. E chego a dizer que o sonho não é apenas um direito e é até um dever que a gente tem, mas que o sonho faz parte da natureza do ser que nós, mulheres e homens, estamos sendo. Ou seja, em outras palavras, não era possível ser esse ser que somos, você vê até que do ponto de vista genético, nós somos seres muito especiais. Nós somos seres programados, realmente, mas não determinados. E a nossa programação é uma programação que se funda numa coisa com a qual a gente nasce, mas a gente recria, que é isso que eu chamo de a curiosidade diante do mundo. E por isso, então, nós somos também seres, e hoje estamos sendo também seres que não resistimos a continuar a viver sem estar envolvidos num pensamento permanente sobre o amanhã. É inviável o ser humano continuar se ele parar de pensar no amanhã. Não importa que seja um pensamento o mais ingênuo possível, o mais imediato, o de se a gente vai ter café amanhã, ou se a gente vai ler ou reler Hegel ou Marx. Não importa. Nós somos seres de tal maneira constituídos que o presente, o passado e o futuro nos enlaçam. A minha tese então é a seguinte: Não posso, não pode existir um ser permanentemente preocupado com o vir a ser, portanto com o amanhã, sem sonhar. É inviável. Sonhar aí não significa sonhar a impossibilidade, mas significa projetar. Significa arquiteturar, conjecturar sobre o amanhã. E quando tu me perguntas, a questão agora é saber qual é o sonho em torno desse amanhã. Segundo a questão fundamental é saber com que sonho, e contra que sonho. Porque eu não posso sonhar em favor de alguma coisa, se não sonho contra outra. Que é exatamente aquela que obstaculiza a realização do meu sonho. Eu não posso sonhar se eu não estou claro também com a favor de quem eu sonho. Daí que o ato de sonhar seja um ato político. Um ato ético, e um ato estético. Quer dizer, não é possível sonhar sem boniteza e sem moralidade e sem opção política. E eu quero saber, quando você me diz: "Paulo, eu também sonho e eu quero saber com que e a favor de quem você sonha. Qual é o sujeito beneficiário do teu sonho. É a burguesia que explora ou é a massa deserdada que sofre?" E não basta que você me diga: "Eu sonho pela humanidade", porque a humanidade é uma abstração e não existe. Entende? Então agora, quando você me pergunta: "Paulo, me diga qualquer coisa sobre seu sonho", eu diria: o meu sonho fundamental é o sonho pela liberdade que me estimula a brigar pela justiça. Pelo respeito do outro. Pelo respeito à diferença. Pelo respeito ao direito que o outro tem e a outra tem de ser ele ou ela mesma. Quer dizer, o meu sonho é que nós inventemos uma sociedade menos feia do que a nossa de hoje. Menos injusta, que tenha mais vergonha. Esse é o meu sonho. O meu sonho é um sonho da bondade e da beleza.
P/1 - Se puder deixar uma mensagem para futuras gerações...
R - Olha, seria de novo a mensagem em torno do sonho. Quer dizer, eu diria aos jovens que hoje possivelmente não me verão aqui porque não estão ainda curiosos para fazer estudos e pesquisa, porque eles estão ficando de tal maneira envolvidos com o seu sonho... A juventude brasileira, é fantástico isso. Veio pras praças e veio pras ruas. Mas veio agora de uma forma muito mais gostosa do que a minha geração, que não conseguiu vir. A tua não pôde também. Enquanto a geração de jovens, por exemplo, de quando eu era maduro vinha pras ruas brasileiras, também, pras praças públicas, defendendo teses de que era preciso que as mulheres jovens tivessem só um jeans, uma blusa só, que lavasse no sábado, de noite, em casa, porque ter duas blusas significava burguesia. Que era preciso ser feia, que não podia estar cuidado da cara, porque isso era burguês. A juventude de hoje, a meninada, vem pra rua hoje, pinta as suas caras. Inventou a geração da cara–pintada , da cara cheia de cor, da boniteza. Afinal de contas, despreocupada de se isso é ingenuidade burguesa, pré-burguesa ou revolucionária ou nada. Quer dizer, a juventude veio disponível à invenção. Disponível ao amor. Então, quando tu me pedes uma palavra, eu te diria, essa juventude é que está me mandando mensagens. Eu só gostaria agora era de dizer nos meus 71 anos a essa juventude que eu a entendo. Que eu sou também um cara-pintada.
Publicado em 24/03/2014 no Museu da Pessoa
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